Tradução: Simone Pallone
No espaço cinematográfico, a ficção científica tem sido considerada, há muito tempo, como um gênero menor. Ainda que esta consideração parta do espaço acadêmico e muitas vezes goze de boa saúde em outros âmbitos, este tipo de rótulo não fez nada bem à sua história e à sua imagem.
O erro é maior do que parece. Não só a ficção científica está longe de ser um gênero menor, mas ocupa os primeiros lugares, segundo qualquer parâmetro razoável. Trata-se do gênero mais antigo, o mais vendido e o mais premiado. Contudo, eu gostaria de introduzir um argumento mais forte. Trata-se de considerar a ideia segundo a qual, no cinema, tudo é ficção científica. Já vejo mais de um leitor saltando de sua cadeira. Mas vou explicar.
Tudo parte de uma grande confusão. Aquela que se origina quando associamos “ficção científica” a “máquinas”, “robôs” ou “extratarrestres”, e que surge das associações mais elementares entre ficção científica e ciências exatas e naturais. Porém, o par ficção-ciência não nos remete necessariamente a essas ciências. O mundo das ciências é muito mais amplo. Apenas para começar, temos o vasto conjunto das ciências sociais e, por que não dizer, o estudo científico das humanidades. Façamos um exercício de imaginar uma definição de ficção científica grande, uma ficção científica que inclua todas as ciências. Naturais, exatas, sociais, uma ficção científica que incorpore completamente a interdisciplinaridade e também o conhecimento a respeito da ciência, ou seja, a epistemologia e a sociologia da ciência. Uma ficção científica que seja também Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS).
Certamente esta definição de ficção científica é complexa e requer um pouco de desenvolvimento e alguns exemplos. Vamos por partes.
O que é a ficção científica?
São muitas as formas de classificar e definir a ficção científica. Uma das mais amplas é aquela que indica dois grandes ramos que foram se constituindo historicamente. Eu me refiro à distinção entre ficção científica “dura” e ficção científica “branda”. Essa distinção surge em princípios do século XX, com as primeiras análises das obras de Júlio Verne e Herbert George Wells.
Conforme essa interpretação, Julio Verne, da França, deu origem à ficção científica “dura”. Ele foi um autor preocupado com os artefatos, as novidades da mecânica e o papel que esta ocuparia no domínio da natureza e seu impacto na conquista de novos territórios. Não obstante, a visão de Verne se contentava em transpor o conteúdo aos homens de seu tempo, caricaturados, por sinal, e colocá-los em um futuro tecnológico ligeiramente diferente. Seria possível indicar que Verne tabalhava sobre universos muito próximos e que realmente não se arriscava muito além do mundo conhecido.
Por outro lado, e quase de forma contemporânea, Wells, da Inglaterra nos apresentava uma ficção científica mais especulativa. Wells era uma pessoa mais informada cientificamente do que Verne. Estudou biologia e se formou zoólogo, enquanto que Verne estudou direito. Não obstante, é Verne quem recebe o título de cientista visionário. Apesar disso, qualquer um pode constatar que as especulações de Wells são muitíssimo mais arrojadas que as de seu colega francês. Wells não se preocupava apenas com as máquinas, estava preocupado com a sociedade e com o homem moderno. Enquanto Verne se concentrava em especular sobre a materialidade do mundo em um futuro próximo, Wells se ocupava do que poderíamos chamar muito vagamente de a estrutura social e psicológica do homem em um futuro muito mais distante. Seria possível dizer, exagerando um pouco, que Verne se preocupava com a tecnologia, enquanto Wells se preocupava com a ciência.
Deste modo, nascem duas formas de se pensar e se escrever sobre ciência e tecnologia no campo da ficção. A ficção científica dura se consolidaria, em um já bem avançado século XX, com autores como Issac Asimov e toda a literatura sobre robôs. A ficção científica branda, um pouco menos exitosa em suas origens, trataria das relações entre a ciência, a tecnologia e os homens, e de como isso afeta as sociedades, a psicologia e os sentimentos humanos. Essa vertente de ficção científica se consolidaria um pouco mais tarde, com autores como James G. Ballard, para os quais , a preocupação com o impacto da ciência na sociedade é evidente e muito atual.
Hoje em dia, quando se fala em termos coloquiais de filmes de ficção científica, subentende-se que estamos nos referindo à ficção científica dura. Mas o que acontece se incluirmos ficção científica branda? Temos que admitir que filmes como Memento (Christopher Nolan, 2000), O eterno brilho de uma mente sem lembranças (Michel Gondry, 2004), e inclusive, Uma mente brilhante (Ron Howard, 2001) passam a fazer parte do acervo de filmes de ficção científica. Mas isto é somente o começo.
Ficção científica e fantasia
Esta é uma distinção mais radical, ainda que suscite muitas confusões. Estabelecer claramente os limites de um ou outro gênero não é trivial e tampouco uma tarefa fácil. Sobretudo dentro do espaço orgânico da ficção científica branda.
Darko Suvin, um dos primeiros críticos sérios da ficção científica, afirma que o que caracteriza esse gênero é um estranhamento cognitivo. O estranhamento é um procedimento utilizado pela ficção científica em geral, mediante o qual se produz uma relação dialética entre as regras que governam o mundo fictício que nos é proposto e a alteração dessas regras.
Este procedimento nos seduz em aparente normalidade, da qual nos tornamos presa à medida que avança o enredo da história e que, em um determinado momento, é usado para subverter a ordem gerada. Essa alteração das regras, que pode ser de magnitudes muito variáveis, geralmente nos surpreende. Habitualmente, quanto mais sutil é essa relação, até seus extremos, tanto mais imperceptíceis são as mudanças e, no entanto, se produza uma modificação das regras, mais vamos gostar da história.
Na ficção científica, as regras que se estabelecem e se alteram são – especificamente – as regras das leis cognitivas que temos desenvolvido para explicar o mundo, ou seja, a ciência.
O interessante dessa forma de caracterizar a ficção científica, sob meu ponto de vista, é que ela permite fazer uma sub-classificação de acordo com o tipo de âmbito cognoscitivo que ela vem subverter. Isto é, que disciplina científica é modificada com as regras. Certamente que existe uma ficção científica fronteiriça na fantasia, que subverte toda a ciência em seu conjunto. Essa ficção científica é, geralmente, aquela de baixa qualidade. Outro tipo de ficção científica, mais interessante, irá subverter aspectos muito concretos da realidade. Pode ser um único e específico detalhe de uma teoria bem estabelecida, com alguns contos em que se planeja um erro ou uma alteração de uma constante física, ou obras nas quais se subverte uma disciplina por completo, ou algum conceito que abarque mais de uma disciplina.
Deste modo, outra forma de classificar as obras de ficção científica é de acordo com a disciplina que vem subverter. E isso não deverá ser nada assombroso. Os interesses da ficção científica e os interesses científicos são convergentes. Assim, então, a ficção científica pode alterar regras biológicas, físicas, químicas e até mesmo matemáticas. Mas também pode alterar conhecimentos históricos, psicológicos ou sociais.
Tudo é ficção científica
Assim, não temos à disposição apenas a ficção científica dura e a ficção científica branda para classificar os filmes. Temos, além dessas, todo o conjunto de conhecimentos científicos para classificá-los em subtipos de ficção científica, de acordo com o tipo de conhecimento que podem subverter. Mesmo quando nos situamos do lado da fantasia mais pura, é necessário explicar porque esse filme em particular é fantasia e não ficção científica, o que nos leva a discutir novamente sobre ciência. Vejamos alguns exemplos.
a.Ficção científica dura: O homem bicentenário
O homem bicentenário é um filme lançado em 1999. Foi dirigido por Chris Columbus e protagonizado por Robin Willians, Embeth Davidtz e Sam Neill.
Nele se pode ver claramente como o desenvolvimento tecnológico e as tecnologias médicas convergem a tal ponto que um robô (Andrew, representado por Robin Williams) quer se tornar humano. O filme é baseado em um conto curto de Isaac Asimov. O homem bicentenário é uma narrativa da série dos robôs que ganhou os prêmios Nébula e Hugo de melhor história em 1976 e 1977, respectivamente. Posteriormente, se fez uma ampliação em forma de novela, intitulada The positronic man, escrita por Isaac Asimov e Robert Silverberg.
Andrew, o robô protagonista, se sente uma pessoa presa em um corpo de robô. Isto se deve, em parte, à complexidade de circuitos que governam seu cérebro ter superado a complexidade dos mecanismos que constituem seu corpo.
O robô vai desenvolvendo difrentes órgãos biônicos com a dupla finalidade de ajudar aos humanos para que possam dispor de próteses melhores caso necessitem, mas também com o objetivo de substituir paulatinamente suas partes mecânicas por peças biônicas. Isso leva à questão central do filme: O que é um humano?
Efetivamente se alcança a situação em que um robô pode estar composto pelas mesmas “partes” que um humano – um no qual se tenha, por exemplo, realizado uma série de transplantes médicos devido a um acidente –. E se, por outro lado, esse robô é capaz de realizar todas as atividades que um humano realiza, então, o que os diferencia?
b. Ficção científica branda: Videodrome
Videodrome (David Cronenberg, 1983) é um filme que explora os limites entre a realidade e a imaginação, entre o físico e o abstrato, entre o que poderíamos chamar de “ hardware” e “ software”.
Max Renn é um empresário da televisão que está buscando um novo show para o seu canal e encontra uma transmissão “pirata” que conseguiu captar via satélite. Nessa fita se transmite violência sexual, semelhante às gravações clandestinas conhecidas sob o gênero “ snuff”, onde se mostram cenas de violência real, nas quais se gravam assassinatos e torturas para serem distribuídas comercialmente.
Seguindo a pista dessa gravação chamada “Videodrome”, Max Renn se vê envolvido em uma rede internacional que tenta popularizar a fita com a finalidade de expandir a consciência humana sob o pressuposto de que a violência contida nessas imagens incentiva certa glândula cerebral que nos converteria em sujeitos digitais. A ideia é complexa, porém atrativa: uma pessoa vê uma cena de violência sexual e em sua mente ativa um mecanismo que permite que outro penetre nas imagens que ela vê.
Um dos personagens mais imporantes de Videodrome é o professor Brian Oblivion que foi inspirado em Marshall MacLuhan, o filósofo canadense que cunhou a frase “o meio é a mensagem”. Efetivamente, o professor Oblivion leva essa declaração ao extremo no qual o “meio”, nesse caso a televisão, e a “mensagem”, que nessa situação é o videodrome, se confundem em uma só coisa, incorporando o organismo vivo ao processo. É por isso que Max se “incorpora” à imagem televisiva sem nunca ter sido gravado.
Situar Videodrome entre os filmes de ficção científica é um pouco mais difícil pois há de se entender que não somente se faz isso pelo uso especial das tecnologias, mas sobretudo pela reflexão filosófica que o uso da tecnologia implica. Esta reflexão não pode ser separada da tecnologia (aparatos, máquinas), tampouco de sua aplicação.
c. Ficção científica social: Valkyrie
Este filme, protagonizado por Tom Cruise, não poderia estar mais longe do que normalmente se considera ficção científica. Trata-se de um filme catalogado como histórico ou thriller, pois relata um caso real.
Na Alemanha nazista, quando os aliados começam a torcer a guerra a seu favor, um grupo de altos funcionários alemães conspira para elaborar um plano para derrubar o regime nazista. Para isso, precisam executar um complexo plano de emergência interno que garantisse, uma vez assassinado o Fürer, o controle total de Berlim.
No entanto, há outra forma de interpretar os fatos narrados nesse filme, afinal, como sabem os historiadores, a história é uma narrativa dos fatos reconstruídos a partir dos elementos que chegam desse evento. Nesse sentido, não é muito diferente das ciências naturais. Os conceitos de átomo e de sucesso histórico se aproximam em função da evidência indireta que os revelam.
Esse “complô” pôde ser conhecido graças ao trabalho científico de historiadores e antropólogos que estudaram em detalhes os documentos e os sucessos que permitiram ao mundo conhecer as ações desse grupo de homens. Realizando entrevistas, pesquisando em arquivos históricos e utilizando um sem número de outras estratégias de investigação, os cientistas têm reconstruído uma narrativa da história cada vez mais rica e detalhada.
Considerar esse aspecto científico nos permite afirmar que Valkyrie é uma narrativa cinematográfica na qual se subverte a variável histórica para contar uma ficção muito adequada, embora seja ficção, de sucessos históricos associados ao projeto Valkyria.
d. Outros exemplos: Traffic
Traffic (Steven Soderbergh, 2000) é um desses filmes sórdidos, nos quais os personagens sofrem muito e o espectador também.
O filme narra várias estórias relacionadas com diferentes aspectos do mundo das drogas ilegais. Fundamentalmente as situa em um contexto geográfico temporal muito específico: a década de 1990, na fronteira entre Estados Unidos e México. O consumo, o tráfico, a luta contra as drogas, sua distribuição, diferentes aspectos legais e políticos, são alguns dos temas que se tocam no filme.
Os conhecimentos científicos desenvolvidos ao redor desses temas são enormes e se encontram em constante expansão. Ao mesmo tempo, existe uma diversidade de enfoques que os torna muito controversos. Nesse sentido, Traffic cumpre muito bem com as características de uma boa ficção científica, ao nos mostrar diferentes aspectos de uma mesma realidade, construída com base em conhecimentos desenvolvidos muito recentemente. Por exemplo, a descrição do efeito que têm no corpo os diferentes tipos de drogas, os conflitos legais associados ao tráfico internacional ou os desenvolvimentos químicos associados às diferentes formas de esconder as drogas dos órgãos de controle outorgam a esse filme muitas características de uma boa ficção científica. Considerações finais
A ficção científica não trata somente de robôs, máquinas e viagens ao espaço. Como vimos, muitos outros filmes podem ser incluídos nesse gênero, pois a ficção científica é, sobretudo, uma indagação sobre o papel e o futuro do homem no mundo. De como o homem usa a tecnologia e a responsabilidade que assume frente a ela, tanto em relação ao mundo natural, como em relação ao mundo social.
Todo filme histórico, médico, antropológico, político, inclusive o documentário, traz aspectos de ficção científica. Nenhum outro gênero tem indagado com tanta sagacidade (e tanta crueza), os efeitos de nossa passagem pelo mundo. O interesse por esta indagação tem estado presente em toda a ficção científica, desde Verne até Houellebecq; de Meliès a Cameron.
Não há dúvida de que comprender isso não é trivial. Uma vez que nos leva à direção de abraçar a ficção científica e não negá-la, como se tem feito. Hoje, mais do que nunca, precisamos imaginar e refletir sobre o nosso papel na intervenção no mundo.
Luciano Levin é professor do Centro de Ciencia, Tecnología y Sociedad, Universidad Maimónides e diretor da revista Ciencia, Público y Sociedad, www.revistacps.org .
Bibliografia recomendada:
Capanna, P. (1999). Excursos. Grandes relatos de ficción (1° ed., p. 249). Buenos Aires: Simurg. Levin, L., & Kreimer, P. (2011). “Las dimensiones sociales de la ciencia en el cine”. In: B. Jefferson de Oliveira & C. Carrillo Trueba (Eds.), Ciência no cinema. Uma olhada latino-americana. Minas Gerais: Argumentum Editora y Scientia. Lottman, H. (1998). Jules Verne. Anagrama. Suvin, D. (1984). Metamorfosis de la ciencia ficción. México: FCE.
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