Em 28 de dezembro de 1895, o físico alemão Wilhelm C. Roentgen anuncia a descoberta de uma radiação invisível que não interagia com o campo magnético, nem com o campo elétrico, não era desviada por prismas ou lentes, e era capaz de atravessar até alguns metais. Para documentar esse fenômeno, que ficou conhecido como raios X, ele apresenta uma “fotografia de Roentgen” mostrando a estrutura óssea de uma mão. Henri Becquerel, em 1986, apresenta um trabalho no qual assinala que sais de urânio também emitem uma radiação capaz, como os raios X, de impressionar chapas fotográficas. Em 1898, Marie Curie chama esse fenômeno de radioatividade e, juntamente com seu marido Pierre Curie, anuncia a descoberta de dois outros elementos que emitem radiações similares àquelas emitidas pelo uranio: o rádio e o polônio.
As principais radiações nucleares são a radiação alfa (constituída por dois prótons e dois nêutrons), a radiação beta (partícula com a mesma massa do elétron, sendo que a carga pode ser tanto negativa quanto positiva), e a radiação gama (radiação eletromagnética, ou seja, possui a mesma natureza dos raios X e difere desses apenas por se originar nos núcleos atômicos e por apresentar uma distribuição de energia mais homogênea). Essas radiações possuem, em comum, o fato de serem ionizantes, ou seja, são capazes de transferir, para os elétrons do meio que as absorvem, energia suficiente para fazê-los escapar de seus átomos.
A possibilidade de visualizar estruturas internas sem incisão cirúrgica, e as várias perspectivas terapêuticas que se criaram com as novas radiações, aceleraram as pesquisas o suficiente para trazer sérias consequências à saúde daqueles que se expuseram, em demasia, nos trabalhos com esses novos raios. O caso do médico Álvaro Alvim (1863-1928), homenageado no selo dos correios com o título de “mártir da ciência”, talvez seja o mais documentado caso de superexposição no Brasil. Como consequência de seu trabalho com os raios X, no início do século XX, ele recebeu altas doses nos dedos e mãos, as quais levaram a eritemas, que evoluíram para necrose e resultaram na amputação desses membros. Ou seja, é possível dizer que, desde a descoberta, riscos e benefícios estiveram presentes nas aplicações desses raios, embora, pouca atenção tenha sido dada de imediato. A morte de dezenas de pessoas no início do uso dessas radiações, bem como as vítimas das bombas nucleares lançadas sobre o Japão, não deixam dúvidas sobre os efeitos nocivos das doses altas. Entretanto, vivemos em um planeta no qual fontes naturais (como o potássio 40, o carbono 14, o radônio, o urânio, o tório, entre outras) nos expõem, permanentemente, a baixas doses de radiações. Quais seriam, então, os efeitos biológicos nesses casos?
Os estudos dos sobreviventes das bombas atômicas chamam a atenção para a necessidade de se considerar não apenas os efeitos imediatos; uma dose de radiação pode ser inócua para provocar uma queimadura, por exemplo, mas poderia induzir um câncer anos após a exposição. Como pensar em uma dose “segura” se não se conhecia um limiar que garantisse a não ocorrência de um efeito genético ou de um câncer radio-induzido? A perspectiva de uso cada vez maior da energia nuclear para fins pacíficos, bem como as exposições devidas aos testes nucleares, fizeram com que os órgãos de controle se empenhassem em recomendar doses cada vez mais baixas. Assim, a partir da década de 1960, os órgãos de controle dos Estados Unidos adotaram o limite de 1,7 mSv/ano para indivíduos do público. Esse limite, que deixa de fora as doses oriundas de fontes naturais (média mundial de 2,4 mSv/ano) e de procedimentos médicos, representava uma dose cerca de trinta vezes menor do que o limite recomendado para os trabalhadores de instalações radioativas (50 mSv/ano na época – hoje 20 mSv/ano).
Não obstante o valor relativamente baixo do limite adotado para o público, dois cientistas americanos lançaram, no final da década de 1960, um manifesto afirmando que o limite de 1,7 mSv/ano deveria ser dez vezes menor, a fim de evitar o excesso de 32 mil mortes de câncer radio-induzido por ano. Eles obtiveram esse valor relacionando o excesso de mortes por câncer dos sobreviventes das bombas atômicas, com as doses recebidas por eles; e os dados obtidos foram extrapolados, linearmente, para a dose de 1,7 mSv/ano.
Esse modelo de relação dose-resposta, conhecido pela sigla LNT (Linear No Threshold), foi, de certa forma, legitimado em 1972 pelo Biological Effects of Ioninzing Radiation (BEIR), primeiro comitê consultivo da academia americana de ciências, criado especificamente para estudar os efeitos biológicos das radiações ionizantes em doses baixas. Desde então, o modelo vem sendo adotado pelos principais órgãos de proteção radiológica do mundo, e é utilizado, ainda que a revelia deles, para fazer previsões de “quantas” pessoas expostas (em exames radiológicos, em acidentes nucleares, em locais de alto nível de radiação natural etc.) irão morrer de câncer radio-induzido.
Embora a mídia conceda bastante espaço para essas “previsões”, vistas como “cientificamente” bem estabelecidas, o fato é que o modelo LNT, no qual elas se baseiam, superestima os efeitos e sempre foi cercado de certa desconfiança, o que pode ser verificado a partir de pelo menos dois dados importantes:
I – Mesmo com a forte pressão da opinião pública, temerosa dos efeitos dos inúmeros testes nucleares do período da Guerra Fria, o limite para indivíduos do público foi reduzido para 1 mSv/ano, valor mantido até hoje, o que indica que o fator de redução foi 1,7 e não dez, como sugerido pelo relatório BEIR de 1972;
II – O relatório BEIR III, de 1980, que revisou os dados estudados pelo primeiro comitê BEIR, e acompanhou os sobreviventes da bomba atômica de 1950 a 1974, divergiu do primeiro relatório, não legitimando o modelo LNT.
A falta de consenso dentro do BEIR III foi de tal ordem que a conclusão do relatório foi adiada por vários meses, e foi necessário, inclusive, que o presidente do comitê fosse substituído por um membro externo para que o relatório pudesse ser concluído. A divergência aberta pelo relatório de 1980 foi contornada, pelo menos dentro da Academia Americana de Ciências, pelos relatórios BEIR IV (1990) e BEIR VII (2006) os quais, usando o modelo LNT, concluíram que a radiação ionizante, mesmo em doses baixas, aumenta a frequência de casos de câncer. Um dos problemas desses relatórios é que eles não explicam por que os estudos epidemiológicos realizados em locais de alto nível de radiação natural, como em Guarapari, no Espírito Santo, ou em Kerala, na Índia, não revelam qualquer aumento na frequência de casos de câncer.
No outro lado do Atlântico, a Academia Francesa de Ciências diverge desses relatórios, e considera que apenas estudos epidemiológicos, com habitantes de locais que apresentam alto nível de radiação natural, são realmente adequados para estudar os efeitos biológicos em doses baixas. Os sobreviventes das bombas nucleares lançadas contra o Japão, sobre os quais se concentram os principais estudos epidemiológicos, não constituem um grupo apropriado, visto que os indivíduos estiveram expostos a doses altas de fontes de radiações variadas (raios gama, nêutrons, partículas oriundas da fissão nuclear etc.). Em um relatório publicado em 2005, a Academia Francesa sustenta que, para doses inferiores a 100 mSv, os estudos epidemiológicos, mesmo aqueles realizados com os sobreviventes japoneses, não apresentam dados estatisticamente significativos que apoiem o modelo LNT.
De fato, o acompanhamento de 27.980 sobreviventes, que teriam recebido uma dose de raios gama na faixa de 5 mSv a 100 mSv, detectou o excesso de 81 casos de câncer quando comparado a uma população americana usada como referência. Esses casos, observados ao longo de 40 anos de acompanhamento, representam menos do que 0,3% da população alvo, número bem menor do que a margem de erro da pesquisa e que poderia ser explicado por qualquer um dos inúmeros fatores que afetam o nível de confiança de estudos dessa natureza.
A Academia Francesa traz dados que mostram que a célula irradiada não se comporta “passivamente” e reage acionando mecanismos que, em baixas doses, podem anular os radicais livres produzidos pela radiação, reparar os danos sofridos pela molécula de DNA e eliminar as células não reparadas adequadamente. O modelo LNT ignora esses mecanismos de defesa. Em essência, os estudos trazidos pelo relatório francês assinalam que os mecanismos de defesa celular, para doses inferiores a 100 mSv (cerca de 40 vezes a média anual de radiação natural), têm se mostrado eficientes o bastante para anularem os efeitos das radiações. Isso explicaria a não observação de aumento na frequência de casos de câncer em habitantes de regiões de alto nível de radiação natural. Poderia explicar, também, por que o número oficial de vítimas fatais de câncer radio-induzido do acidente de Chernobyl, por exemplo, ficou bem abaixo das previsões baseadas no modelo LNT, o qual, para a Academia Francesa, deveria ser aplicado apenas em populações submetidas a doses superiores a 200 mSv, faixa na qual ele foi realmente observado com uma margem de confiança aceitável.
Trata-se, portanto, de uma controvérsia aberta, que envolve elementos que tentam se articular e alistar o maior número possível de aliados com o propósito de transformar em fatos científicos seus argumentos. Embora tenha raízes na década de 1950, a controvérsia ganhou força a partir do final da década de 1960, intensificou-se a partir de 2005 com o relatório francês e, se considerarmos que alguns cientistas defendem que, em doses baixas, poderiam ocorrer até mesmo efeitos benéficos (hormese) no indivíduo exposto, percebe-se que um razoável consenso sobre os reais efeitos das radiações ionizantes em doses baixas ainda precisa de mais tempo para ser plenamente alcançado.
Mário Ferreira ( mario.jferreira@uol.com.br ) é professor de física da Universidade Estadual da Bahia. Mais informações sobre o tema podem ser obtidas em sua tese de doutorado “A controvérsia do efeito das radiações ionizantes em doses baixas e sua recepção no Brasil”, defendida no Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, da UFBA/UEFS.
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