10/06/2014
“Há uma enorme diferença entre a mediocridade de um homem e sua crueldade”. A depender do contexto em que se insira tal afirmação, esta pode ser interpretada como coerente, inofensiva ou até banal. Porém, se o contexto se tratar de um cenário de guerra e horror, e se a crueldade em questão tratar-se do Holocausto, o pensamento por detrás pode sofrer críticas severas e ter impactos inimagináveis numa sociedade. É o que mostra o filme Hanna Arendt, da diretora alemã Margarethe von Trotta, lançado em meados de 2013.
O filme narra um episódio tumultuado da vida da renomada cientista política Hanna Arendt: o período no qual acompanhou o julgamento do ex-oficial nazista Adolf Otto Eichmannn e o momento posterior, no qual escreveu, para o jornal americano The New Yorker, cinco artigos obre o ocorrido, totalizando trezentas páginas.
Eichmannn foi tenente-coronel da organização militar Schutzstaffel (SS) – “Tropa de Proteção”, em português – ligada ao partido nazista alemão. Ele foi acusado, culpado e executado pelo tribunal de Nuremberg, em Israel, por ter sido o principal responsável pela logística de identificação e transporte, para os campos de concentração, dos judeus capturados durante o nazismo.
À época da escrita dos artigos, Arendt já era reconhecidamente uma das grandes pensadoras de seu tempo. De origem judaica, estudou filosofia com grandes nomes como Martin Heidegger e foi exilada da Alemanha no início do Terceiro Reich, quando passou a viver na França. O apoio deste país ao governo alemão durante a guerra, fez com que fosse exilada num “campo de controle”, do qual fugiu para os Estados Unidos, onde viveu até sua morte. Desde muito nova estudou e escreveu sobre política e sobre a condição do homem em tempos difíceis, como a guerra.
Arendt não se considerava nem pertencente, tampouco aceita ao círculo filosófico europeu de sua época, como mostra a entrevista Zur Person , gravada em 1964 pela TV alemã. A escritora definia com bastante clareza seu lugar no hall dos pensadores alemães: dizia-se teórica política.
A obra Eichmannn em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, que reúne na íntegra os cinco artigos publicados no The New Yorker e no qual se baseia o filme de 2013, não foi a mais reconhecida de sua carreira, mas com certeza, a mais polêmica. Originalmente lançada em 1964, apresenta uma espécie de análise filosófica sobre o julgamento, na qual é cunhado um dos mais repercutidos conceitos de Arendt: a banalidade do mal. É propriamente a interpretação errônea deste pensamento, talvez o cerne dessa obra, que lança a cientista a um turbilhão crítico-emotivo na sociedade europeia pós-nazista, principalmente entre os judeus alemães.
O estardalhaço causado pela obra partiu do inconformismo frente à descrição feita pela teórica sobre Eichmannn e sobre a banalidade do mal que cometera, segundo ela, um mal comum, realizado por um sujeito ordinário. A caracterização de um ex-oficial do Holocausto como um homem absurdamente normal, e não um monstro atroz e sanguinário, vinda de uma pensadora judia perseguida durante a guerra, provocou verdadeira histeria nas comunidades judias e alemãs. Arendt foi acusada de antissionismo, antissemitismo, deserção.
A banalidade do mal foi o conceito que Arendt criou para designar o mal por vezes medonho praticado por sujeitos normais e muitas vezes sociáveis. Para ela, o grande mal não era aquele causado por psicopatas, posto que estes, a priori, já se enquadravam nos desvios da sociedade. O que realmente amedrontava a pensadora era o mal comum, propagado pelas pessoas “de bem”. O mal banal, banalizado, mesmo na sua total loucura. Foi desse mal que Arendt tratou na análise do acusado Eichmann.
Como mostra o filme de Von Trotta, o esforço da pensadora alemã em compreender, acima de julgar o acusado, em tratar seu discurso e posicionamento perante a corte de Nuremberg de um ponto de vista filosófico, foi entendido como traição no contexto social no qual ocorreu a publicação de seus artigos. O genocídio dos judeus havia se encerrado há vinte anos, mas as marcas dos horrores dos campos de concentração não se apagariam da história alemã, e estavam tão sacralizadas na memória mundial que não se permitia, para esse assunto, nenhum tipo de questionamento sobre os estatutos do bem e do mal, muito menos sobre qualquer tipo de inversão a respeito de quem os representava. Intencionalmente ou não, ingenuamente ou não, aos olhos da comunidade mundial, foi exatamente o que fez Arendt ao publicar Eichmannn em Jerusalém.
No livro, além de discutir a banalidade do oficial alemão e seu “mal praticado”, Arendt faz menções sobre a parcialidade de alguns líderes judeus mediante o horror do massacre. O filme demonstra que, para a pensadora, a possível conivência de certos líderes judeus com o governo nazista, antes por uma opção dúbia do que por uma obrigação declarada, contribuiu para que houvesse menos caos e menos miséria durante o nazismo, porém mais mortes. Não que ela acreditasse ser provável a resistência desses líderes perante as ordens do Führer, mas talvez fosse possível algo que estivesse entre esta e a colaboração.
A interpretação de que a teórica pudesse culpar chefes judeus pelo Holocausto causou uma comoção internacional contra os artigos e contra a própria pessoa de Arendt. O filme mostra acusações extremamente pesadas que ganharam o âmbito do ataque pessoal e até da ameaça. Ao sugerir a conivência de judeus no seu próprio massacre, aos olhos da maioria dos críticos de seu tempo, a pensadora utilizou-se dos mesmos argumentos postos na corte por Eichmann, dentre eles a declaração aterradora de que a situação instaurada pelo Holocausto se tratava de uma questão não apenas da ascensão de um louco ao poder mas, antes, de um comportamento humano comum, moldado pela época, pela educação, pela ideologia disseminada e pelo serviço militar.
Arendt argumentava que o julgamento deveria ser, por justiça, de um homem por seus atos. Não se julgava um sistema, nem a história, mas uma pessoa. E, nesse sentido, Eichmann se colocava como um burocrata, um homem contido num contexto em que as regras morais haviam sido completamente transfiguradas, no qual era necessário cumprir ordens.
Analisando o discurso do acusado e intrigada por tais declarações, Hanna Arendt caracterizou-o como um homem insuportavelmente normal, e não um monstro. E foi partindo dessa massacrante normalidade que ela teorizou sobre a banalidade do mal, a indiferença dos males cometidos por homens comuns, sem convicção, sem razão maligna ou motivo: apenas seres humanos que, dadas certas circunstâncias, se recusam simplesmente a ser pessoas. Para ela esse contexto fez com que Eichmann abdicasse da característica que mais define o homem como tal: a de ser capaz de pensar. Sem pensar, ele se tornou incapaz de fazer juízos morais. E, sem juízos de valor, ele apenas cumpriu seu juramento, abdicando de sua consciência.
Ao pensar o julgamento de um nazista como um tratado de filosofia moral, Arendt causou uma verdadeira fissura paradigmática na sociedade mundial pós-guerra. Nunca antes ninguém havia ousado tratar o nazismo suspendendo-o da emoção e não subjugando-o à comoção. Por ter feito isso, foi acusada de se utilizar da retórica para perdoar um dos maiores crimes contra a humanidade do século XX e para legitimar a atitude daqueles que contribuíram com ele. Entretanto, o que parece é que Arendt se permitiu uma suspensão de qualquer julgamento em detrimento da manifestação do ato de pensar. Ato cuja incapacidade, segundo ela, permitiu que muitos homens comuns cometessem feitos cruéis numa escala monumental. Ao que parece, o pensar, para Arendt, era tido como o único vislumbre passível de conduzir à salvação em meio à catástrofe de tempos sombrios, seja a catástrofe do mal, seja a do próprio bem.
Arendt levou ao extremo sua estima pelo pensar. Mesmo não se considerando uma filósofa no que tange à obra Eichmannn em Jerusalém, ela parece ter levado o exercício do pensamento, matéria circunstancial da filosofia, ao extremo radical que quase beirou o absurdo. Muitos criticaram sua obra categorizando-a desde inocente até arrogante. Alguns poucos admiraram sua coragem de enfrentar o tabu histórico que se tornou o Holocausto para a Alemanha. Independentemente da certeza ou não de uma banalidade do mal, é fato que o antissemitismo na nação era propagado desde séculos antes da ascensão de Hitler.
Na sua análise de Eichmann, parece que tentar entender, para Arendt, não foi a mesma coisa que perdoar. A pensadora nunca se colocou a favor do acusado. Colocou-se, apenas, contra sua culpabilização pela morte de seis milhões de judeus. E se colocou realmente disposta a refletir sobre um veredicto, ao invés de aceitar aquele que já estava dado desde muito antes do julgamento sequer se iniciar.
Hanna Arendt
Direção: Margarethe Von Trotta
Ano: 2013
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