Reportagem |
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Ficção e ciência: universos paralelos sobrepostos |
Por Keila A. Baraldi Knobel
10/03/2014
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Se você não tem muito contato com a Teoria Quântica e seus desdobramentos e mesmo assim (ou, por isso mesmo) resolver assistir a uma aula sobre o assunto, pode ter a nítida impressão de que entrou na sala errada. Ficção científica? Literatura fantástica? Não, é aula de física mesmo. Se estiver disposto a desafiar seus conceitos anteriores sobre o Universo, vai constatar que a ciência pode mesmo ser tão esquisita, anti-intuitiva e ao mesmo tempo tão impressionante quanto a ficção científica. E, indo além, pode-se até dizer que a ficção científica e a ciência são universos paralelos sobrepostos, que interagem continuamente no espaço e no tempo.
A história vem mostrando que ficção não só alimenta, mas também antecipa as possibilidades e os medos que acompanham o desenvolvimento da ciência. Exemplos não faltam. Em O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941), o escritor Jorge Luis Borges concebeu um labirinto temporal impressionantemente parecido com a teoria posteriormente publicada pelo físico norte-americano Everett III em 1957. Nenhum registro indica que Everett tenha lido o conto de Borges, mas o fato é que ambos propuseram que o Universo se divide perpetuamente em muitos mundos que coexistem lado a lado. A solução do cientista foi considerada fantasiosa na época, mas vem sendo reavaliada com bastante seriedade por físicos teóricos, e em 2007 foi tema de um número especial da consagrada revista Nature.
Muito do que antes só era visto em revistas em quadrinhos, livros e filmes, hoje faz parte da vida cotidiana. Veículos que andam sem condutores, robôs-aspiradores de piscina, telefone com vídeo, terapia genética, clonagem de animais extintos, óculos inteligentes e turismo espacial (esse, ainda para poucos). Até mesmo uma possível e tão desejada capa de invisibilidade, proporcionada pelo avanço da nanotecnologia. James Kakalios, professor da Escola de Física e Astronomia da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, e autor do livro The physics of super heroes (Gotham Books, 2009), propôs uma equação simples que aos poucos vem sendo comprovada: fato científico é igual à ficção cientifica mais tempo.
Na escola
Pesquisadores e educadores encontraram na ficção científica um material riquíssimo para a análise de diversos aspectos da sociedade. Tanto que, desde 1970, a Associação de Pesquisa em Ficção Científica (Science Fiction Research Association) apoia a criação de materiais educativos baseados no gênero, tanto quanto auxilia o lançamento de novos livros, revistas e filmes e organiza conferências sobre ficção científica. Em 2013 os conferencistas apresentaram trabalhos sobre como filmes, séries de TV e livros de ficção científica abordaram temas como etnicidade e hibridicidade, trabalho e capital, masculinidade, feminismo e família, deficiências, diferenças e misoginia, além de tópicos sobre filosofia de educação apresentados na série Harry Potter. Imagine, então, como seria aprender ciências a partir do mundo mágico criado por J.K. Rowling. É o que propõe o professor George Plitnik, da Frostburg State University em Maryland, Estados Unidos, onde oferece um curso no qual explora conceitos da física, biologia, química e engenharia a partir da série Harry Potter. Para quem se interessou, o livro The science of Harry Potter: how magic really works (Penguin Books, 2003, sem tradução no Brasil), de Roger Highfield, pode, entre outras coisas, ajudá-lo a entender o continuum espaço-tempo a partir da análise do livro O prisioneiro de Azkaban.
Para Rodolfo de Azevedo, professor associado do Instituto de Computação da Unicamp e coordenador do projeto “Matemática e ciências sem fronteira na educação básica”, atividades educativas formais desenvolvidas a partir da ficção científica são viáveis, mas ainda pouquíssimo exploradas no país. Ele considera que projetos de educação não formal como fã clubes sejam mais efetivos no momento, e levem seus membros a aprender mais sobre a ciência que permeia a ficção. Azevedo considera que a ficção científica aproxima os adolescentes da ciência “de verdade”, e também serve como modelo de comportamento.
A relação dos cientistas: inspiração ou crítica
Azevedo lembra que o primeiro celular da Motorola do estilo flip não foi bem recebido pelos usuários. Ao analisar o modelo, um projetista aficionado por Star Trek disse que o flip deveria abrir para cima, e não para baixo. Isso levou a empresa a lançar em 1996 o modelo Startac, que foi um dos maiores sucessos.
De fato, a série Star Trek, da década de 1960, parece ter inspirado a tecnologia atual em muitos aspectos. Além do comunicador com flip do Capitão Kirk, podemos citar, entre muitos outros exemplos, o computador pessoal do Capitão Picard (um precursor do iPad), o comunicador que Uhra usava no ouvido (atual fone por bluetooth) e o tradutor universal usado pelo oficial de comunicação da Enterprise, Ensign Hoshi Sato. Das telas para a realidade: o comunicador com flip do Capitão Kirk, o computador pessoal do Capitão Picard, o tradutor universal e o comunicador que Uhra usava no ouvido.
Ainda mais impressionante é constatar que, ainda que muitos dos artefatos apresentados pela ficção científica atual não existam, teorias científicas preveem a possibilidade real de sua existência, e até o teletransporte, comum em filmes do gênero, deixou de ser irreal para um grupo de pesquisadores austríacos há uma década. Eles conseguiram teletransportar fótons de um lado ao outro do rio Danúbio. Não é exatamente o que se espera do teletransporte para o dia a dia, mas já é bastante promissor.
Apesar do bom relacionamento, por vezes a aproximação entre a ciência e a ficção científica dá-se pela crítica. O astrônomo americano Phil Plait sentiu-se tão compelido a corrigir os conceitos equivocados sobre astronomia que via (e vê) na televisão e no cinema que criou o blog Bad Astronomy e, em 2007, abandonou o emprego na Universidade de Sonoma, Califórnia, para dedicar-se a escrever livros sobre o assunto. Embora se considere um fã de ficção científica, Plait não poupa críticas ao gênero, e até alimenta uma lista de filmes que trazem conceitos incorretos sobre astronomia. “Esses filmes impactam muitas pessoas, e se eles estão errados, eu posso ao menos usar a oportunidade para ensinar uma boa astronomia. É óbvio que esses filmes são de ‘ficção’, mas por que não usar a ficção para mostrar algum fato?”, sugere o astrônomo.
Atendendo aos fãs mais exigentes, o diretor Joseph Kosinski promete ser mais fiel ao que a ciência sabe sobre os buracos negros para o remake do clássico filme Abismo negro (The Black Hole, Disney, 1979), ainda sem data de lançamento, já que o original trazia muitos erros de astronomia. Se eles conseguirem tantos acertos nos conceitos da física quanto conseguiu a recém-lançada animação As aventuras de Peabody & Sherman (Mr. Peabody and Sherman, DreamWorks, 2014), crianças e adultos estão com diversão e boa informação garantidas. Peabody é um cão-magnata-cientista-campeão-olímpico-prêmio Nobel que, embora seja extremamente formal e reservado, é totalmente dedicado ao seu filho adotivo, o garoto Sherman. Eles viajam juntos em uma máquina do tempo para que Sherman aprenda história e ciência interagindo diretamente com grandes momentos da humanidade. Dentre vários conceitos apresentados no filme, destaca-se a cena em que a máquina do tempo se aproxima de um buraco negro. Desesperado para tirá-los de lá, Peabody explica que buraco negro é uma região no espaço com tanta gravidade que nada, nem mesmo a luz, escapa à sua atração. E acrescenta que, se eles não conseguissem escapar do campo gravitacional do buraco negro, seriam completamente esmagados. Assim, o elemento foi tratado de modo mais próximo ao que é aceito atualmente, diferentemente da errônea ideia de que o buraco negro seria como um aspirador de pó que suga para um “buraco sem fim” tudo que cruza seu caminho.
Usando a ficção científica como pano de fundo para uma comédia romântica, o roteirista e diretor Claudio Torres faz referências diretas à física quântica em seu filme O homem do futuro (2011). João, interpretado por Wagner Moura, é um professor de física frustrado que, desde a época da faculdade, tenta criar uma equação geral para o Universo. Em uma das primeiras cenas do filme ele fala impacientemente a seus alunos, entediadíssimos, “a força da gravidade torna buracos negros tão pesados que eles furam o tecido do espaço e, portanto, do tempo”. Em outra cena, João relembra a fala do professor da faculdade de que “a Teoria das Supercordas garante a existência quântica de múltiplos universos onde cada bifurcação provocada por uma viagem no tempo provocaria a existência de uma nova realidade”, e isso o inspira a criar uma máquina que o levaria de volta a 1991, ano em que teve uma grande decepção amorosa.
Claudio Torres falou com exclusividade à ComCiência sobre a produção de filmes do gênero. “A ficção bebe e se atualiza na ciência, e a ciência, por vezes, persegue as ideias e o design propostos pela ficção científica. Acho impressionante como o iPhone 5 se parece com o monólito de 2001: Uma odisseia no espaço”, diz. Sobre as referências à física de seu filme, o diretor afirmou não ter precisado de auxílio. “Sou amante da ficção cientifica desde criança. Consumo livros, filmes, artigos e documentários e o gosto por este gênero me deu uma base (bem superficial) sobre as teorias quânticas. Como o Homem do futuro foi concebido para entretenimento, a ciência deveria ser simples, então escrevi sem auxilio técnico científico”, diz.
Sejam alvos de inspiração ou críticas, os filmes de ficção científica seguem com dificuldades frente à resistência em produzi-los, devido aos resultados de bilheteria. “É incrível, mas esses filmes não rendem muito em nenhum lugar do mundo. É lógico que existem alguns como Guerra nas estrelas, Avatar e outros, mas Blade Runner, por exemplo, foi um fracasso. Não são filmes baratos. São difíceis de financiar, de encontrar exibidores. Os estúdios não compram, os cinemas não se interessam, o público é fiel, mas não muito grande”, relata o diretor.
Ao que parece, a despeito da realidade mercadológica do gênero, a ficção científica seguirá oferecendo ao público realidades otimistas com soluções tecnológicas que vão muito além do que já foi imaginado, críticas à sociedade por meio de uma visão apocalíptica e novos desafios científicos, tecnológicos e sociais.
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