A biografia – gênero híbrido entre o jornalismo, a literatura e a história – é um dos sucessos editoriais no Brasil. Entre as listas dos títulos mais vendidos semanalmente, geralmente há pelo menos uma biografia.
O interesse por esse tipo de narrativa não é novo. Desde a Antiguidade, o culto aos grandes homens e a reverência àqueles que marcaram épocas foram acompanhados de textos biográficos. Na Idade Média, havia um tipo específico de biografia que seguia a mesma lógica: as hagiografias, ao contarem as histórias dos santos católicos, também serviam de inspiração e de exemplo de conduta moral, numa sociedade em que havia tantos pecados e ínfimos caminhos para a salvação.
Contemporaneamente, a biografia se insere num certo “boom da memória” (Martin-Barbero, 2000), ou seja, um interesse muito grande pelo passado, de modo a buscar explicações para o que ocorre atualmente e também para que se consiga encontrar caminhos para organizar a complexidade contemporânea. Não há de se negar também que o interesse grande pela biografia é mais uma das marcas do biográfico e da espetacularização da vida: assim como realities shows e redes sociais digitais, a biografia é uma exposição pública de vidas. Mais do que isso, é também busca por exemplos, por projeções ou identificação com aqueles que se tornaram, por alguma razão, ídolos ou referências em suas áreas.
Integrando características próprias da história – como a consulta a documentos, diários e escritos –, do jornalismo – ao realizar entrevistas, investigações e justificá-la pelo interesse público –, e da literatura – ao construí-la a partir de um texto com preocupações estéticas e uma narrativa que, não raro, está próxima ao formato de um romance, a biografia também pode servir à divulgação científica, principalmente, quando abordar a vida de homens e mulheres da ciência. Além disso, pode ser, pelo tipo de texto construído – mais narrativo e menos relatorial ou acadêmico – uma interesse forma de se conhecer a história de vida de uma pessoa dedicada à pesquisa científica, seu processo de descobertas, contribuições, relações políticas e tudo o que envolve a ciência. Uma narrativa bem escrita tem o poder não só de gerar identificação entre leitores e personagens, mas também de criar o interesse. Grande parte do envolvimento do leitor pode dar-se pela forma como o texto é construído. A elaboração de um texto mais literário é capaz, inclusive, de levar ao público alguns temas mais complexos como a familiarização com os processos de elaboração das políticas públicas de Ciência e Tecnologia (CT&I), além de questões éticas.
Pelo condicionamento do sujeito à historicidade e por a linguagem se inscrever numa relação espaço-temporal que lhe coloca sentido (Pêcheux, 1975), a leitura de biografias também pode revelar quem se projeta como sujeito de ciência, o que se espera dela e quais as concepções do fazer científico presentes, consciente ou inconscientemente, circulando na sociedade, materializando-se no discurso.
O psiquiatra estadunidense Robert Maxwell Young estuda, desde o final dos anos 1980, biografias de cientistas com o objetivo de inferir no modo como a ciência reflete seu momento histórico, suas fontes e quanto o entendimento de uma determinada área é definido pelo contexto cultural. De acordo com o pesquisador (2000), a produção de biografias e a sua publicação, com políticas de acesso ao grande público, é uma contribuição importante para o crescimento da cultura científica, principalmente, se os textos produzidos forem capazes de gerar identificação e interesse para conhecer mais a fundo métodos e descobertas. Tal percepção justifica, mais uma vez, a importância de se refletir sobre que sentidos de ciência são difundidos pelas biografias e como eles sintetizam falas, opiniões e “já-ditos”.
Durante a elaboração da dissertação “Biografia como divulgação científica: uma análise de discurso da coleção ‘Grandes Cientistas Brasileiros’”, analisei como uma coletânea publicada como suplemento pela revista Caros Amigos encontra ressonância, em seus dizeres, com a percepção pública de ciência e como a concepção que circula socialmente de ciências naturais e de ciências humanas foi responsável por desenhar o roteiro que se teria das biografias, cuja publicação tinha também uma finalidade educacional (um dos públicos pretendidos eram professores e estudantes da escola básica) e fora patrocinada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MC&T). Foram analisadas 10 biografias – de um total de 24. Do corpus, 50% foi composto por cientistas da área de ciências naturais e 50% de humanas.
Entre 2002 e 2003, a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) e a Rede Ibero-Americana de Indicadores de Ciência e Tecnologia (Ricyt/Cyted) realizaram uma pesquisa na Argentina, no Brasil, no Uruguai e na Espanha com o propósito de levantar quais eram as percepções públicas sobre ciência e tecnologia, abordando o imaginário social do tema, a compreensão de conteúdos de conhecimento científico, os processos de divulgação e a participação dos entrevistados em questões científicas. Entre as constatações do levantamento, estão algumas que demonstram uma percepção pública bastante utilitarista de ciência, ligada principalmente à saúde e à melhoria de vida. “A ciência como fonte de benefícios para a vida do ser humano é uma imagem que conquista a maior adesão no Brasil (46,9%) e Uruguai (49,4%)” (Vogt; Polino, 2003, p. 81). Da mesma forma, o MC&T, patrocinador da coletânea, indica que objetivo é “ transformar o setor (de Ciência e Tecnologia) em componente estratégico do desenvolvimento econômico e social do Brasil, contribuindo para que seus benefícios sejam distribuídos de forma justa a toda a sociedade”.
Entendendo a percepção pública e os objetivos do Ministério como falas que circulam socialmente, é notável como elas ressoaram na escolha de determinados nomes para figurar na coleção “Grandes Cientistas”. Entre as conclusões a que a análise de discurso das biografias de Caros Amigos levou está o fato de que, para chamar a atenção dos leitores para a vida desses cientistas, enfatizavam-se, em geral, logo no início dos textos, suas contribuições para a saúde e o desenvolvimento do país, usando termos como “revolucionar”, “triplo salto de desenvolvimento” e “inovações”.
Quando se comparam as biografias de cientistas da área de Humanas e da área de ciências naturais, evidenciam-se imagens de profissionais muito diferentes, o que já se comprovou por uma análise quantitativa: no caso das biografias de cientistas da área de Naturais, havia um predomínio para as “descobertas”: em média, os cientistas da área de Humanas tiveram 50% das páginas escritas sobre a trajetória de vida (envolvendo aspectos como família, filhos, infância, exílios etc.); os cientistas da área de Naturais tiveram apenas cerca de 30% dedicados às questões pessoais e o restante à produção científica.
N o senso comum, quando se pensa em um cientista social ou de qualquer área das Humanas, vê-se um profissional numa biblioteca, rodeado de livros ou, então, fazendo suas pesquisas em espaços economicamente desfavorecidos. Disso, também se construiu, na coletânea, uma associação direta entre a pesquisa na área das Ciências Humanas e a militância política, daqueles que são sempre convidados a emitir opiniões sobre a sociedade, dos que estiveram em constante luta por condições melhores. As biografias analisadas valorizaram, dedicando um número maior de páginas a aspectos mais relacionados à “vida” dos cientistas da área de Humanas, principalmente, quando eles mantêm alguma relação de resistência com a ditadura militar (caso de Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Milton Santos, por exemplo, três dos biografados). A relação que as biografias constroem com os cientistas sociais é quase romântica: são aqueles que, por “vocação”, decidiram dedicar sua vida aos livros, a descobrirem os cantos do Brasil, a estarem do lado dos oprimidos e a ensinarem, já que a referência à atividade de professor é também muito forte nos textos referentes aos antropólogos e aos sociólogos. Interessante notar como eles não defenderam “teses”, como os cientistas da área de Naturais, mas tinham “ideias”, ou então, não “contribuíram”, mas “foram militantes”. Como biografia, evidentemente, esses dados são importantes, porque humanizam o cientista. Todavia, dissociar a vida e a obra é um risco que se corre quando a humanização não é bem feita ou quando alguns momentos, valorizados socialmente, são reforçados em detrimento de outros. Há também de se dizer que o tratamento que Caros Amigos dedica aos cientistas reforça uma ideologia que também está presente nas páginas da revista em suas edições mensais: um jornalismo contrário à política neoliberal, comprometido com temáticas como direitos humanos, justiça social, distribuição de renda, emprego, reforma agrária e liberdade de expressão.
Não resta dúvida de que a divulgação científica tem uma forte implicação educacional e que ela é parte importante para a constituição da cidadania e da participação. As formas de divulgação podem ser as mais variadas e, evidentemente, a biografia é apenas uma delas. É preciso, no entanto, ter sempre o domínio de que um texto, ao se materializar como discurso, ou seja, efeito de sentido, carregará consigo as marcas da historicidade, do momento histórico em que foi escrito e também dos envolvidos no processo de sua constituição: quem fala e para quem fala. Se há indissociabilidade entre ciência, tecnologia e governo (Pêcheux, 1975), e se a divulgação científica está associada à educação, é imprescindível que esse processo seja analisado sempre a partir dos princípios de autoria, ideologia e historicidade.
Fabiano Ormaneze é jornalista. Mestre em divulgação científica e cultural pela Unicamp. Professor da PUC-Campinas. Especialista em jornalismo literário pela ABJL.
Referências
Martín-Barbero, Jesús. Dislocaciones del tiempo y nuevas topografías de memoria . Rio de Janeiro: Artelatina, 2000. Ormaneze, Fabiano. A biografia como divulgação científica: uma análise da coleção “Grandes Cientistas Brasileiros”. Campinas: Labjor/Unicamp, 2013. Pêcheux, Michel. Semântica e discurso. Campinas: Unicamp, 1975. Vogt, Carlos; Polino, Carmelo (orgs.) Percepção pública da ciência– resultados da pesquisa Argentina, Brasil, Espanha e Uruguai. Campinas: Unicamp e São Paulo: Fapesp, 2003. Young, Robert Maxwell. What happened to human nature? Londres: Process Press, 2000.
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