O objetivo que se impõe ao presente artigo é o de discutir o referencial da estrita equivalência na avaliação crítica de traduções, para concluir que ele não se mostra o mais adequado à tradução de poesia.
A respeito da conceituação de tradução poética e do que seja “fidelidade” na ação tradutória, considere-se de início um pensamento como aquele elaborado por Haroldo de Campos (por meio de seus artigos sobre “transcriação”)2, que permite ver a tradução de um poema como uma criação de algo novo, com suas próprias “regras” internas, ainda que resulte de um processo de recriação e seja construído de modo a guardar relações de paramorfismo com o texto-fonte. As prescrições tradutórias de uma teorização como essa não determinam, necessariamente, procedimentos sempre idênticos ou uniformes, nem soluções encaminhadas pelas mesmas diretrizes; sendo um processo de criação, envolverá as escolhas do tradutor-criador a cada etapa de seu trabalho, iniciando-se com a eleição, pela leitura, do que considera relevante da “estrutura” do poema a ser “re-produzido”3 e prosseguindo com suas opções de composição e modo de “correspondência” com o texto de que parte. Existirá potencialmente, permitida por uma abordagem como essa, grande flexibilidade no processo de escolhas que levarão a resultados diferentes: abolindo-se uma relação de “servitude” em relação ao “original” – que deixa de ter o peso implícito à noção de equivalência completa, e com o qual o poema traduzido deseja ombrear-se, podendo ser visto como “original do original” –, o poema resultante da tradução será antes construído a partir de princípios e de processos considerados análogos ou correspondentes, do que de obrigações de equivalência palavra a palavra, ou efeito a efeito (sonoro ou imagético).
Feitas essas considerações iniciais, prossigamos com uma discussão sobre a noção de equivalência e as possibilidades de análise de tradução poética.
Depois de contestar diversos argumentos possíveis a favor das noções desconstrucionistas relativas a questões fundamentais sobre tradução poética, Paulo Henriques Britto propõe, em ensaio seu4, um procedimento de análise comparativa, cujas providências consistem em assinalar, no “texto original”, “toda palavra ou expressão cujo significado pareça não ter sido transposto na tradução”, “toda passagem cujo sentido tenha sido alterado de forma significativa” e “as palavras e expressões que, no plano do sentido, parecem não corresponder a nada que conste no original”.
O esforço de Britto é de grande relevância: procura um meio de não se permanecer na relativização total, em que diferentes traduções poderiam ser consideradas igualmente “válidas”, por serem (segundo as referidas noções desconstrucionistas) "fiéis" aos pressupostos que as norteiam – para distinguir características (e, com elas, vantagens ou desvantagens) de cada uma das traduções comparadas, concluindo pela “superioridade” de uma sobre a outra. No entanto, é nessa parte que continua a residir, em meu modo de ver, uma dúvida: quais as vantagens de se constatar, por um método de análise – entre outros certamente possíveis – a superioridade de um trabalho sobre o outro? Poder-se-ia argumentar (de modo afinado com o desconstrucionismo) que a escolha dos procedimentos já será compatível com um ponto de vista determinado e coerente com a hipótese preconcebida.
No caso em questão, a superioridade é depreendida em relação ao quesito “fidelidade”, sendo esta vinculada ao aspecto semântico, ou ao plano do conteúdo; poderia ser outro o quesito, e poderiam ser outras, portanto, as conclusões; não se pode esquecer que a “fidelidade ao sentido ” é, como outras condições predefinidas, discutível como referência essencial, e se fundamenta, inevitavelmente, no conceito de equivalência. Embora este pareça ser um conceito que tende a resistir aos questionamentos e relativizações da noção de origem, não deverá, penso, ser visto como mais do que um dos possíveis princípios sobre os quais se buscarão correspondências para verificação de resultados, num processo geral de “desvendamento” das características que compõem os textos, como fontes de leitura e de recriação. O que é importante admitir, para a viabilização de qualquer passo de análise ou compreensão, é que o texto é um objeto que pode ser lido e “criado” pela leitura de modos diversos, mas que também apresenta características que lhe são próprias, que vão além do significado e sua permanência, do mesmo modo que uma tradução as terá, e não necessariamente as “mesmas” do texto do qual partiu, uma vez que também seja vista como criação, como poema autônomo. Haroldo de Campos fala em “vivissecção implacável” do poema “original”, pressupondo sua materialidade, necessária para um exame particular que poderá originar um novo ser, uma criação “paramórfica”, de “estrutura análoga” (construída com base no reconhecimento propiciado por referenciais linguístico-estéticos, como a função poética da linguagem ou a iconicidade do signo) nascida ao lado da outra que a antecedeu.
Mas, voltando ao referido ensaio de Britto, diga-se que ele é tão relevante para a poesia e para a tradução de poesia como o ensaio de Rosemary Arrojo5 que o motivou. Ainda que se discorde do autor (que prevê, em seu texto, as inevitáveis discordâncias), por exemplo, em relação à sua crença no valor da equivalência e nos “fatos” – manifesta na ideia de se cotejarem duas traduções e original “linha a linha, sílaba a sílaba, examinando e pesando as diferenças, para se chegar a uma conclusão baseada em fatos ... e expressa em argumentos lógicos” –, seu empreendimento vai contra a imobilidade e a resignação, ao propor a utilização do “discurso racional para fazer avaliações e tecer considerações em torno de traduções”.
Se concordamos com a ação e com a contraposição a um relativismo crítico absoluto (inclusive sobre poesia ou qualquer existência ), temos de considerar, contudo, que, mesmo quando se consideram diferentes soluções como igualmente válidas em princípio, isso não impede necessariamente que se proceda a uma análise visando à revelação, ao mesmo tempo, das diferenças entre os textos e da coerência interna de cada um e em relação a seus possíveis pressupostos – um modo, talvez, de concluir sobre sua eficiência intrínseca –, extraindo-se, até, aspectos comuns num substrato mais “fundamental” do poético.
Assim, poderá ser proposta uma análise que não se apóie em conceitos fundamentados (ao menos exclusivamente) na noção de equivalência, como os de correspondência e de perda (quando não há correspondência plena) propostos por Britto no texto “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de poesia”, que citaremos a seguir. Nele, após afirmar que “a tarefa do tradutor de poesia será ... a de recriar, utilizando os recursos da língua-meta, os efeitos de sentido e forma do original – ou, ao menos, uma boa parte deles”6, e que “podemos entender o conceito de ‘correspondência' em diversos níveis de exatidão”, valendo-se de observações como as de que um verso português correspondente a determinado “verso inglês teria de ser precisamente um decassílabo com acento” em certas sílabas, o autor conclui que “quanto mais fraca a acepção de correspondência – ou seja, quanto mais alto o nível de generalidade em que ela se dá – maior a perda”7.
Britto baseia-se na ideia de que é possível a correspondência total entre as características dos planos de conteúdo e de expressão entre uma tradução e o texto de que ela parte. Embora não se possam levar em conta os argumentos da intraduzibilidade de poesia, superados pela própria prática, também não se podem desconsiderar as diferenças de “natureza” entre obras elaboradas não só em idiomas, como em sistemas distintos sob diversos aspectos: para ficarmos com a dimensão apontada no artigo, a do esquema métrico-rítmico, considere-se que, embora possa parecer que o sistema em pés praticado nas línguas anglo-saxônicas encontra esquema exatamente correspondente em português, essa crença na equivalência absoluta ficará abalada quando se pensar na “origem” do sistema greco-latino, baseado em sílabas longas e breves, e, não, em sílabas tônicas e átonas. O aproveitamento do antigo sistema exigiu uma adaptação decorrente da característica essencialmente diversa entre os idiomas envolvidos, ou seja, a inexistência de fonemas longos e breves nas línguas para as quais o sistema foi adaptado: o que era, nos pés gregos e latinos, uma composição entre sílabas longas e breves, passou a ser uma composição entre sílabas tônicas e átonas, determinando-se, desse modo, uma alteração de identidade. Se considerarmos, por exemplo, a tradução direta ao português de um poema grego, depararemos com a diferença, “em primeira instância”, entre os sistemas quantitativo (quantidade de duração das sílabas breves ou longas) e qualitativo (sílabas acentuadas ou não)8, diversamente do que ocorre entre os idiomas inglês e português (uma diferença, diríamos, “em segunda instância”), pelo fato de os poemas compostos no primeiro já trazerem a característica semelhante de não se construírem, propriamente, com base na duração das sílabas. A ilusão de correspondência absoluta mascarará as diferenças entre os idiomas e as “culturas poéticas” (para não dizer dos contextos culturais gerais a que pertencem): as aproximações envolverão uma diversidade que sugere, além de tudo o mais, a inexistência de equivalência completa. Por conseguinte, estabelecer valores de correspondência como critério de avaliação é, a priori, incerto; afirmações como “(o verso em pentâmetro jâmbico) teria de ser precisamente (um decassílabo em português)”, não seriam, sob o ponto de vista apresentado, desejáveis.
Assim sendo, a vinculação da ideia de “perda”, e sua quantificação, a diferentes níveis de correspondência (“quanto mais fraca a acepção de correspondência ... maior a perda”) também será discutível. E não será adequada por outra razão fundamental: a noção de “perda” vincula-se a uma ideia do texto traduzido como subordinado ao original, e, portanto, como devendo resultar de uma obrigatória equivalência, cujos níveis de ausência determinarão o valor da perda. De outro ponto de vista, que rompa a condição servil da tradução para com o original, a relativa independência de um texto recriado como poema o desobrigará da suposta fidelidade, nos seus diversos planos possíveis. Para Haroldo de Campos (com base em postulações de Walter Benjamin, que, consideraria a priorização da “mensagem” uma “transmissão inexata de um conteúdo inessencial”), o “significado” do texto de partida será apenas uma “baliza demarcatória” para a configuração do sentido no texto traduzido, que envolverá diferenças, em relação ao anterior, decorrentes do próprio processo de “transcriação”. A anunciada “fidelidade à forma” também envolve noções relativizadoras das equivalências, dissociadas da ideia de correspondência “literal”.
Será possível – anunciando-se, aqui, um pensamento conclusivo – considerar a noção de equivalência com a relatividade que o processo tradutório impõe, entendida como equivalência relativa : esta consistirá em aproximações referentes às informações mais relevantes para o âmbito conteudístico, e na proporcionalidade quanto à concentração de efeitos e relações entre som e sentido (a tomada desse tipo de relação como referência associa-se a conceito que resiste como orientador na definição da especificidade da linguagem poética). Com base nessa ideia, poderão ser realizadas análises a partir da configuração de cada poema, reservando-se possíveis atribuições de valor a observações referentes a categorias construídas pela óptica do observador (maior ou menor quantidade de efeitos, e mais ou menos informações, por exemplo), lidando-se com a relatividade das correspondências existentes entre poemas, não colocados em posição hierárquica, com a finalidade antes de tudo descritiva, por vezes comparativa, dos textos estudados.
Marcelo Tápia é poeta, tradutor e diretor da Casa Guilherme de Almeida – Centro de Estudos de Tradução Literária.
Notas
1 Este artigo resulta de adaptação de trecho da tese de doutorado do autor, “ Diferentes percursos de tradução da épica homérica como paradigmas metodológicos de recriação poética”, defendida junto ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP. 2
Ao longo de sua produção ensaística, Haroldo de Campos tratou especialmente da tradução poética, construindo uma teoria da “transcriação”. O presente artigo considera como fonte diversos ensaios de Campos, incluindo-se aqueles publicados em periódicos, reunidos em livro cuja edição se encontra em preparo. Entre os trabalhos consultados, encontram-se: “Da tradução como criação e como crítica”. In: Metalinguagem. São Paulo, Cultrix, 1976; “Para além do princípio da saudade – a teoria benjaminiana da tradução”. In: Folha de S. Paulo, Caderno Folhetim, 9 de dezembro de 1984; “Tradução, ideologia e história”. In: Cadernos do MAM número 1. Rio de Janeiro: dezembro de 1983; “Da tradução à transficcionalidade”. In: Letras 34, n. 3, 1989. 3
Assinale-se, neste ponto, a explicitação deste termo pelo poeta e tradutor Guilherme de Almeida: em sua apresentação ao livro Poetas de França (1ª edição, 1936 / 5ª edição – São Paulo: Babel, 2011), o autor sugere a palavra “‘re-produzir', quer dizer, produzir de novo” como o que seria traduzir poesia. 4
Britto, P. H. “Fidelidade em tradução poética: o caso Donne”. In: revista Terceira Margem, n o 15, julho-dezembro de 2006, pp. 239-254. Rio de Janeiro: 2006. 5
Arrojo, R. “A que são fiéis tradutores e críticos de tradução”. In: Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 6
Será usada a notação em negrito para destacar referências ligadas a comentários posteriores. 7
Britto, P.H. “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de poesia”. In: Krause, Gustavo B. As margens da tradução. Rio de Janeiro: Faperj/Caetés/UERJ, 2002. 8
A afirmação se baseia no aspecto eminentemente prático do uso dos idiomas, da leitura de poemas e da tradição poética das línguas ocidentais modernas.
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