Desde o seu
reconhecimento em 1981, a Síndrome da
Imunodeficiência
Adquirida (Aids) vem fazendo vítimas em número
cada vez
maior. São 25 anos de pesquisas para encontrar
soluções
profiláticas e terapêuticas em que algumas
conquistas
importantes foram alcançadas. No entanto, o impedimento do
avanço dessa doença implacável tem
sido um
fracasso. Hoje, os números que aparecem são de
mais de
40 milhões de infectados, sendo que cerca de 2
milhões
de crianças e 60% desse total está na
África
subsaariana. Esses números são mais do que 50%
das
estimativas da Organização Mundial da
Saúde
(OMS), feitas em 1990 para 2005.
Mas,
quais são as razões para isso? As patentes
são o
único vilão da história, ou
além delas
existem outros? O que poderia ser feito para reverter esse quadro
sombrio? Qual a responsabilidade dos governos e organismos
internacionais nesse processo?
Para
responder a essas perguntas é necessário
visualizar
todos os fatores determinantes do sucesso de um programa de controle
da doença. O acesso aos medicamentos e a barreira que as
patentes representam são alguns dos aspectos a serem
considerados nessa guerra contra o HIV (Vírus da
Imunodeficiência Humana). Eles são inegavelmente
muito
importantes e representam a diferença entre a
esperança
de uma boa qualidade de vida para os pacientes de Aids e para os
infectados pelo HIV e o desespero e dor pela morte iminente.
O
entendimento da problemática envolvida requer uma abordagem,
ainda que de forma simplificada, de alguns dos principais componentes
de um programa integrado de controle da Aids pertinentes a qualquer
país.
Elementos
essenciais da profilaxia e tratamento
A
determinação do momento em que um
indivíduo
infectado pelo HIV deve iniciar o tratamento anti-retroviral, bem
como o monitoramento dos indivíduos que já
estão
em tratamento, são feitos por uma
avaliação
clínica que é complementada por
métodos
laboratoriais, principalmente através da contagem de
células
T-CD4+ (avalição do grau de
imunodeficiência do
paciente) e pela quantificação da carga viral
(avaliação da quantidade de vírus no
sangue do
paciente). Esse acompanhamento é importante no
estabelecimento
do tratamento adequado.
O
acesso aos medicamentos é, sem dúvida alguma, um
fator
preponderante no controle da doença. Esse acesso envolve
vários fatores, tais como produção
suficiente de
intermediários químicos e de
princípios ativos,
garantia da qualidade dos produtos disponíveis no mercado,
preços razoáveis para
aquisição pelo
paciente ou pelo programa governamental (nos raros países em
que ele existe) e logística adequada para garantir a
disponibilidade, em termos de quantidade e no momento de necessidade,
para o paciente. A administração do conjunto
desses
fatores é altamente complexa, especialmente em
países
onde há dificuldade de acesso às áreas
rurais, e
requer a decisão política de considerar o
controle da
Aids uma prioridade de governo. O Brasil tomou essa decisão,
conseguiu superar esses obstáculos e se tornou um exemplo a
ser seguido por todos os países, inclusive os desenvolvidos.
O
acesso à assistência médica
é outro fator
preponderante no tratamento e acompanhamento dos pacientes de Aids e
dos indivíduos infectados pelo HIV, como o que é
feito
em centros de referência em Aids, por exemplo, o da
Coordenação
do Programa Estadual de DST/Aids.
Por
fim, a assistência farmacêutica também
fica
seriamente comprometida pela não
priorização da
política social e pela descontinuidade de outras
políticas
que afetam a disponibilidade de medicamentos, tais como a
política
industrial (produção de fármacos e de
remédios),
de pesquisa e desenvolvimento (por exemplo, engenharia reversa para
produção de fármacos e medicamentos
conhecidos),
de importação e exportação
para criar
ambiente favorável à
produção local de
medicamentos e outras de igual importância. Em linhas gerais,
a
assistência farmacêutica compreende a
seleção,
programação, aquisição,
armazenamento e
distribuição, controle de qualidade e
utilização
de medicamentos. No caso da Aids, essas ações
são
centralizadas e promovidas pelo Programa Nacional de DST e Aids em
colaboração com as
coordenações dos
Programas Estaduais de DST/Aids. Além dessas atividades, a
assistência farmacêutica também
é
responsável por campanhas de esclarecimento que
são
fundamentais na abordagem profilática do controle de
transmissão da Aids. Vale ressaltar que o Brasil tornou-se
referência para o mundo ao estabelecer a premissa da
essencialidade de unir prevenção e tratamento.
Por
que as patentes têm tanta influência no acesso ao
tratamento?
Cada
cidadão sente o peso no bolso de um medicamento patenteado
quando vai à farmácia comprar um
remédio. Todos
sentem, mas não sabem porque isso acontece. Por
exemplo, somente uma pequena parcela da população
que
sofre de hipertensão pode comprar o anti-hipertensivo
Lipitor
ou Citalor devido ao seu elevado preço. A
explicação
para isso é que esses medicamentos estão
patenteados no
Brasil. Da mesma forma, os medicamentos anti-retrovirais Nelfinavir,
Kaletra e Tenofovir consomem grande parte do orçamento do
Ministério da Saúde dedicado à
aquisição
de medicamentos. Não é por acaso que isso
acontece.
Esses remédios estão patenteados no Brasil.
O
Brasil é um dos poucos países do mundo que
fornece os
medicamentos anti-retrovirais gratuitamente, mas o gratuito significa
que o povo paga esses elevados custos. Um outro fato preocupante em
relação à
sustentação do Programa
Nacional de DST/Aids é o elevado preço pago pelos
medicamentos patenteados, mesmo comparando com os países em
estágio de desenvolvimento equiparável ao Brasil
(países de renda intermediária – low-middle-income
countries). As diferenças mais gritantes
são com
relação aos remédios Kaletra (USD
1,17/comprimido no Brasil e USD 0,26/cápsula na
África
do Sul) e Tenofovir (USD 7,28/comprimido no Brasil e USD
4,62/cápsula
em El Salvador ou USD 2,50/cápsula no Irã).
Não
precisa ser brilhante economista para prever sério abalo na
sobrevivência do Programa Nacional DST/Aids se os
preços
dos remédios anti-retrovirais patenteados, praticados no
Brasil, se mantiverem nos atuais níveis.
Mas
não são somente os remédios que
têm preço
elevado por causa das patentes que os protegem da
concorrência
de livre mercado. Também a grande maioria dos kits de
diagnóstico e os reagentes estão sob patente, o
que
significa que o monitoramento e os “testes de Aids”
consomem
somas crescentes do Programa Nacional de DST e Aids e das secretarias
estaduais de saúde.
Por
que os produtos patenteados são mais caros?
A
patente é um privilégio, dado ao seu
proprietário,
de exploração exclusiva, por um certo tempo (20
anos),
de uma invenção. Isso significa, na
prática, um
monopólio, ou seja, a oposição
às leis de
livre mercado que impedem o aparecimento de concorrentes enquanto a
patente estiver em vigor.
O
que mais preocupa é a exigência sobre a
“qualidade
inventiva” da patente. A tendência mundial
é a
concessão cada vez maior das chamadas patentes incrementais.
Só para se dar um exemplo mais popular o Omeprazol, com
versão
genérica no mercado, é bem mais barato que o
Esomeprazol (Nexium), remédio que está patenteado
no
Brasil. E qual é a diferença entre esses dois
remédios?
No tempo, o Omeprazol foi sintetizado no final da década e
1970 e o Esomeprazol foi desenvolvido na década de 1990; na
constituição química, são
duas
substâncias iguais que diferem somente na sua
aparência
tridimensional (são os chamados isômeros). A
passagem do
Omeprazol para o Esomeprazol foi feita usando técnicas muito
conhecidas de separação de compostos
químicos.
Portanto, neste caso, os chamados “vultosos
investimentos”
alegados pela indústria farmacêutica
não têm
sustentação lógica, porque, na
verdade, eles não
existiram. Foi mais uma “invenção de
marketing”, ou
seja, uma modificação para
“reviver” uma patente
prestes a expirar do que uma “invenção
de nova
molécula”. Vale acrescentar que, mesmo que haja
algum
benefício terapêutico devido ao incremento
tecnológico,
poder-se-ia premiar esse aperfeiçoamento com um tipo
diferenciado de proteção, mas nunca com os 20
anos de
vigência de patente concedida para uma
“invenção
real”.
Esses
casos são cada vez mais comuns. Por exemplo, o Lopinavir (um
dos componentes do Kaletra) é uma
modificação
química do Ritonavir (o outro componente do Kaletra). E
há
outros casos mais escabrosos, as chamadas
“combinações
de dose fixa” (em inglês fixed dose
combinations) são
remédios que resultam de técnicas de
produção
farmacêutica sobejamente conhecidas. Outro exemplo
impressionante dessas “patentes incrementais”
é o caso do
Tenofovir, cuja patente expira este ano (2006), mas que já
foi
requerida uma nova patente para o sal de Tenofovir que é
obtido por processo químico amplamente conhecido e simples.
Há
meios para reduzir o impacto causado pelas patentes no acesso ao
tratamento?
Desde
a entrada em vigor do Acordo de Aspectos de Direitos de Propriedade
Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, na sigla em
inglês), um dos acordos da Organização
Mundial do
Comércio (OMC), em 1995, ficou mais difícil a
implementação de políticas de
saúde em
todos os países membros da OMC (ou seja, praticamente todos
os
países do mundo). As regras que acabaram predominando, no
Trips, foram aquelas impostas pelos Estados Unidos e, em menor grau,
pela Comunidade Européia e Japão. No entanto,
algumas
medidas ainda podem ser aplicadas, apesar da dificuldade em fazer
prevalecer a prioridade da saúde sobre a propriedade
intelectual como firmado na Declaração de Doha. A
aplicação da licença
compulsória é
uma delas e é a mais importante.
Então
por que, nos países em desenvolvimento (os que mais
precisam),
é tão difícil aplicar a
licença
compulsória?
É
simples: dinheiro e poder da mais importante potência mundial
–
os Estados Unidos da América do Norte. Basta um simples
anúncio de aplicação de
licença
compulsória feita pelo governo de um país em
desenvolvimento, como tem acontecido com o Brasil, para suscitar a
ameaça da aplicação unilateral de
sanções
comerciais pelos Estados Unidos. Além das
ameaças,
existem práticas mais sutis, tal como o
“presente” que foi
oferecido recentemente (abril/2006) para a Tailândia de
favorecimentos comerciais em troca da não
aplicação
de licença compulsória e
produção de
genéricos. Vale lembrar que os Estados Unidos da
América
são o país que mais aplica a licença
compulsória, inclusive para patentes
farmacêuticas.
Alguns exemplos de licenciamento compulsório de patentes
farmacêuticas nos Estados Unidos são: patente de
produtos de citocina de propriedade da Novartis (1997), patente da
substância 9-AC (utilizada no tratamento de câncer)
de
propriedade da Pharmacia & Upjohn (1995), patente da
diciclomina
de propriedade da Dow Chemical (1994).
Resumo
da história
Enquanto
não houver compromisso dos governos na
adoção de
medidas que tornem a saúde mais importante do que a
propriedade intelectual (Declaração de Doha) e
omissão
dos organismos internacionais, como a OMS e a OMC, no enfrentamento
das dificuldades/adversidades e pressões do governo dos
Estados Unidos da América e das empresas multinacionais
produtoras de remédios inovadores e genéricos
continuaremos a assistir o genocídio institucional das
populações dos países, principalmente
da África
subsaariana. Mas, é preciso lembrar que os vírus
e
outros microrganismos não reconhecem fronteiras e sabem
criar
suas próprias armas para resistir às defesas de
organismos que involuntariamente os hospedam, inclusive o homem. Eles
viajam em navios, aviões e transportes terrestres,
atravessando países e fazendo vítimas cada vez em
maior
número.
Infelizmente,
este é o saldo de 25 anos convivendo com o Vírus
da
Imunodeficiência Humana.
Maria
Fernanda Macedo é consultora em propriedade intelectual.
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