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Negar existência colabora com a perpetuação do racismo ao longo dos séculos
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Reportagem
Negar existência colabora com a perpetuação do racismo ao longo dos séculos
Por Tatiana Venancio e Roberto Takata
10/06/2014

Há quem diga que não existe discriminação racial no Brasil, que racismo é “coisa do passado” e que, atualmente, em nosso país, vivemos de forma igualitária. Mas como explicar a marginalização dos negros, o fato de comporem os mais baixos estratos sociais, exercendo profissões mal remuneradas e sendo maioria entre os desempregados? E como não reconhecer a permanência de racismo nos campos de futebol, não só no Brasil, e que trouxe à tona o debate sobre o tema após a torcida rival jogar bananas no campo para o jogador Daniel Alves, em jogo pelo campeonato espanhol, em abril deste ano?

No século XIX algumas teorias foram formuladas com o intuito de se estabelecer a superioridade da “raça” branca sobre as demais. Tais teorias buscavam explicar, por meio de um discurso científico, as diferenças entre os seres humanos e tiveram ampla difusão na sociedade europeia, se espalhando pelo mundo, possibilitando a hierarquização da humanidade e difundindo o racismo. No século seguinte, os avanços da genética e o sequenciamento do genoma humano, demonstraram que as definições utilizadas na distinção de “raças” não tinham nenhum embasamento científico.

Entretanto, mesmo com a confirmação biológica da inexistência de raças entre os humanos, o racismo continua presente no mundo todo. “O racismo não é produto apenas de pensamentos científicos, tem uma consequência prática: a manutenção de hierarquias e a negação de oportunidades para os grupos sociais vitimizados pela discriminação racial. Por isto, enquanto for mantida a atual estrutura de poder, o racismo se mantém e se reinventa” afirma Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) e da Escola de Artes Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP).

No Brasil, diferentemente de outros países, há uma forma velada de racismo e a insistência da população em negar sua presença. Após os escritos do sociólogo Gilberto Freyre, como Casa grande & senzala, que dividiu opiniões e gerou grande polêmica, originou-se o mito da democracia racial, no qual prevalece o ideal de que no Brasil não haveria discriminação racial e sim uma convivência pacífica das etnias. “À medida que você nega um problema, não se mobiliza para enfrentá-lo. Este foi o resultado mais pernicioso da teoria da democracia racial que se fundamentou, basicamente, nos escritos de Freire e ainda fundamenta as relações sociais no Brasil”, diz Oliveira.

Sylvia Duarte Dantas, professora da Universidade Federal da São Paulo (Unifesp) e coordenadora do grupo de estudos Diálogos Interculturais no Instituto de Estudos Avançados da USP, relaciona a ideia de racismo à escravidão dos negros no Brasil, a partir do século XVI, num período anterior às discussões de supremacia da “raça” branca. Para ela, a escravização de povos indígenas e populações africanas gerou marcas que ainda permeiam o imaginário social.

Além de estigmatizar a população negra no mundo inteiro, excluindo-os e marginalizando-os, condenando-os à extrema pobreza e negando seus direitos como seres humanos, a escravidão continuou sendo, mesmo após a abolição, uma das responsáveis pelas desigualdades raciais preponderantes nos dias atuais.

A negação do óbvio

Em 2003, a ComCiência já relatava os desafios da população negra no mercado de trabalho. Dados recentes mostram que a situação não mudou muito.

Em novembro de 2013 foram divulgados os resultados da Pesquisa de Emprego e Desemprego – Sistema PED, do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) e, apesar da redução das desigualdades ao longo das últimas décadas, ainda persistem diferenças nas condições de trabalho vivenciadas por negros e não negros. A pesquisa concluiu que na construção civil e nos serviços domésticos, nos quais há menor exigência de qualificação profissional, menores rendimentos, relações de trabalho mais precárias e, por consequência, menos valorizadas, observou-se maior participação dos negros em comparação aos não negros.

Pesquisa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgada em janeiro deste ano, apontou que os trabalhadores negros tiveram menores salários comparados aos trabalhadores brancos. Ainda segundo o Dieese, em pesquisa realizada em 2013, a grande maioria dos negros exercem profissões mal remuneradas e cerca de 60% dos trabalhadores que estão desempregados atualmente são negros.

Mesmo diante desses dados tão convincentes, muitos brasileiros ainda afirmam que não há racismo no Brasil, até mesmo os negros. A expressão de repulsa explícita de brancos contra negros é rara, mas não deixa de ser percebida no dia a dia das pessoas que fazem parte desse grupo, com efeitos bastante nocivos. “O racismo anti-negro, entre outros efeitos, pode também causar na vítima, do ponto de vista psíquico, um fenômeno já bastante estudado pela psicologia social do racismo que é uma espécie de alienação. O sujeito destratado cria um mecanismo de sublimação, de maneira a não perceber ou não dar relevância para a ojeriza racial, justamente para suportá-la sem sucumbir”, diz Salomão Jovino da Silva, historiador e consultor da Secretaria de Educação do município de São Paulo.

Na mesma direção, Sylvia Dantas explica que as consequências do racismo podem impactar a autoestima, saúde mental e física das vítimas. “Somos seres de relação, de vínculos. Se vivemos em um ambiente que nos desqualifica simplesmente por nossa aparência ou pelo pertencimento a um certo grupo social, esse espelhamento, ou seja, a imagem que me é apresentada de meu próprio grupo de referência como uma imagem denegrida, inferior, faz com que comece a duvidar de mim mesma. Sofre-se assim um estresse psicológico que afeta o corpo e é somatizado como a maioria dos efeitos do estresse. Sintomas de depressão, estados confusionais, enxaquecas e gastrites são comuns”.

Abordagem na mídia

A crítica dos entrevistados se estende à mídia que, com seu papel de formar opiniões, muitas vezes se omite quando o assunto é racismo. “Há pouco tempo, a mídia brasileira, em sua maioria, mal abordava o assunto, no duplo sentido da palavra. Hoje, praticamente limita-se a noticiar os casos de racismo, sem elaborar uma discussão mais profunda sobre o tema. A superficialidade na abordagem contribui para a falta de consciência da população”, analisa Marcel Diego Tonini, doutorando em história social pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) e Neho (Núcleo de Estudos em História Oral).

Mesmo celebridades negras, que poderiam chamar a atenção para a questão, muitas vezes se omitem, atitude que é reprovada por parte dos movimentos negros. Para Silva, essas celebridades tendem a viver em um meio social onde os negros são minoria, mas, ao mesmo tempo, recebem diferentes estímulos para se comportar como se brancos fossem. Para o historiador, essas pessoas “sentem e sabem que o engajamento político contra o racismo gera estigmas e negatividade. Desse modo tendem a se omitir para continuarem sendo aceitos num meio social onde constantemente se celebra e se naturaliza a hegemonia branca”.

Racismo no futebol

O episódio envolvendo o jogador Daniel Alves, recentemente, pode ser uma exceção a esse modelo de omissão. Em partida válida pela 35ª rodada do campeonato espanhol, o lateral direito do Barcelona aproximou-se do corner para cobrar um escanteio. A torcida do Villarreal começou, então, a atirar-lhe bananas. O jogador, sem se fazer de rogado, pegou uma das frutas do chão e a comeu antes de repor a bola em jogo. Não era a primeira e não seria a última vez que gestos de ofensa com alusão à cor da pele, à etnia e à origem eram manifestados em um evento esportivo, especialmente no Velho Continente.

No verão europeu de 1936, um atleta afro-americano chamado Jesse Owens levou quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas em que o governo nazista de Adolph Hitler pretendia propagandear a superioridade da raça ariana.

Quase 80 anos depois, em janeiro de 2013, o meia Kevin Prince Boateng, do Milan, foi xingado por torcedores do Pro Patria, time da quarta divisão italiana, durante partida amistosa. Em protesto, todos os jogadores da equipe “rossonera” abandonaram o campo. Em julho do mesmo ano, Kévin Constant, também do Milan, foi insultado por torcedores do Sassuolo em jogo válido pela Copa TIM. Dessa vez, apenas Constant saiu da partida.

Três semanas depois das bananas atiradas contra Alves, o atacante italiano Mario Balotelli também foi vítima de atos racistas. Torcedores italianos dirigiram-lhe insultos durante treino da seleção italiana.

Essas reações parecem ter componente tanto racista quanto xenofóbico: Daniel Alves é um brasileiro atuando na Espanha, Boateng é de Gana, Balotelli é filho de imigrantes ganeses e Constant é francês naturalizado guineense. Não se limitam, no entanto, ao continente europeu e não se explicam quando se trata de situações que envolvem personagens em um mesmo país.

Em março deste ano, o árbitro de futebol Márcio Chagas da Silva foi xingado e encontrou uma banana em seu carro após a partida que apitou entre Esportivo e Veranópolis em Bento Gonçalves-RS pelo Campeonato Gaúcho. No mês anterior, o jogador Marino, do São Bernardo, prestou queixas por ser chamado de macaco pela torcida paranista, em partida da Copa do Brasil, em Curitiba-PR. Também em fevereiro, o volante Tinga, do Cruzeiro, foi vítima de torcedores do Real Garcilaso, que, durante partida da Libertadores, imitaram macacos quando o jogador tinha a posse da bola.

São vários os casos, mas, embora noticiados na mídia esportiva, nem de longe causaram a mesma comoção do caso de Daniel Alves. Seu colega de clube, o atacante Neymar Jr., orientado por sua equipe de marketing, iniciou uma campanha que se alastrou nas mídias sociais, com diversas personalidades publicando fotos em que repetiam o gesto de comer a banana e marcando-as com a hashtag #somostodosmacacos. Houve reações negativas também à campanha – e não por parte de racistas. Muitos ativistas de combate ao racismo e pesquisadores levantaram objeções à campanha.

Para Tonini “o envolvimento com uma agência de publicidade não é em si o problema. A crítica reside no termo adotado – macacos – e no uso da banana, pois a campanha associa diretamente negros a macacos. Historicamente, o antirracismo luta justamente contra essa comparação e animalização dos negros. Nesse sentido, essas escolhas, por falta de consciência, foram extremamente infelizes e desqualificaram a própria campanha”.

Embora as demonstrações de racismo não sejam novidade, as reações públicas imediatas contra tais demonstrações não ocorriam até há pouco tempo. Durante o trabalho de mestrado " Além dos gramados: história oral de vida de negros no futebol brasileiro (1970-2010) ", defendida em 2010 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, coletando entrevistas de jogadores negros no Brasil, Tonini observou que a reação inicial da maioria era negar ter sido vítima de racismo alguma vez, para, no decorrer da conversa, revelar episódios de preconceito e discriminação. Para ele “reconhecer-se como vítima não é algo fácil para nenhuma pessoa, pois atinge a sua dignidade; ainda mais quando se trata de racismo, fenômeno que historicamente não é aceito pelos brasileiros”. Além da crença no mito da democracia racial, a situação social dos jogadores também pode contribuir: “Talvez alguns jogadores acreditem também que, pelo fato de ocuparem uma profissão de prestígio na sociedade e de receberem altos salários (uma minoria, é verdade), possam não ser vítimas de discriminação racial, o que é um equívoco”, pontua.

“No caso dos jogadores celebridades, há um ‘acordo’ não explícito: os seus salários milionários, as suas famas, as suas condições de celebridades estão diretamente vinculadas a essa condição. Romper com isso é possível? Claro, mas implica em abrir mão de tudo isso e não sei se eles estão dispostos, até porque são pessoas muito jovens, que ascenderam socialmente de forma muito rápida e, por isso, são envolvidos nessa máquina de forma muito veloz”, completa Oliveira.

Na tentativa de combater o racismo dentro do campo, conforme previsão legal da Lei Geral da Copa, o governo federal iniciou a campanha “Por um mundo sem armas, sem drogas, sem violência e sem racismo” na divulgação do evento. Desde 2002, a Fifa celebra anualmente o Dia Contra a Discriminação em suas competições oficiais. Para Tonini, contra os atos e gestos racistas a aplicação de sanções previstas – no âmbito criminal e desportivo – deve ser suficiente para inibi-los. Há avanços, mas há ainda muito a ser feito: “ao contrário do que ocorria nas primeiras décadas do século passado, os negros não são mais impedidos de praticar oficialmente o futebol; no entanto, são pouquíssimos os negros ocupando funções outras no universo profissional, tais como: treinadores, árbitros, jornalistas e, sobretudo, dirigentes”. A estrutura do futebol reproduz a sociedade racista: quanto mais importantes os cargos, maior o branqueamento. Em relação ao combate a esse modelo que persiste, Tonini é menos otimista. Diz ele que “mudanças nesse quadro só ocorrerão, infelizmente, a longuíssimo prazo, ainda mais por se tratarem de entidades privadas”.

Perspectivas

Em 1989 foi instituída no Brasil a Lei 7716/89, que definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível. Ao longo dos anos, houve modificações, ampliando as possibilidades de enquadramento na prática criminosa.

Atualmente encontra-se em processo de tramitação na Câmara dos Deputados, um projeto que pretende instituir uma nova lei contra o racismo. A nova lei prevê que tanto a injúria quanto a apologia ao racismo passarão a ser enquadradas como discriminação resultante de preconceito de raça, cor, religião, sexo, aparência, condição social, descendência, origem nacional ou étnica, idade ou condição de pessoa com deficiência, com pena de reclusão de um a três anos, passível de acréscimo de um terço.

A criação de leis, seu cumprimento, a conscientização da população negra e não negra, assim como a grande discussão em torno do tema e o reconhecimento de que há racismo no país, já é um grande avanço ao seu combate, mas para isso é necessário que haja uma desconstrução social. “O racismo é uma prática socialmente criada e, portanto, pode ser socialmente desconstruída”, completa Dennis Oliveira.

Além disso, a atenção à hierarquização da sociedade, tendo em vista as relações de emprego, os índices de mortalidade e o modo como os negros são retratados na mídia devem ser levados em consideração nesse combate. “Se entendermos que o racismo anti-negro é tanto uma forma de dominação como uma ideologia, talvez possa ser superado, ao menos no Brasil, num futuro longínquo. Muitos estão lutando por isso”, conclui Silva.