Nos últimos 20 anos, 1252 produções
foram lançadas no Brasil. São 804 filmes de ficção, 17 animações, um vídeo musical
e 430 documentários – estes últimos representam, portanto, 34,35% da produção
cinematográfica nacional, e abordam temas tão diversos como história, política,
cinema, música, esporte, artes plásticas, teatro, literatura, gêneros,
jornalismo e ainda relatos do Brasil, histórias pessoais e de pessoas,
comunidades, situações que registram a variedade cultural e social dos
brasileiros.
De 1995 a 2015, os documentários
brasileiros acumularam público de cerca de 4,6 milhões de pessoas, com média de
11 mil espectadores por filme. Seis filmes superaram a marca de 100 mil
espectadores: Vinícius de Moraes
(2005), de Miguel Faria Jr., com 271.979 pagantes; Todos os corações do mundo (1996), de Murilo Salles, com 265.017; Pelé eterno (2004), de Anibal Massaini,
com 257.932; Surf adventures (2002),
de Arthur Fontes, com 200.853; Raul, o início,
o fim e o meio (2012), de Walter Carvalho e Evaldo Mocarzel, com 170.471; Janela da alma (2002), de João Jardim e
Walter Carvalho, com 141.360.
Os dados são da Ancine – Agência
Nacional de Cinema. Entretanto, no documentário brasileiro, há mais nuances
entre volume de produção e público pagante do que pode revelar uma análise
apenas lógica dos dados. Elas apontam, inclusive, para outras vias de encontro
do espectador com esse diversificado e privilegiado olhar documental da
história, da política e da sociedade.
Um
“gênero” muito particular
Maria Dora Mourão, professora titular
do Departamento de Cinema, Rádio e TV da ECA - Escola de Comunicações e Artes
da USP, montadora de filmes, coorganizadora do livro Cinema do real, diz que “a ideia de documentar nos obriga a
estabelecer uma relação entre o que vemos e ouvimos na tela, e a ‘realidade’,
assim como a conhecemos. E, de uma certa maneira, há um pacto implícito de ‘verdade’
entre o documentarista e o espectador, que, quando vai assistir a um
documentário, espera algo nesse sentido, de documentar essa ‘realidade’”.
Mesmo que intrinsecamente ligado à
“ideia de documentar”, o documentário não deixa de ser uma representação da “realidade”,
como a ficção, porque passa pelo olhar de um realizador, pelo enquadramento de câmera,
pela montagem, por questões de estrutura e de estilo, ligadas diretamente ao
momento histórico, político e social da produção.
Para Mourão, o gênero documental –
porque ele é um gênero – tem ainda duas características importantes: ele existe
para atuar sobre situações, traduzindo o ponto de vista do autor ou sendo porta-voz
dos que não tem voz, como acontecia muito no início dos anos 1960, quando
vários realizadores entregaram sua câmera para os “entrevistados”, como fez
Paulo Sacramento, em O prisioneiro da grade
de ferro (2004); e a outra característica é que o documentário não tem apenas
a obrigação de informar, mas de criar emoções. “Eu considero o documentarista
um dramaturgo, que deve saber interpretar os fatos e devolver os fatos para o
espectador de uma maneira, em princípio, não-ficcional”.
Cléber Eduardo, curador da Mostra de
Cinema de Tiradentes desde 2007, crítico de cinema, e professor de história e realização
de documentários no Centro Universitário Senac, não faz questão da clareza
sobre onde começa e termina o documentário. “O que realmente importa é que é um
encontro de realizadores com algo, materiais do mundo e da vida, incluindo aí
as imagens. Existem as zonas limítrofes, como documentários de animação e com atores,
mas os limites são para serem movidos de lugar, não para serem legislados. Um
documentário é o que seus realizadores desejam e conseguem que seja”, afirma
Eduardo.
A hipótese apresentada pela
pesquisadora, crítica, realizadora de cinema e pós-doutoranda no Instituto de
Estudos da Linguagem da Unicamp, Ilana Feldman, sobre o documentário é de que,
mais do que um gênero, ele seja um campo heterogêneo e plural, formado por
práticas, estratégias, discursos e estilos distintos. “Por isso, seria muito
difícil (e talvez nem seja necessário) definir uma essência, uma ontologia
própria do documentário, algo que pudesse dar um contorno seguro ao campo
imputando-lhe uma substância. O documentário, mesmo o mais roteirizado e
controlado, é uma forma narrativa que está a todo tempo em tensão com o
informe, com aquilo que nos escapa e sobre o qual não temos muito controle”,
esclarece. Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, o grande mestre do documentário brasileiro recente. Crédito: divulgação
Por
trás dos números, outros caminhos
Considerando os números da produção desses
últimos 20 anos, “não tenho dúvida de que eles confirmam o crescente interesse
pelo documentário brasileiro, incluindo aí os filmes mais híbridos, que jogam
com os códigos e borram as fronteiras do que seria a ficção e o documentário”,
afirma Ilana Feldman.
Do ponto de vista da produção, na
cinematografia brasileira, o documentário sempre teve papel de destaque,
principalmente a partir dos anos 1960 – impulsionado pelo Cinema Novo e sua
vocação para olhar a realidade do próprio país, o documentário encontrou de vez
o seu lugar, ajudado, no final dos anos 1950, pelas câmeras de 16mm, pequenas,
portáteis, e a possibilidade de captar som direto com equipamentos menores.
“No Brasil, aconteceu um fenômeno
pouco comum em outros países, em que a televisão é o meio principal de exibição
do gênero: a grande quantidade de documentários produzidos para o cinema”, diz
Dora Mourão. Para ela, alguns fatores contribuíram para esse fenômeno, como a
realização do Festival É Tudo Verdade, a partir de 1996, tanto por
apresentar ao público a produção internacional de documentários, quanto ao
sediar a Conferência Internacional de Documentário, a partir de 2001. “A
Conferência incentivou a pesquisa na área, promoveu o diálogo entre pensadores
e realizadores internacionais e nacionais, a aproximação entre o fazer e o
pensar o documentário, o que deu uma outra dimensão à produção no gênero”,
comenta.
Realizadores como Eduardo Coutinho (Cabra marcado para morrer, Edifício Master, Jogo de cena) e João Moreira Salles (Notícias de uma guerra particular, Entreatos, Santiago),
entre tantos outros, foram também fundamentais para divulgar o gênero e aumentar
o interesse do público, principalmente jovens, para o documentário em tela
grande. “Nesse momento, o documentário
também se atualizou, não apenas com as tecnologias digitais, mas com novas
tendências – algumas nem tão novas assim – como o documentário subjetivo,
experimental, a utilização de animação”, lembra ainda Dora Mourão.
Eduardo destaca que o boom de documentários e de lançamentos
em salas comerciais é maior a partir de 2007, quando começam a surgir muitas
produções sem recorrer a editais, e a geração digital – que capta, finaliza e
exibe em tecnologia digital. Mas esse volume não fala por si mesmo. “É preciso
ir aos filmes: em 20 anos, tivemos bons documentários em quantidade significativa,
Eduardo Coutinho retornou às salas grandes e se tornou o grande mestre,
surgiram novos valores como Kiko Goifman (FilmeFobia,
Olhe para mim de novo, Periscópio), João Moreira Salles, Maria
Augusta Ramos (Brasília, Um dia em fevereiro,
Justiça, Juízo), Marilia Rocha (Aboio,
Acácio, A falta que me faz), Cristiano Burlan (Mataram meu irmão) e Gabriel Mascaro (Um lugar ao sol, Avenida
Brasília formosa, Doméstica).
Houve, inclusive, um deslocamento de tendências e de pendências nesse cenário
mais geral da produção, deslocando-se do enfoque social para outros focos e
outras estratégias. Pode-se dizer que, em 20 anos, o documentário foi mais
pulsante que a ficção no Brasil, mas pela soma de casos isolados e não pelo
conjunto da produção”, analisa Eduardo. O premiado A falta que me faz, de Marilia Rocha, talento da nova safra de documentaristas brasileiros. Crédito: divulgação
Do ponto de vista do público do
documentário nacional, os números absolutos não revelam importantes nuances, a começar
do contexto da distribuição de filmes. “O cinema brasileiro, desde os seus
primórdios, enfrenta um problema grave de distribuição e ocupação de salas,
tradicionalmente tomadas pelos blockbusters
da indústria. Competir com filmes que entram em cartaz com mais de uma centena
de cópias e que investem milhões em publicidade é uma tarefa quixotesca, somada
ao alto preço dos ingressos – que não estimulam o espectador a arriscar. O
espectador tende a pagar pelo já conhecido e, a princípio, garantido”, explica
Ilana Feldman.
Para Eduardo, não há nada de errado
com o volume de público do documentário se comparado ao da ficção. “Há algo de
errado com o excesso de lançamentos comerciais porque, fora os casos realmente
de destinação à tela grande, com investimento em imagem, ritmo, pausas e
silêncios, a maioria deles tem cara de teledocumental, uma reivindicação mínima
do ritual cinematográfico”. Segundo Eduardo, é importante destacar que parte
dos documentários, lançados em circuito com pouco público pagante, teve muitas
sessões cheias em festivais e são exibidos em cineclubes e faculdades. “Os
dados da Ancine não são dados de público, mas de consumidores, de ingressos
pagos”, afirma.
O documentarista Evaldo Mocarzel concorda.
“Nos últimos 16 anos, fiz documentários sobre os mais diferentes temas, e é
muito estimulante ver como os filmes têm diferentes semeaduras na sociedade.
Além do circuito dos festivais e dos cinemas comerciais, o cinema documentário
também é muito exibido em um circuito que costumo chamar de “institucional” que
engloba escolas públicas e privadas, universidades, ONGs, secretarias de
bem-estar social, enfim, um circuito imenso que trabalha os filmes em debates,
projetos de pesquisa, aulas, encontros, dissertações e teses acadêmicas. Esse é
um dos fascínios do filme documentário”.
Para Ilana Feldman, “o problema é que
esses circuitos paralelos às salas de cinema, como as TVs públicas e a cabo, as
mostras temáticas, as plataformas digitais, não têm os seus espectadores
contabilizados nos dados oficiais, o que produz uma imensa distorção sobre o
impacto desses filmes. Por outro lado, documentários muito vistos em salas de
cinema não necessariamente repercutem culturalmente no país, enquanto, muitas
vezes, filmes menos vistos são debatidos por décadas”.
Retratos
(necessários) da cultura e da sociedade
Se, por um lado, há a questão de o
documentário ser reflexo cultural e/ou histórico da sociedade, ou seja,
documentário como espelhamento, “pode-se ainda abrir outras frentes de análise:
documentário como sintoma (Elena),
como estratégia (Vinícius), como
expressão (Mataram meu irmão, A falta que me faz) e como proposição (A cidade é uma só?) ”, afirma Eduardo.
Considerando-se espelhos e “frentes”,
o documentário é fundamental para a cinematografia de qualquer
país. É claro que a ficção também é importante, porque ela retrata usos e
costumes de uma determinada época, “mas o documentário é instrumento de
observação do mundo, ele é instrumento de captura de uma realidade, e com isso tem
um papel diferenciado e um papel essencial”, diz Dora Mourão.
Para
Ilana Feldman, o cinema
documental é extremamente relevante para a compreensão das sociedades, com suas
lutas, seus problemas, suas cidades, suas violências, mas também suas
manifestações culturais, sua memória e, principalmente, seus sujeitos. No caso
do Brasil, o boom do documentário a
partir dos anos 2000 foi fundamental para que sujeitos quaisquer, ordinários no
melhor sentido, tivessem um espaço de escuta e visibilidade até então inédito.
“Essa possibilidade deu chance para que toda sorte de testemunhos – pessoais e
coletivos, privados e políticos – tivessem um canal de expressão privilegiado.
Nesse sentido, o documentário pode ser entendido como uma reserva de fabulação
e desejos de um país, e ele será tão mais potente quando sua fatura der forma
às forças sociais e subjetivas que o produz”, conclui Feldman. Do luto à luta, documentário de Evaldo Mocarzel sobre síndrome de Down que acabou inspirando novela de televisão. Crédito: divulgação
Um exemplo dessa potência pode ser a trajetória
do cineasta Mocarzel, que estreou no gênero com À margem da imagem (2004) e foi tragado definitivamente para o
cinema documental. “Os temas foram entrando na minha vida e, por vezes, me
escolheram, como foi o caso da síndrome de Down: fiz o documentário Do luto à luta (2006) após o nascimento
da minha filha Joana, que tem Down. Distribuí mais de 6100 cópias de graça,
porque quando realizei o filme, queria fazer uma obra de utilidade pública para
circular em hospitais, maternidades, APAEs, famílias com pessoas com Down etc.
O filme acabou ajudando a semear uma novela na televisão, porque lançava um
novo olhar sobre a síndrome. Já fiz filmes sobre moradores de rua, sem-teto e
movimentos de moradia, catadores de materiais recicláveis, parteiras da
Amazônia, quebradeiras de coco babaçu, paraquedistas, jovens de periferia,
bailarinos, sobre a vitalidade e a efervescência da cena paulistana
contemporânea, e os filmes vivem circulando pelos mais diferentes espaços e
circuitos alternativos”.
Embora considere que o documentário
inevitavelmente contribui para o inventário da cultura e da sociedade, Eduardo
questiona se essa contribuição é considerável, já que os filmes parecem
destinados aos arquivos e às cinematecas, físicos ou digitais. “Se a ficção
brasileira tem sido para poucos, na média, o documentário é para ainda mais
poucos. Portanto, como inventário concreto, digamos, ele não alcança o
necessário, a circulação”, avalia.
Eduardo acredita que, antes de ser
inventário de cultura e de memória, em casos específicos, o documentário é
inventário estético e autoral. A
importância dos melhores documentários é cinematográfica, antes de ser social.
Poucos diretores de ficção chegam aos melhores momentos de um Carlos Nader (Pan-cinema permanente, Homem comum, A paixão de JL), de uma Marilia Rocha, ou mesmo de um Adirley
Queirós (A cidade é uma só, Branco sai, preto fica).
“Os bons documentários, os mais
autorais e mais expressivos, não são e não devem ser tratados como
documentários, como se esse segmento fosse uma cota ou uma minoria, mas como
cinema, porque, justamente esses, transcendem a lógica do documento, com sua
evidência do mundo, para a lógica da estética, com sua forma de olhar para o
mundo e mostrá-lo de um modo que só o cinema pode mostrá-lo, que só aquele
diretor pode organizá-lo para nós”, conclui Eduardo.
|