Obras
raras não são amadas apenas por bibliófilos apaixonados que
investem tempo e somas consideráveis na formação de suas coleções
particulares. Livros, manuscritos, teses e periódicos únicos pelas
suas características podem também se tornar objeto de desejo de
pesquisadores que precisam de informações específicas para seus
projetos. Para esses profissionais, as seções de obras raras de
bibliotecas – tanto no Brasil quanto no exterior – se tornam,
portanto, uma essencial fonte de dados.
A
necessidade de consulta a esse material especial depende do tema e
período estudado pelo pesquisador. Em algumas situações, as
respostas a suas questões de pesquisa podem levá-lo para longe do
lugar onde a sua dúvida se originou. Esse foi o caso da física
Cibelle Celestino Silva, professora do Instituto de Física de São
Carlos da Universidade São Paulo (USP) e pesquisadora colaboradora
do Grupo de História e Teoria da Ciência da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), de onde saiu rumo a Washington (EUA). O estudo
da correspondência entre um pesquisador francês e um colaborador
próximo, necessário ao seu pós-doutoramento, foi o principal
motivo da pesquisadora ir à capital norte-americana por seis meses
em 2004, como pesquisadora residente da Dibner Library, do
Smithsonian Institution. A Dibner Library é a seção de livros e
manuscritos raros relacionados à história da ciência e da
tecnologia e reúne 35 mil livros e dois mil manuscritos, muitos
deles produzidos entre os séculos XV e XIX. Foi lá que a
pesquisadora estudou as cartas trocadas entre o pesquisador Jean
Antoine Nollet (1700-1770) e o seu colaborador mais próximo, um
fabricante de instrumentos chamado Etienne-François Dutour.
Esses
manuscritos não possuem cópias e, apesar de haver livros
importantes que abarcam o período desses documentos, a pesquisadora
os usou como fonte para esclarecer alguns aspectos relacionados ao
debate que ocorria à época sobre determinados fenômenos elétricos,
informações importantes para o seu projeto a respeito da história
da eletricidade no século XVIII. “Nesse período, coexistiam
várias explicações diferentes para os fenômenos elétricos e a
Dibner Library possui um dos melhores acervos do mundo sobre
eletricidade no século XVIII”, explica Celestino Silva. Além das cartas,
obras do pesquisador francês também foram fonte de consulta para
ela. “Mas o que tornou minha ida a essa biblioteca realmente
necessária foi o estudo da correspondência entre Nollet e Dutour”,
afirma a pesquisadora.
Por
situação parecida passou o pesquisador Alexsander Lemos de Almeida
Gebara, professor de história da África na Universidade Federal
Fluminense. A pesquisa para seu doutorado, sobre o explorador inglês
Richard Francis Burton, o levou em 2004 para Londres, mais
especificamente às estantes do Public Record Office, do
Foreign Office, onde estão reunidos documentos que cobrem mil anos
de história. “A principal questão, naquele momento, é que eu
tinha os relatos de viagem de Burton, mas não tinha acesso à
documentação produzida por ele quando cônsul na Baía de Biafra
(África)”, conta o pesquisador. “Então, para concluir a
pesquisa, eu precisava basicamente dessa documentação que se
encontra no Public Record Office”.
Ao
contrário do que se possa imaginar, o maior obstáculo a esse tipo
de empreitada não é a restrição do acesso ao documento. Para
Gebara, por exemplo, a principal dificuldade não foi exatamente a
busca, mas sim o manuseio das obras. “São delicadas e precisam de
cuidados especiais, como o uso de máscaras e luvas”, relata. Já a
física Cibelle Celestino Silva aponta a compreensão das caligrafias dos
diversos autores nos manuscritos como a parte mais difícil do
trabalho. “Isso pode até parecer estranho, mas é uma fase que
leva vários dias de leituras dos manuscritos até que seja possível
se sentir à vontade com a caligrafia”, comenta.
Se, por
um lado, as dificuldades existem, elas podem ser compensadas pelo
contato com obras bastante peculiares. O historiador Alex Gebara
avalia que a cópia mais rara que ele possivelmente tenha encontrado
seja a de um poema do explorador Burton, intitulado Stone talk.
“ Trata-se de uma sátira sobre a própria Inglaterra e suas
relações coloniais, particularmente com a Índia”, explica. De
acordo com o pesquisador, como se tratava de uma crítica bastante
forte ao governo inglês, a mulher de Burton procurou coletar e
destruir a maior parte das mil cópias publicadas, embora a autoria
do texto tenha sido “disfarçada” por Burton com o pseudônimo de
Francis Baker. Apesar do esforço da senhora Burton, algumas poucas
cópias escaparam ilesas. “Eu tive acesso a uma delas na British
Library”, conta Gebara.
E mesmo
quando não tem relação direta com a pesquisa, a visita às seções
de obras raras impressiona. A Dibner Library, nos Estados Unidos, por
exemplo, possui uma coleção de incunábulos (impressos dos
primórdios da invenção da imprensa) do final do século XV que
marcou a lembrança da estada de Cibelle Celestino Silva naquela biblioteca. Durante uma visita guiada, o diretor me mostrou uma edição dos Elementos de Euclides, publicada em Veneza em 1482, com uma
tiragem de apenas mil exemplares. Foi emocionante poder ver e tocar
uma obra tão importante para a história da ciência e, ao mesmo
tempo, tão antiga. Para ela, o interesse vai além da busca
direta por informações, mas passa também pela emoção de se tocar
em objetos que foram escritos há séculos, por pessoas de carne e
osso, em um período bem diferente do atual.
Além do
prazer do contato com obras tão especiais, possivelmente o maior
benefício está em encontrar informações disponíveis somente
nessas bibliotecas. Para Cibelle Celestino Silva, do ponto de vista
historiográfico, o uso de manuscritos permite buscar informações
que podem ter sido ignoradas por outros historiadores e que, muitas
vezes, não aparecem nos livros e artigos científicos publicados,
como erros, mudanças de ideia, especulações ou hipóteses
posteriormente abandonadas. “Há também um lado bem curioso,
porque entendemos como um determinado pesquisador costumava
explicitar suas ideias, dúvidas ou preconceitos para amigos e
colaboradores próximos, coisa que raramente faria em uma obra
publicada na forma de livro ou artigo”, revela.
“O
valor desse tipo de documento é imensurável porque é uma fonte
viva para os pesquisadores”, opina Jeorgina Gentil Rodrigues,
bibliotecária da Seção de Obras Raras A. Overmeer, da Biblioteca
de Ciências Biomédicas do Instituto de Comunicação e Informação
Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Essa seção
recebe, mensalmente, a consulta de dez a quinze pesquisadores e
alunos de pós-graduação stricto sensu, cuja formação está
relacionada às áreas de especialização do acervo: ciências
biológicas, medicina e história natural. Esses usuários vão,
principalmente, em busca dos periódicos nacionais e estrangeiros
disponíveis na seção, que somam 562 títulos com cerca de 15 mil
fascículos e integram o total de 40 mil volumes que compõem o
acervo de obras raras da biblioteca.
Tempos
modernos
Os
avanços do mundo digital facilitaram a vida dos pesquisadores que,
por um motivo ou outro, não podem se deslocar para a consulta
presencial a obras imprescindíveis para seu trabalho. Um exemplo
nesse sentido é a consulta virtual à Seção de Obras Raras da
Fiocruz, maior do que a presencial. Segundo a bibliotecária Jeorgina
Rodrigues, a seção atende de trinta a quarenta pedidos por mês
feitos por intermédio do serviço Comutação Bibliográfica
(Comut), que permite a obtenção de cópias digitalizadas de
documentos disponíveis no acervo.
Mais do
que facilitar, a digitalização e a internet podem ser as únicas
alternativas para o sucesso completo de determinado trabalho. Foi o
que ocorreu com o doutorado do físico João Paulo Martins de Castro
Chaib, que inclui a tradução integral do livro Théorie de
phènomènes électro-dynamiques, uniquemente déduite de
l’expérience, a principal obra sobre eletrodinâmica de
Ampère. Todo o trabalho de tradução foi possibilitado graças à
internet. “Consegui a versão reimpressa de 1990 do Théorie,
por meio do sistema integrado de bibliotecas do Cruesp (Conselho de
Reitores da Universidades Estaduais Paulistas) e, depois, a versão
de 1826 on-line pelo site Gallica, que
disponibiliza para download vários livros de domínio público que
constam no acervo da Biblioteca Nacional francesa”, explica. Esse
trabalho resultou na única tradução completa da obra em outra
língua e sua publicação, no formato de livro, já está sendo
estudada por Chaib e por seu orientador, André Koch de Torres Assis,
da Unicamp.
“Encontrar
outras publicações, artigos mais específicos e localizar certos
assuntos nos manuscritos foi mais trabalhoso”, comenta Chaib. Ele
explica ainda que precisou comprar alguns artigos e, mais uma vez, a
internet foi providencial, já que as bibliotecas e editoras enviavam
as fotos ou o artigo em formato pdf (para visualização no programa
Acrobat Reader, da Adobe). Mesmo com as facilidades oferecidas pelo
mundo virtual, Chaib foi à França, embora o motivo da viagem tenha
sido mais pessoal do que profissional. “O fato de ficar três anos
e meio respirando textos em francês me levou a viajar para Paris.
Mas aproveitei para digitalizar certos textos e figuras das edições
de 1821 e de 1824 do livro Précis élémentaire de physique,
de Jean-Baptiste Biot, para enriquecer futuros trabalhos”, conta.
Assim como a paixão do bibliófilo faz com que a obra rara não
tenha preço para ele, para o pesquisador, ainda que aproveite as
facilidades da digitalização, a experiência do contato com a
raridade continuará inigualável.
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