"O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo". Dom Casmurro, cap. II
O romance Dom Casmurro1, de Machado de Assis, conta uma história de traição, ou a traição de uma história? Me explico.
Como se sabe, para os que já leram o livro e para os que não o leram ainda, mas já ouviram falar, o narrador da história, o Casmurro que dá título à obra, é também um de seus protagonistas, cujo nome é Bento de Albuquerque Santiago. O outro, é Capitu, de olhos de ressaca, que vive com Bentinho o amor adolescente em torno do qual se constrói a trama do livro.
Primeiro há (ou não há) a traição de Capitu, o que leva ao fecho triste, cansado e cético das memórias do narrador:
E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos subúrbios.
Em segundo lugar, há a traição de Bentinho que, na pele do velho Casmurro, entrega a história de amor da juventude ao relato da ironia, da descrença e da triste desconfiança.
Envolvendo tudo, há o fracasso natural da empreitada do narrador em unir pontas da vida que só se juntam pela complacência e pela autocomplacência, propriedades que definitivamente, não compõem as personagens do universo machadiano.
Mas o romance de Capitu e de Bentinho forma com Escobar, seu amigo de seminário, o triângulo da traição que passará a perseguir o protagonista-narrador a partir, sobretudo, do status de evidência que uma tecnologia, então recém-inventada, dará à suspeição que os ciúmes já alimentavam: a fotografia.
O livro Dom Casmurro é publicado em 1900, a ação do romance se passa entre, mais ou menos, 1857 e 1875. A data oficial da invenção da fotografia é 1839.
Ezequiel de Souza Escobar, depois de deixar o seminário, torna-se um comerciante bem sucedido, enquanto Bentinho, também depois de deixar o seminário, vai estudar direito em São Paulo para tornar-se advogado. O primeiro casa-se com Sancha, amiga de Capitu, com quem tem uma filha, a quem dão o nome de Capitolina, em homenagem à amizade próxima e intensa que compartilham. O segundo, Bentinho, casa-se, como se sabe, com Capitu, o casal tem um filho e, em espelho de reciprocidade simpática, dão a ele o nome do amigo: Ezequiel.
A simetria da felicidade, ou, inversamente, a felicidade simétrica seriam completas se, por exemplo, a segunda geração de Ezequiéis e de Capitolinas desse continuidade, na sua adolescência, ao amor adolescente das matrizes que os geraram e inspiraram.
Nada disso acontece: o equilíbrio afetivo dos casais se desfaz, primeiro pela morte de Escobar que, exímio nadador, morre, entretanto, afogado; depois, pelos olhos de ressaca de Capitu que, no capítulo CXXIII, "fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem as palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã".
O lenço de Desdêmona a que se aferram os ciúmes de Otelo, na peça de Shakespeare, dá materialidade à fantasia doentia da traição instilada no amigo por Iago. O lenço de Bentinho é a foto de Escobar, que revela e amplia, na percepção do enciumado, a semelhança entre ele e o filho Ezequiel.
Capitu, no capítulo CXXXVIII, enuncia isso, explicitamente, conforme registra o narrador:
" ̶ Sei a razão disto: é a causalidade da semelhança..."
No capítulo seguinte, que se chama "A fotografia", Bentinho está a ponto de ceder à crença de que tudo não passava de uma alucinação sua. Mas, nesse momento, Ezequiel entra no gabinete onde estavam os pais para alertar a mãe para a hora da missa e aí, segundo as memórias do Casmurro, ambos olham, involuntariamente, para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro:
"Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel."
O desfecho se sabe: Capitu volta da igreja convicta de que a separação é indispensável. A família vai para a Europa para fazer, por decisão de Bentinho, uma separação branca. O casal não se reencontra mais depois que ele retorna. Capitu morre e é sepultada na Suíça; Ezequiel vem ao encontro do pai uma vez, consegue dele um financiamento para sua viagem e morre de febre tifóide, sendo enterrado perto de Jerusalém. Bento Santiago velho, o Dom Casmurro narrador que tinha como projeto escrever uma história dos subúrbios conta, na verdade, uma história suburbana, de amor, de ciúmes, de desconfiança e solidão, no cenário do Rio de Janeiro do segundo império.
Tudo é pequeno, trivial corriqueiro e comum na vida sem sabor e sem surpresas da família da aristocracia rural que se aburguesa e da pequena burguesia que se quer aristocratizar.
O narrador é metódico, disciplinado e aborrecido, se considerado nas imagens que faz de si mesmo e com que se apresenta nos meios em que circula e nos modos de suas interrelações.
Se considerado, contudo, nas formas de seu relacionamento com o leitor, a coisa muda de figura e o Casmurro que é chato e aborrecido, aparece irônico, distanciado de si mesmo e sedutor.
Este segundo registro, o da personagem ̶ narrador, torna o Casmurro simpático e o aborrecido envolvente.
A rejeição do filho, que ele chega a pensar em matar, no capítulo CXXXVII do romance, tem matrizes em velhas narrativas míticas, entre elas a de Édipo, rejeitado pelo pai Laio, rei de Tebas, que ele irá, mais tarde, matar e, em seguida, casar com a viúva Jocasta, sua própria mãe.
A rejeição de Ezequiel pelo pai, não tem a consequência trágica do arquétipo. Tem, contudo, a consequência dramática do pessimismo desconfiado de Machado de Assis.
No quadro do realismo da segunda metade do século XIX, num país que aspirava ao concerto das nações e cuja força de trabalho assentava-se sobre à escravidão, o tema da paternidade se ligava, histórica e metaforicamente, à própria busca da identidade de seus filhos com a pátria e da pátria com suas raízes e com sua posição no mundo.
Este tema da paternidade, transformado depois em clichê romântico, perdurou e permaneceu primeiro nas novelas de folhetim impressas, depois nas versões de radiofonia e, contemporaneamente, nas telenovelas que, de algum modo, incorporaram suas formas ancestrais de expressão e o modelo melodramático de sua estrutura narrativa e de sua trama enredada de sentimentos de perda, pecado e redenção.
Carlos Fuentes, a propósito de A casa verde, de Vargas Lhosa, faz a seguinte observação:
"Quando se carece de consciência trágica, de razão histórica ou de afirmação pessoal, o melodrama as supre: é um substituto, uma imitação, uma ilusão de ser"2
Penso que, sob certos aspectos, a observação de Fuentes continua válida para a América Latina não fosse senão o enorme sucesso popular que continuam a ter as telenovelas em nossos países.
Voltando ao romance Dom Casmurro, seria preciso dizer que há nele elementos do melodrama que os folhetins consagraram nas sagas da busca da paternidade. Mas estão postos aí com sinais invertidos para, na verdade, contar a história de uma desconstrução, partindo do ideal da busca da felicidade posta em família para desfazer, peça por peça, o fácil enigma da bem-aventurança. Ninguém é feliz como se pretendia, mas também ninguém morre dessa infelicidade, embora todos morram e não reste de Mata-cavalos senão a casa de Engenho Novo, as memórias de Bento Santiago que, delas tornado o narrador Dom Casmurro, falta a si mesmo.
1 Assis, M. de. Dom Casmurro. In: Coutinho, A. (org). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. v. 1. p. 807-944.
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