O personagem, interpretado pelo ator Harvey Keitel, está em um quarto escuro. Da rua, ouvem-se buzinas. Ele levanta-se da cama e olha o espelho. Não há nenhum corte na tomada de cena. Às buzinas, segue-se uma sirene. Deita-se. Não há música, só ruídos.
No movimento do deitar, a primeira imagem é o personagem sentado na cama. Há um corte. A segunda, o torso e a cabeça, inclinados em relação ao travesseiro. Mais um corte. A terceira, o ombro. O último corte. Por fim, o rosto, encostado à almofada.
São três segundos. A música ao fundo é “Be my baby”, cantada pelas Ronettes, composta por Phil Spector. Quatro batidas, duas no mesmo compasso, três momentos distintos. Para cada momento, um corte. É o começo da canção e o início de Caminhos perigosos, dirigido por Martin Scorsese.
O começo de “Be my baby” é praticamente só seu ritmo, só sua pontuação, quase só sua tensão, assim como cortes, que também pontuam, dão ritmo, tensionam. “Há três cortes na cena e se você ouvir, três batidas de tambor. A montagem me veio ao ouvir o começo dessa música”, contou Scorsese ao jornalista Richard Schickel, no livro Conversas com Scorsese.
Custou ao cinema muito tempo para desenvolver uma linguagem que combinasse imagem e som da forma sofisticada como é vista no filme do diretor americano. Nos primeiros filmes não havia sons previamente combinados com imagens.
Assim, em A chegada de um trem na estação, filme com não mais de 1 minuto realizado pelos irmãos Louis e Auguste Lumière em 1896, não há nenhum som da locomotiva vindo da sala de cinema. O que não faltava, porém, era ruído.
“Havia muito ruído nos primeiros tempos”, afirma Amadeu Weinmann, professor de psicologia e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Cinema da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Hoje, o silêncio é um elemento da sala – não é agradável uma pessoa ao lado comendo pipoca e fazendo barulho. Mas, no início, dentro de galpões, onde os filmes eram passados, esse silêncio não existia”, complementa.
Para André Olzon, mestre em música pela Universidade Estadual de Campinas, com uma dissertação a respeito da música no cinema, ainda hoje é muito difícil escutar silêncio na sala de cinema. “John Cage, por exemplo, afirma que o silêncio não existe”, diz ele.
Ruídos e tecnologias
A principal dificuldade nos primeiros filmes era o desenvolvimento da tecnologia necessária para combinar som e imagem. Em muitas salas, um pianista se encarregava de executar algumas músicas que servissem como trilhas sonoras para as cenas que se passavam na tela. O resultado, porém, era catastrófico.
Havia cenas de grandes riscos para os personagens em que uma valsa calma e alegre servia como trilha. Ou imagens em que um casal se reconciliava ao som de um frenético ragtime. Ruídos entre imagem e som, no pior sentido da palavra.
Tentou-se gravar a voz de personagens e deixar aos operadores, de dentro da sala, a tarefa de sincronizar a fala com as imagens, o que dificilmente acontecia. Ou a fala entrava antes ou depois do momento exato. Mais ruídos.
Foram os irmãos Warner, junto com as empresas Bell Telephone e Western Eletric, que resolveram o problema. Anos de pesquisas levaram ao Vitaphone, que, por meio de dois motores conectados, conseguiu sincronizar som e imagem. O cinema saía do período silencioso e nunca mais seria o mesmo.
A chamada “fase áurea” do cinema de Hollywood, comandada por grandes estúdios, se beneficiou enormemente do som. A própria Warner, a Universal, a MGM, a Paramount e a Columbia bancaram, durante a década de 1930, longas metragens que faturaram milhões, em parte por conta da atratividade do som sobre o público.
Na maior parte desses primeiros filmes falados, o uso convencional do som predominava. Não havia muito experimentalismo e grande parte do que entrava em cartaz não usava nem o ruído, nem o silêncio de modo ousado. Mas as possibilidades começavam a se abrir. Em Aurora, do diretor alemão F.W. Murnau, por exemplo.
Murnau foi contratado pela Fox para realizar um filme com estética americana, mas que trouxesse elementos do cinema expressionista alemão, do qual era um dos expoentes, como imagens distorcidas. Com a tecnologia sonora já disponível, Murnau usou um caminho menos óbvio e, para a época, razoavelmente ousado.
Uma das cenas mais interessantes combina imagens de um homem casado e sua amante em sobreposição a imagens de uma banda. O casal está no campo, e, a banda, na cidade. Há uma tensão entre os dois quando a amante sugere ao homem matar a própria esposa. O som da banda tensiona ainda mais a cena.
Na transição do cinema silencioso para o cinema falado, outro diretor a ter uma ideia mais ousada a respeito do som foi Charles Chaplin. Em O grande ditador, feito em 1940, uma grande crítica aos regimes autoritários europeus da época, como o da Alemanha, Chaplin faz o papel de um líder político e a língua que fala é totalmente inventada. Quando discursa, o personagem parece grunhir, tal violência com que profere suas palavras.
Hitchcock, Truffaut, Eisenstein e a validade do silêncio
Mesmo assim, cineastas mais experimentais e fora dos grandes estúdios demonstravam certo temor em relação ao som. Temia-se por uma produção cada vez mais comercial e menos artística, na qual o uso do som fosse reduzido às falas dos personagens, ao movimento de objetos, sem significar um elemento capaz de sofisticar a montagem.
Em 1928, o cineasta russo Serguei Eisenstein (O encouraçado Potemkin, Outubro) publicou, na revista Sovietski Ekran, de Moscou, uma “Declaração sobre o Futuro do Cinema Sonoro”. Afirmou que a gravação do som era uma invenção de dois gumes, e o mais provável que seu uso ocorresse “ao longo da linha da satisfação da simples curiosidade”, com “exploração comercial da mercadoria mais vendável, os filmes falados”.
Para Eisenstein, o uso nesse sentido iria destruir “a cultura da montagem”. “Apenas o uso polifônico do som com relação à peça de montagem visual proporcionará uma nova potencialidade no desenvolvimento e aperfeiçoamento da montagem”, argumentou.
No livro Hitchcock Truffaut, uma enorme entrevista de François Truffaut, diretor francês, com Alfred Hitchcock, os dois cineastas comentam a transição do cinema silencioso para o falado.
Ao falar sobre o seu último filme mudo, O ilhéu, Hitchcock mencionou que “os filmes mudos são a forma mais pura de cinema”. Para ele, “a única coisa que faltava aos filmes mudos era evidentemente o som que saía da boca das pessoas e os ruídos”. Nesse sentido, “não se deveria ter abandonado a técnica do cinema puro, como fez o cinema falado”.
Truffaut concordou imediatamente. “Nos últimos anos do cinema mudo, os grandes cineastas, e até mesmo a produção como um todo, haviam chegado a certa perfeição, que foi comprometida pela invenção do falado”, disse o francês.
Hitchcock estava “totalmente de acordo”. “Na maioria dos filmes, há pouquíssimo cinema; na maioria das vezes, chamo isso de ‘fotografia de pessoas que falam’”. E completou: “Quando se conta uma história no cinema, só se deveria recorrer ao diálogo quando fosse impossível fazer de outro jeito”.
Para Olzon, mestre pela Unicamp, o que ocorreu não foi exatamente uma desconstrução do modo em que eram feitas as montagens. “Nasceu uma nova modalidade de se fazer cinema”, afirma. “O pensar no som levou a inúmeras escolhas estéticas que não eram possíveis até então”, complementa.
Weinmann, da UFRGS, concorda. “Eu não acho que tenha havido um empobrecimento da linguagem. Alguns cineastas privilegiaram a questão da fala, mas não se pode generalizar”, explica.
O próprio Hitchcock já havia feito uso do som de forma mais criativa. Em Janela indiscreta, filme de 1954, o personagem de James Stewart observa por uma janela o que ocorre no apartamento em frente ao seu.
Os sons de suas ações são superpostos aos sons do apartamento vizinho, criando uma parede sonora que destaca os principais eventos. Há um distanciamento entre a câmera e os sons, porque as cenas são sempre vistas de um apartamento, enquanto o som, por vezes, advém do outro.
Silêncios e ruídos autorais
Nas décadas de 1950 e 1960, o cinema autoral, no qual o diretor assumiu uma postura bastante independente em relação aos estúdios, transformou mais uma vez a linguagem cinematográfica. Em uma época em que havia profusão de filmes falados e muitos ruídos, o silêncio se transformou em um elemento de certo radicalismo estético.
No Brasil, alguns filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, fizeram do silêncio quase um protagonista da narrativa. Um dos melhores exemplos é Vidas secas, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos e dirigido por ele em 1963. O filme é ambientado na seca nordestina e os personagens pouco falam.
Não apenas no Brasil, contudo, o silêncio se aprofundou como parte integrante da narrativa cinematográfica de diretores mais autorais. No início da década de 1960, cineastas como o sueco Ingmar Bergman e o japonês Yasujiro Ozu se tornaram mais conhecidos. O silêncio era parte de suas narrativas.
No caso de Bergman, a chamada “trilogia do silêncio”, composta pelos filmes Através do espelho, Luz de inverno e O silêncio discutem as dúvidas e a fé em Deus. Planos longos e vazios sonoros compõem boa parte das cenas. O silêncio marca forma e conteúdo.
O estilo de Ozu, por sua vez, seria caracterizado por diversas elipses visuais, nada mais do que silêncios em forma de imagens. Uma das mais conhecidas está no filme Uma tarde de outono, quando um personagem fala sobre um casamento e, na cena seguinte, comenta sobre o evento, que já ocorreu. Nada da festa é mostrado, mas fica subentendido seu acontecimento.
Para Weinmann, da UFRGS, “o silêncio é algo poderoso em qualquer experiência de nossas vidas. Um ambiente silencioso é muito mais perturbador que o efeito da fala. Nos filmes do Bergman, a imagem muito mais lenta e o silêncio colocam o espectador em um outro tempo, o tempo do cinema”.
O som das faculdades
Uma década mais tarde, nos Estados Unidos, a primeira geração saída de faculdades de cinema iria começar a rodar seus filmes. Faziam parte dessa geração diretores como Francis Ford Coppola (O poderoso chefão), Martin Scorsese (Taxi driver), Brian De Palma (Os intocáveis), Robert Zemeckis (Forrest Gump), George Lucas (Guerra nas estrelas), entre outros. O som seria também uma questão discutida por eles, especialmente em filmes mais intimistas.
No caso de Scorsese, um dos melhores exemplos de uso do ruído está em Touro indomável. O filme é uma biografia romanceada do boxeador Jack La Motta, personagem real e conturbado, interpretado por Robert De Niro.
No momento em que gravava uma cena dentro de um prédio, um morador de alguns andares abaixo, desavisado, pede que se faça silêncio no apartamento em que a gravação transcorria. De Niro, sem sair do personagem, responde ao morador pela janela. A discussão transcorre, é registrada pelas câmeras e inserida no filme. Um ruído incidental que se tornou parte do roteiro.
Na mesma década de 1970, filmes como Terremoto, Tubarão e Guerra nas estrelas iriam inaugurar outro gênero de cinema, muito mais comercial, os chamados blockbusters.
Weinmann lembra que quando Terremoto foi lançado, em 1974, exigiu-se que somente salas com tecnologia sonora apropriada passassem o filme. “O som era parte da experiência porque se pretendia dar a impressão de um terremoto real na sala”, acredita. Para Olzon, “uma das principais características desses filmes é tentar trazer ao público das salas de cinema uma experiência de imersão e realismo – sem dúvida, o sucesso desses filmes passa pela construção sonora”.
O silêncio e o ruído continuam a ser questões discutidas por diretores. Muitas vezes, são também protagonistas das histórias. Em O som ao redor, filme pernambucano que venceu o Festival do Rio em 2012, os ruídos constituem parte do cotidiano de moradores de condomínios em Recife, nos quais o espaço sonoro é compartilhado.
Filmes como o francês O artista, de Michel Hazanavicius, que em parte reconstrói a experiência do cinema silencioso, já são também parte de um universo de exploração sonora em que silêncios e ruídos são usados de modo mais ousado.
|