Se você ainda é jovem, imagine-se envelhecendo, passando dos 50 anos. Mais da metade da vida ficou pra trás. E o que você tem armazenado na memória é quase um filme, com inúmeras cenas com seus familiares, amigos, colegas de trabalho. E sua memória também armazena as coisas do dia a dia: a lista do mercado, telefones de pessoas próximas ou em qual armário você guarda cada coisa em sua casa. Mas com o passar dos anos, você se esquece de compromissos, que tinha que ir ao médico, ou qual o caminho para chegar na casa nova do seu filho. Imagine que ao redor dos 60, você se sinta cada vez mais confuso. Chega ao mercado, não acha a lista de compras e não se lembra direito o que precisa comprar. Vai ao banco e não sabe a senha. Com o passar de mais alguns anos, episódios de esquecimento começam a se tornar cada vez mais frequentes e, às vezes, nem mesmo de coisas antigas e marcantes você consegue se lembrar. Em conversas familiares, fica desorientado e constrangido, pois não se lembra do que estão falando ou, ainda pior, não se lembra que você anda esquecido.
Esses esquecimentos, que podem ser parte normal do processo de envelhecimento, dependendo da recorrência e da gravidade, são também alguns dos sintomas do Alzheimer, uma das formas mais comuns de demência, sendo responsável por cerca de 60% dos casos no mundo. A doença é marcada principalmente pela perda de memória, mas com o decorrer dos anos também afeta outras funções cognitivas, como a capacidade de concentração, linguagem, orientação e pensamento. Por isso, o Alzheimer debilita seriamente o indivíduo, tornando-o dependente de ajuda para realizar até mesmo tarefas simples do cotidiano, como se alimentar ou trocar de roupa, nos casos mais avançados da doença.
Estima-se que hoje ela afete a vida de 1,2 milhão de pessoas, somente no Brasil, ou um a cada 10 idosos acima dos 65 anos, e calcula-se que esse índice quadruplicará até 2050. Os custos econômicos associados ao Alzheimer ultrapassam 1% do PIB mundial, tendo sido estimados, em 2010, em cerca de US$ 604 bilhões, segundo o "World Alzheimer report 2010 - the global economic impact of dementia". Se esse montante fosse o orçamento de uma empresa, ela seria a maior do mundo. Grande parte do valor desse cálculo é de investimento em pesquisas científicas para encontrar uma possível cura farmacológica ou genética. Mas o desenvolvimento da demência é um processo lento e gradual, durante o qual várias alterações patológicas vão surgindoo no tecido cerebral, com a aparição concomitante dos sintomas clínicos ao longo de muitos anos. Desenvolver uma pílula ou comprimido que pare o progresso da doença estaria, portanto, entre a prevenção e a cura, já que quanto antes diagnosticado o Alzheimer e medicado o paciente, melhor seria. Por outro lado, reverter os casos graves e avançados ainda parece bem longe do horizonte científico atual.
Logo, reconhecer os primeiros sinais do Alzheimer é uma tarefa crucial. E é difícil, especialmente para a família. Mas, até mesmo para médicos especialistas, o diagnóstico é desafiador. Inclui exames do cérebro e a avaliação clínica sobre qual o grau de perda cognitiva do paciente e de quanto isso afeta seu dia a dia. Os familiares, em geral, veem a perda de memória como fato típico da idade avançada e não sabem da gravidade ao se depararem com o esquecimento de algumas palavras no início da doença. O idoso, por sua vez, tenta disfarçar a própria confusão mental e, portanto, a família precisa estar atenta e procurar ajuda médica antes que os sintomas se agravem.
Os estudos científicos realizados sobre o Alzheimer nas últimas décadas trouxeram informações valiosas sobre a progressão da doença. Está bem demonstrado o envolvimento claro de duas proteínas existentes no cérebro que caracterizam o processo de degeneração do tecido cerebral do paciente com Alzheimer e que há, em alguns casos, um fator genético associado. O neurologista Ricardo Nitrini, da Universidade de São Paulo (USP), conta que a "teoria da cascata do amiloide" tem mudado a forma como a doença vem sendo entendida e que muitos esperam que uma reviravolta no tratamento da doença frutificará das pesquisas baseadas nessa teoria.
Os resultados mostram que no cérebro do paciente com Alzheimer os neurônios morrem, devido provavelmente à ação conjunta da proteína beta-amiloide e da proteína tau. A beta-amiloide resulta da quebra de uma proteína maior, conhecida como PPA (proteína precursora do amiloide). Esses pequenos fragmentos da beta-amiloide acumulam-se na parte externa dos neurônios, formando placas que prejudicam a conexão neural. Já a proteína tau faz parte do sistema interno dos neurônios onde moléculas de nutrientes são transportadas. As placas beta-amiloide desencadeiam alterações da proteína tau e fazem com que se formem emaranhados neurofibrilares. A formação de placas e emaranhados levaria, então, os neurônios à morte e, segundo essa teoria, causaria a demência que é observada clinicamente. Hoje em dia, para ser caracterizado como Alzheimer, além do quadro clínico de demência, é preciso que exista, no cérebro do paciente, a formação de placas e emaranhados. Espera-se que quebrando esse efeito em cadeia, interrompa-se a formação das placas beta-amiloides e dos emaranhados neurofibrilares, restaurando a saúde dos neurônios e prevenindo que o paciente desenvolva a demência.
Nitrini afirma que a teoria da cascata é a melhor que existe até hoje, mas ressalta que, como toda teoria, ela também tem seu ponto fraco. "O ponto forte é que ela trabalha com a mutação no gene da PPA e, aparentemente, o peptídeo beta-amiloide inicia todo o processo. Porém, no animal transgênico, (a experiência) não deu certo. Esse é o ponto frágil", conta. Em humanos, a mutação do gene da PPA desencadeia a formação de placas e posteriormente a formação dos emaranhados. No entanto, quando foram realizadas mutações experimentais no mesmo gene em animais transgênicos, eles desenvolveram apenas as placas beta-amiloides, sem apresentar formação de emaranhados de proteína tau.
Controvérsias
Em São Paulo, no dia 15 de outubro deste ano, o médico israelense Amos D. Korczyn, chefe de medicina da Universidade de Tel Aviv, em Israel, instigou a plateia a ver a questão de outras maneiras, em sua palestra intitulada "Por que falhamos em curar a doença de Alzheimer?", proferida na Faculdade de Medicina da USP. O pesquisador israelense, uma das lideranças mundiais no assunto, apontou vários fatores responsáveis por um progresso mais lento do que o esperado e que talvez venha a frustrar os mais otimistas com a teoria das proteínas beta-amiloide e tau como causa da doença. A complexidade do fenômeno começa, segundo ele, no fato de que placas e emaranhados são observados também em idosos sem qualquer quadro clínico de demência, e que a concentração de placas não se correlaciona com a gravidade da perda cognitiva. Korczyn chamou atenção para outro fato que a comunidade científica parece não estranhar: a alteração principal que ocorre no cérebro de pacientes com demência é o encolhimento do tecido cerebral, sendo que as placas e os emaranhados deveriam levar a um inchaço generalizado. Korczyn afirmou que há, de fato, uma associação entre a proteína beta-amiloide e o Alzheimer, porém a relação pode não ser de causa - apenas de correlação - e que por isso, eliminar a proteína amiloide pode não significar a cura da doença. Sob este ponto de vista, o acúmulo de placas e emaranhados neurofibrilares poderia ser consequência da doença, e serviria, portanto, como bom marcador em exames diagnósticos, mas não como ponto para se buscar a cura.
"Muito se aprendeu sobre o cérebro focando em pesquisas sobre beta-amiloide, mas a cura ainda não foi encontrada", afirmou. Para ele, o problema principal está na definição da doença. Para exemplificar, Korczyn comparou a situação com a cirrose, lembrando que não se trata de uma doença, e sim uma condição clínica que pode ocorrer após diversas situações bem distintas, como abuso crônico de àlcool, hepatite viral ou falhas cardíacas, entre outras. Em todos esses casos, há uma manifestação clínica semelhante decorrente da função hepática prejudicada. Mas os mecanismos em cada caso são totalmente distintos e requerem, portanto, tratamentos distintos. Para Korczyn, o Alzheimer não é uma doença homogênea, mas sim um quadro clínico que pode surgir por diversos mecanismos, e que vão necessitar de tratamentos distintos. Por exemplo, depósitos de placas beta-amiloide podem ocorrer após isquemia cerebral, epilepsia e traumas crânio-encefálicos. Em cada uma dessas condições, o tratamento do paciente, que apresentaria sintomas de demência, seria distinto. O Alzheimer seria, então, de acordo com ele, uma condição clínica complexa resultante de uma mistura de fatores genéticos e ambientais.
Prevenção e hábitos alimentares
Korczyn enfatizou que na história da medicina, as epidemias foram melhor controladas com prevenção do que com o desenvolvimento de tratamentos farmacológicos ultra-eficazes. No caso do Alzheimer, as formas de prevenção ainda não são completamente eficientes, mas a associação da doença com problemas circulatórios é reveladora. Os fatores que melhor predizem a ocorrência da doença são os cardiovasculares, e a formação das placas e emaranhados podem estar associados a problemas nos vasos sanguíneos que irrigam os neurônios. Nesse sentido, os mesmos elementos capazes de prevenir a hipertensão e a obesidade por meio de hábitos como ter uma alimentação balanceada, não fumar e não beber em excesso, praticar atividade física e atividades mentais (como aprender novos idiomas, instrumentos musicais e realizar cálculos) podem estar relacionados à menor ocorrência da doença.
Este ponto de vista foi defendido também por Benito Damasceno, professor do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), durante palestra apresentada no fórum "Neurociência para todos: o cérebro nosso de cada dia", realizado em 20 de setembro deste ano em Campinas. Damasceno citou os resultados de um estudo recente, publicado na revista Lancet Neurology, segundo o qual uma redução de 10% dos casos de hipertensão ajudaria a evitar cerca de 160 mil novos casos de doença de Alzheimer. Para o neurologista da Unicamp, o Alzheimer não é apenas decorrente de degeneração do cérebro devido a algum problema de origem genética, mas uma doença claramente decorrente do estilo de vida moderno: má alimentação, sedentarismo e estresse elevado. Como a doença de Alzheimer está comumente associada a outras formas de demência de origem vascular, o risco é aumentado para pessoas hipertensas. "O estilo de vida é, com certeza, um dos fatores mais importantes na prevenção do Alzheimer e de doenças cardíacas e cerebrovasculares", diz Damasceno.
Estudos recentes (como Scarmeas, 2010 e Fiala, 2012) apontam uma relação entre os níveis de vitamina D e ômega-3 e a função cognitiva. A vitamina D, presente em ovos, na sardinha e no fígado de boi, auxilia o funcionamento das células nervosas, promovendo o crescimento dos neurônios e suas ramificações. A baixa ingestão pode facilitar o surgimento de doenças inflamatórias e doenças vasculares no cérebro. O ômega-3, encontrado em sardinhas, nozes e azeite, também está vinculado à menor incidência da doença de Alzheimer. "Populações com dietas ricas em gorduras saturadas, como carne vermelha e gorduras animais, que levam ao aumento do colesterol, sofrem com maior incidência de lesões vasculares que facilitam a formação de placas amiloides, características da doença de Alzheimer", explica Damasceno.
Sem perder o foco na prevenção, a equipe de Campinas segue esforçando-se também em pesquisas de ponta que trazem esperança. Em 2013, o Hospital das Clínicas da Unicamp integrará um estudo multicêntrico internacional que vai testar uma droga inibidora da enzima beta-secretase, uma das responsáveis pela quebra da PPA e formação de placas. Já no próximo semestre, será iniciado o recrutamento e a inclusão de pacientes para testes em fase III. "Esta fase é decisiva para testar e julgar a eficácia da droga e seus efeitos colaterais, porque o teste é feito com centenas ou milhares de pacientes e se a droga for eficaz, ela será imediatamente aprovada nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil", explica Damasceno.
Enquanto os tratamentos de ponta não chegam, não podemos apagar de nossas memórias que quanto antes for feito o diagnóstico, mais tempo de vida saudável o paciente pode ter. O diagnóstico precoce também permite que aqueles que têm perda de memória mas ainda não apresentam outros sinais da doença possam retardar consideravelmente a sua ocorrência. "Em muitos casos, a gente não consegue a cura, a gente consegue uma melhora. E a medicina sempre tentou diminuir um pouco o sofrimento das pessoas", conclui Nitrini. Como a cura para o Alzheimer ainda não existe, é importantíssimo ter consciência plena de que os hábitos de toda uma vida são o método mais eficaz para prevenir não só essa, mas outros tipos de doenças relacionadas, como as cardiovasculares.
Com a colaboração de Ana Lúcia Lemos
Leia mais
A. D. Korczyn, V. Vakhapova. "The prevention of the dementia epidemic". Journal of the Neurological Sciences 257 (2007) 2-4.
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