Qualquer
epidemia é o resultado de uma
construção social,
conseqüência do aparecimento de uma
doença com
características biomédicas, sanitárias
e
demográficas particulares. A
identificação, em
1981, da síndrome da imunodeficiência adquirida,
habitualmente conhecida como aids, tornou-se um
marco na
história da humanidade. A epidemia da aids, causada pela
infecção pelo vírus da
imunodeficiência
humana (HIV), é um fenômeno global, altamente
dinâmico
e instável, cuja forma de ocorrência nas
diferentes
regiões do mundo depende, entre outros fatores, do
comportamento humano individual e coletivo.
A
propagação da aids, no Brasil, revela uma
epidemia de
múltiplas dimensões que vem, ao longo do tempo,
sofrendo extensas transformações na sua
evolução
e distribuição social. De uma epidemia
inicialmente
restrita a alguns círculos cosmopolitas das denominadas
metrópoles nacionais – São Paulo e Rio
de Janeiro - e
marcadamente masculina, que atingia prioritariamente homens com
prática sexual homossexual e indivíduos
hemofílicos,
depara-se, hoje, com um quadro marcado pelos processos da
heterossexualização, da feminização,
da interiorização e da pauperização.
O aumento da transmissão por contato heterossexual tem
resultado em um crescimento substancial de casos em mulheres, sendo
apontado como o mais importante fenômeno para o atual momento
da epidemia.
Tendência
espaço-temporal da aids: a interiorização
A
partir do
eixo Rio-São Paulo, os casos de aids disseminaram-se para as
demais regiões, inicialmente às
metrópoles
regionais – como Porto Alegre, Recife, Curitiba, Belo
Horizonte e
Salvador –, a partir do final da década de
oitenta. As
transformações no perfil da aids no Brasil,
embora com
dinâmicas regionais e populacionais distintas, devem-se,
sobretudo, a difusão geográfica da
doença a
partir dos grandes centros urbanos em direção aos
municípios de médio e pequeno porte do interior
do
País, ao aumento da transmissão heterossexual e
à
manutenção de casos entre usuários de
drogas
injetáveis (UDI). Atualmente, a epidemia já
atinge 79%
dos 5508 municípios brasileiros. Os cartogramas
representados
na figura 1 ilustram a progressiva expansão da epidemia do
litoral sudeste para as regiões Sul, Nordeste e
Centro-Oeste,
considerando-se os municípios com pelo menos um caso de aids
registrado, para os períodos de 1880 a 1988, de 1989 a 1996
e
de 1997 a 2004.
Desde
o inicio da epidemia, em 1980, até junho de 2005 foram
notificados 371827 casos de aids. Desses casos, 14309 são
crianças, 245484 adultos masculinos e 112034 adultos
femininos. Com registro de ocorrência de casos em quase todo
o
território nacional, a distribuição da
aids, no
entanto, não é homogênea, quanto
às
regiões de residência, sexo, idade, grau de
escolaridade
nem no que se refere às categorias de
transmissão.
Observando-se uma maior concentração de casos nas
regiões Sudeste e Sul, as taxas de incidência nos
últimos anos evoluíram, em todo o
País, de 12,1
por 100 mil habitantes, em 1994, para 17,2 por 100 mil habitantes, em
2004, com uma grande variação entre os diferentes
estados da federação. Embora tenha ocorrido um
crescimento da epidemia da aids no país, nos anos mais
recentes, no entanto, verifica-se uma tendência à
estabilização nas regiões mais
desenvolvidas –
Sul, Sudeste e Centro-oeste, com queda das
taxas de incidência nos anos de 2003 e 2004 (figura
2). Nas
regiões Norte e Nordeste,
as taxas continuam em ascensão.
Casos notificados no SINAN
e
registrados no
SISCEL até 30/06/05
A
análise
da distribuição dos casos de aids, segundo
tamanho
populacional dos municípios, mostra que os grandes centros
urbanos detêm, atualmente, o menor aumento relativo de casos
de
aids, configurando uma desaceleração da
velocidade de
crescimento da epidemia. Por outro lado, o crescimento da epidemia
tem sido maior, desde 1999, entre municípios pequenos, com
menos de 50 mil habitantes. Trata-se, via de regra, de
municípios
mais pobres e de menor renda per capita, e com mais baixa capacidade
de resposta para as demandas sociais, entre elas a saúde.
Mudanças
na via de transmissão: a heterossexualização
e a feminização
No
início
da epidemia, o segmento populacional constituído dos homens
que fazem sexo com outros homens – homossexuais e bissexuais
–
foi o mais atingido. No ano de 1984, 71% dos casos notificados eram
referentes a homossexuais e bissexuais masculinos. Entretanto,
à
extensa disseminação inicial, seguiu-se certa
estabilização em anos posteriores, em especial
entre
aqueles homens pertencentes aos estratos sociais médios
urbanos, em todas as regiões do País, em meio aos
quais
verificou-se relevante mobilização social e
mudança
de comportamento no sentido de práticas sexuais mais
seguras,
traduzindo-se em uma redução da
participação
desta subcategoria de exposição entre os casos
notificados, correspondendo em 2004, a apenas 16,3% dos casos.
Presentemente,
no Brasil, a via de transmissão heterossexual constitui a
mais
importante característica da dinâmica da epidemia,
com
expressão relevante em todas as regiões. Houve um
incremento importante desta forma de transmissão: de 6,6 %
em
1988, para 39,2%, em 1998, e, mais recentemente, em 2004, 61,3%. Esta
característica tem contribuindo de modo decisivo para o
aumento de casos em mulheres, traduzido na progressiva
redução
da razão de sexo (dada pela razão entre os casos
do
sexo masculino e os casos do sexo feminino), no tempo e em todas as
categorias de exposição. Os valores da
razão de
sexo passaram de 26:1, em 1985, para 6:1 em 1989, situando-se em
menos de 2:1, desde 1998 (Figura 3). Outro aspecto importante
é
o de que as menores razões de sexo são
encontradas nos
municípios brasileiros com menos de 50 mil habitantes.
Aproximadamente 20% dos pequenos municípios que notificaram
a
doença já inverteram a
relação de
incidência entre os sexos. Entre as mulheres, cerca de 60%
são
donas-de-casa, em todos os níveis de escolaridade, na faixa
etária de 20 a 39 anos.
Casos
notificados no SINAN e registrados no SISCEL até 30/06/05
Fonte MS/SVS/PN DST e Aids
Quanto
à
categoria de transmissão sangüínea,
alterações
relevantes foram observadas, principalmente em hemofílicos e
em indivíduos que receberam transfusão de sangue.
Segmentos populacionais intensamente atingidos no início da
epidemia vêm apresentando um importante declínio
ao
longo do tempo. Essa queda é conseqüência
do
controle do sangue e hemoderivados, principalmente com a
disponibilidade dos testes laboratoriais para
detecção
de anticorpos anti-HIV, a partir de 1986. Em 1984, essas
subcategorias representavam 62% dos casos da categoria de
exposição
sangüínea e, em 2004, representam menos de 0,5%.
Enquanto
isto, o segmento de usuários de drogas
injetáveis, que
desde meados dos anos 80, passou a ocupar posição
de
destaque entre os casos por transmissão
sangüínea,
mantém-se em difusão em determinadas
áreas
geográficas. A participação dos UDI,
entre as
ocorrências de aids, desempenhou papel central no processo de
expansão da epidemia para municípios de pequeno e
médio
porte, a partir de uma disseminação inicial ao
longo da
faixa que conecta o Centro-Oeste ao interior paulista e, mais
recentemente, no litoral sul do País, bem como tem
contribuído
para o aumento de casos entre as mulheres usuárias de drogas
injetáveis ou aquelas que contraíram o HIV por
meio de
relações sexuais com parceiros UDI. Destaca-se um
predomínio da transmissão sexual para ambos os
sexos,
com baixas proporções de casos registrados em
UDI, nas
regiões Norte e Nordeste.
Com
relação
à transmissão vertical do HIV, ou seja, a
transmissão
da mãe infectada para o seu concepto durante a gravidez,
parto
ou aleitamento natural, observou-se um progressivo aumento desta
categoria ao decorrer do tempo, como conseqüência
direta
da maior participação feminina entre os casos de
aids
no Brasil. No entanto, desde 1997, após a
introdução
universal da terapia anti-retroviral para gestantes de todo o
país,
observa-se uma redução significativa de novos
casos de
aids em crianças nascidas a partir daquele ano. Em 2004,
foram
notificados apenas 414 casos em menores de 13 anos.
Perfil
socioeconômico dos casos de aids: a pauperização
A
escolaridade tem sido utilizada como variável proxi
de
situação socioeconômica, e o
fenômeno de
pauperização tem sido caracterizado pelo aumento
da
proporção de casos de aids com baixa
escolaridade.
Houve expressiva mudança no perfil da escolaridade dos casos
notificados entre adultos. Em 1985, o percentual de casos com
nível
superior ou médio era de 76%, enquanto apenas 24% dos casos
eram analfabetos ou tinham cursado até os primeiros quatro
anos do ensino fundamental. Nos anos subsequentes, houve uma
tendência progressiva de aumento no registro de casos com
menor
grau de escolaridade, observando-se em 2000, entre os casos com
escolaridade informada, que 74% eram analfabetos ou tinham cursado o
ensino fundamental, e apenas 26% tinham mais de 11 anos de
escolaridade ou curso superior.
Ana
Maria
de Brito é médica, mestre em Medicina Tropical
pela
Universidade Federal de Pernambuco e doutora em Saúde
Pública
pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
É
também pesquisadora do Centro de Pesquisas Aggeu
Magalhães/Fiocruz, e professora do Departamento de Medicina
Social da Faculdade de Ciências Médicas de
Pernambuco,
da Universidade de Pernambuco.
OBS.:
Os dados utilizados neste artigo foram retirados de documentos
oficiais do Ministério da Saúde,
disponível no
site: www.aids.gov.br:
Boletim
Epidemiológico AIDST, Ano
I nº 01- 01ª à 26ª semanas
epidemiológicas
- janeiro a junho de 2004 / e Ano
II nº
01- 01ª à 26ª semanas
epidemiológicas -
janeiro a junho de 2005 - ISSN 1517 1159
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