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Artigo
Mapas como facilitadores na inclusão social de pessoas com deficiência visual
Por Ruth Emilia Nogueira
10/11/2010

De uma maneira ou outra os mapas sempre estiveram presentes na vida do homem, mesmo antes de surgir a escrita. Eles nasceram como uma forma de comunicação gráfica para registrar informações de itinerários importantes para a sobrevivência humana. Pontos, linhas e símbolos gráficos eram desenhados em um substrato qualquer para representar e localizar espacialmente elementos selecionados na realidade, como ainda se faz hoje.

Podemos explicar os mapas como sendo uma fonte de dados espaciais que têm como propriedades básicas mostrar o lugar de ocorrência e as características (atributos) de algum fenômeno geográfico. Essas propriedades são inerentes e independem do tipo de fenômeno ou tema que um mapa representa. Além dessas propriedades básicas existem outras que distinguem os mapas de um desenho qualquer: (a) Todo mapa mostra elementos selecionados da realidade através de pontos, linhas e áreas de forma reduzida; (b) Todo mapa tem um sistema de coordenadas explícitas ou implícitas; (c) Todo mapa representa uma parte da superfície curva da terra (ou toda ela) em um plano, utilizando projeções cartográficas; (d) Todo mapa tem um assunto, um lugar e um autor.

Em épocas remotas os mapas eram cuidadosamente desenhados por artistas e, por causa disso, eram restritos a uma pequena camada da população e muitas vezes guardados como segredo de estado. Nos dias de hoje eles se tornaram populares. Fazem parte do nosso dia-a-dia na televisão, jornais, revistas e na internet. Outros mapas, não tão públicos assim, são criados especificamente para atividades estratégicas da sociedade contemporânea, sendo verdadeiros sistemas de informação digital espacial.

O uso público dos mapas acontece com diferentes objetivos e de acordo com a necessidade ou motivação das pessoas. Por exemplo, um indivíduo pode buscar nos mapas algo que desconhece totalmente, outro pode estar procurando a reafirmação de algum conhecimento, e outro ainda pode estar procurando aumentar seu conhecimento sobre o que já conhece. Não obstante, o acesso do usuário aos mapas nunca foi tão facilitado à população como nesse início de século. A responsabilidade por essa revolução é a internet, ou seja, a rede mundial de computadores, surgida nos anos 1990, a qual modificou drasticamente as formas de disponibilizar a informação e a comunicação humana.

Porém, por mais populares que sejam os mapas nos dias atuais e que possam ser acessados e vistos pela maioria da sociedade em diferentes mídias e na internet, existe uma camada minoritária, desprovida do sentido da visão, que não pode ver e usar esses mapas convencionais. Então, como seria possível tornar os mapas “visíveis” para as pessoas com deficiência visual1?

A elaboração de mapas táteis

Se os mapas são importantes ou fazem parte da vida das pessoas normovisuais, para aquelas impossibilitadas de ver eles são igualmente importantes para a compreensão geográfica do mundo; eles possibilitam a ampliação da percepção espacial e facilitam a mobilidade. Para esses usuários, os mapas precisam ser lidos com as mãos: eles não conseguem ler um mapa impresso ou disposto na tela de um monitor de vídeo do computador ou do aparelho de televisão.

Para serem lidos pelas pessoas cegas os mapas precisam ser transformados para a forma tátil, isto é, tudo que está em um mapa que é lido por quem enxerga precisa de alguma maneira ser reelaborado para ser lido pelas mãos do deficiente visual e compreendido por ele. Além disso, é preciso considerar as limitações que a ausência da visão gera tanto na confecção quanto na leitura de mapas, assim como na forma própria de pessoas cegas organizarem e se apropriarem do conhecimento.

Existem diversas maneiras de elaborar mapas táteis, mas aqui explicaremos resumidamente uma das maneiras de confeccioná-los de forma semi-artesanal. Lembramos que, independente do método, sempre será preciso utilizar um mapa impresso, ou em meio digital, como referência. O primeiro passo na elaboração de mapas táteis é saber qual é a finalidade de uso do mapa, que pode ser para a educação (mapas em escala pequena como aqueles dos livros e dos atlas) ou para a mobilidade (escalas grandes como aquelas das plantas urbanas ou de edificações). Isso é necessário para se definir o grau de generalização cartográfica a ser aplicado no mapa de referência e o meio físico do mapa tátil, pois ele deve ser lido pelas mãos.  Na figura 1 mostramos, a título de exemplo, as imagens de dois mapas táteis para a educação, sendo um para pessoas com baixa visão e outro para pessoas cegas. Esses mapas mostram padrões cartográficos para o layout e simbologia, propostos pelo Laboratório de Cartografia Tátil e Escolar da Universidade Federal de Santa Catarina.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/cartografia/AR_Ruth/img1.jpghttp://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/cartografia/AR_Ruth/img2.jpg
Mapas para deficientes visuais: o colorido é para pessoas com baixa visão,
e o outro, juntamente com sua legenda, confeccionado em flex paper,
é para pessoas cegas.

Para gerar o arquivo digital do mapa tátil é usado um programa de desenho gráfico e efetuado o processo de generalização cartográfica para aglutinar, aumentar ou deslocar áreas, suavizar linhas, aumentar ou deslocar pontos do mapa de referência. Quando necessário, além da generalização gráfica é aplicada a generalização conceitual. Por exemplo, um mapa hipsométrico, que geralmente apresenta na sua forma convencional de seis a doze faixas de altitudes, precisa passar pelo processo de generalização conceitual para ser transformado em três faixas de altitude num mapa tátil, conforme mostrado no mapa da América do Sul na Figura 1. Desta maneira pode ser compreendido pelas pessoas cegas. Outros fatores a serem considerados são o tipo de material a ser usado como substrato do mapa, isto é, o plástico ou papel especial, a clareza dos símbolos que aparecerão em relevo, a legenda e o layout do mapa.

Com a imagem do mapa em meio digital pode-se imprimi-lo em papel cartão e construir de forma artesanal a matriz do mapa tátil. Ela vai ser usada para reprodução de muitos mapas quando colocada em uma máquina de aquecer plástico que funciona por sucção e calor. Os relevos dos materiais colados à matriz são moldados no plástico permitindo que sejam detectados pelo tato.

Considerando um mapa como um meio de comunicação da informação geográfica, para atingir seu efeito máximo, não podemos considerar sua produção e consumo como dois processos separados. Já nos lembrava Antonin Kolacny2 que a criação e utilização de mapas são dois componentes de um processo coerente (e, em certo sentido, indivisível) no qual as informações cartográficas originam, são comunicadas e produzem um efeito. Tal premissa foi utilizada para a proposição de padrões de simbologia cartográfica e de modelos de mapas táteis no Laboratório de Cartografia Tátil e Escolar (LabTATE), um espaço onde professores pesquisadores e estudantes se unem para o enfrentamento às barreiras atitudinais e informacionais impostas às pessoas cegas pela sociedade.

Para atingir o objetivo de tornar o mapa um dispositivo de inclusão social de deficientes visuais, faz-se necessário dar acesso a eles. Por isso, disponibilizamos na internet os modelos dos mapas criados no LabTATE, assim como as instruções e outras informações para a confecção dos mesmos. Alguns exemplos dos mapas táteis padronizados são mostrados na figura 1 e também na figura 2, podendo também ser vistos no portal do LabTATE (www.labtate.ufsc.br).

O uso dos mapas táteis
Consideramos que mapas padronizados podem jogar um importante papel como veículo de informação espacial para deficientes visuais. Sem os mapas esse grupo social fica limitado a receber informações do espaço geográfico através de palavras e/ou precisam memorizar longas informações descritivas para acessar lugares. E, também, para pessoas cegas uma imagem (formada na mente) vale mais que mil palavras. Portanto, os mapas podem ser mais necessários para essas pessoas do que para aquelas que podem ver. Eles podem proporcionar acesso à informação espacial para que esse grupo de usuários possa organizar suas imagens espaciais internas (estimar distâncias, localizar lugares e objetos), o que, consequentemente, pode reverter em maior independência e autonomia na orientação, mobilidade e segurança dessas pessoas. Exemplos de mapas para mobilidade confeccionados no LabTATE e disponibilizados como imagem na internet são mostrados na figura 2.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/cartografia/AR_Ruth/img3.jpghttp://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/cartografia/AR_Ruth/img4.jpg
Exemplos de mapa tátil para a mobilidade: o mapa tátil da esquerda, confeccionado
em acetato, é do Terminal Urbano Central de Florianópolis e o da direita
é um mapa tátil e baixa visão que mostra a área central da cidade de Florianópolis

Apesar de existirem dispositivos dedicados à navegação, como o GPS, que permite localizar lugares no meio ambiente e auxiliar na mobilidade, ou mesmo os aparelhos celulares com dispositivo GPS, que permitem ao deficiente visual receber informações do lugar por onde circula, a preferência por mapas ainda é grande entre os deficientes visuais.

Em recente pesquisa Jonathan Rowel3 verificou que deficientes visuais consideram os mapas táteis como principal dispositivo para obterem informação espacial. Diversos foram os motivos, apontados pelos deficientes visuais, participantes da pesquisa, para darem preferência aos mapas antes de outros dispositivos. Algumas das vantagens dos mapas táteis sobre os novos dispositivos de informação espacial foram: (a) excelente ferramenta para reconhecimento, ajudando a planejar visitas a lugares não familiares e a conhecer mais sobre os lugares após visitá-los; (b) permitem que se estabeleçam relações de feições, tornando possível localizar referências e rotas familiares; (c) são as mais compreensivas representações dos mapas mentais, que auxiliam na orientação, mesmo que não forneçam direções precisas; e (d) o mapa é um elemento físico que possibilita a leitura e torna mais fácil aprender, se comparado a memorizar lista de informações verbais descritivas de um lugar.

Os deficientes visuais apontaram também as dificuldades em usar mapas táteis: (a) não são fáceis de ler e quando conseguem entender o conteúdo, nem sempre conseguem ligar o que é representado com o mundo real; (b) muitos mapas são tão grandes que tornam difícil sua leitura e seu transporte; e (c) a indisponibilidade de mapas de espaços relevantes.

Notamos que, no Brasil, o desconhecimento de mapas por parte dos deficientes visuais deve-se ao fato de eles não disporem de mapas adaptados à sua leitura na escola, nas ruas ou em qualquer outro lugar. Adriano Henrique Nuernberg4, diz que os deficientes visuais não têm sua demanda atendida porque os recursos mediacionais ou instrumentais que lhes permitiriam elaborar conhecimentos (como os mapas), na maioria das vezes estão dispostos em formatos e modelos que supõem a condição vidente. Além disso, temos observado que os educadores envolvidos no processo de mediar o uso do mapa (na sua maioria), não sabem ler Braille.

Todavia, não basta ter mapas adaptados aos deficientes visuais. A mediação pedagógica no processo de ler um mapa é fator determinante para o entendimento do que foi representado e para o seu significado na realidade. Se eles, os deficientes visuais, não forem ensinados a usar mapas, não saberão se apropriar da informação por eles veiculada, e isso não acontece em um só momento; é um processo ao longo do desenvolvimento espacial do indivíduo, como afirmam Rosângela D. Almeida e Elza Y. Passini5. Todavia, se ele não teve acesso aos mapas e já é um adulto, precisa ser ensinado a usar esse recurso, pois um cidadão alfabetizado deve ser capaz de ler mapas para acessar informações espaciais no intuito de tomar decisões sobre o espaço.

É importante reconhecer que a produção de mapas táteis no Brasil é precária e carente de aporte teórico, metodológico e técnico e, consequentemente, a disponibilização de mapas pelos organismos ligados à educação ou à preparação para a vida prática e profissional de deficientes visuais é incipiente mesmo nas regiões mais desenvolvidas. É nesse sentido que os esforços no LabTATE vêm sendo efetuados. Modelos de mapas táteis construídos com rigor técnico, sob a consideração da percepção tátil são acessíveis no portal desse laboratório e podem ser utilizados para sua reprodução em qualquer lugar do país.

Reforçamos a necessidade de conhecer as limitações que a ausência do sentido da visão confere ao sujeito cego. As peculiaridades da leitura tátil e o entendimento de como pessoas cegas formam imagens mentais sobre o espaço ainda são pouco conhecidos pela maioria das pessoas, pelos educadores e também por aqueles que produzem mapas, principalmente quando o objeto em questão é o espaço geográfico.

Pesquisas nesse sentido podem ser conduzidas e divulgadas para melhorar a comunicação da informação cartográfica nos mapas táteis e na mediação do uso de mapas de forma a colaborar com a inclusão desse grupo social. Por ter consciência disso os pesquisadores do LabTATE estão empenhados no trabalho de divulgação das pesquisas e de extensão que vêm efetuando, e no ensino de mapas táteis envolvendo geógrafos e deficientes visuais com o intuito de colaborar para quebrar barreiras informacionais, pedagógicas e metodológicas que impeçam a participação ativa desses cidadãos na vida social.


Ruth Emilia Nogueira é professora de cartografia básica e temática e escolar. É também coordenadora do LabTATE- Laboratório de Cartografia Tátil e Escolar da Universidade Federal de Santa Catarina.


Notas e referências bibliográficas: 


1. O uso dos termos “pessoa com deficiência visual”, “cego” e “pessoa com baixa visão”, ou a combinação destes termos é uma opção amparada pelo consenso construído em órgãos representativos das pessoas com deficiência e pela literatura especializada na área.

2. Kolacny, A. (1977). Cartographic information – a fundamental concept and term in modern cartography, CartographicaThe Nature of Cartographic Comunication, Suplement n.1 to Canadian Cartographer, University of Toronto Press, Toronto, v. 14, p. 39-45.

3. Rowel, J. (2007). The end of tactile mapping or a new beginning: LBS for visually impaired people. In: 23º International Cartographic Conference, 2007, Moscow. Proceedings do International Cartographic Conference. Moscow: ICA

4. Nuernberg, A. H. (2008).Contribuições de Vigotski para a educação de pessoas com deficiência visual, Psicologia em Estudo, Maringá, Brasil, jun. 2008, v.13, no.2, p.307-316.

5. Almeida R. D.; Passini, E. Y.  (2001). O espaço geográfico: ensino e representação. São Paulo: Contexto.