"Abra o seu jornal em qualquer dia da semana e encontrará uma notícia que em alguma parte do mundo alguém foi detido, torturado ou executado, porque as suas opiniões ou religião são inaceitáveis para o governo do seu país". Hoje, a frase acima, publicada em 1961 no diário inglês The Observer por Peter Benenson – responsável por uma das maiores campanhas pelos direitos humanos mundiais e fundador da ONG Anistia Internacional –, ainda faz sentido. Os problemas de intransigência talvez sejam até mais complexos atualmente do que há 48 anos, quando o artigo “The forgotten prisoners” foi publicado. Na época, a maioria dos casos de violação dos direitos humanos parecia acontecer em governos ditatoriais, ou então atrás da "cortina de ferro", alusão aos países alinhados com a finada União Soviética e monitorados pela Helsink Watch, predecessora do Human Rights Watch. Naqueles tempos, jamais se imaginaria que países tidos como "baluartes da liberdade" brincariam com o direito internacional criando limbos jurídicos ou justificando a tortura, contrariando um documento que visa proteger o ser humano na totalidade de suas liberdades, independente de fronteiras: a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A Declaração, que contou com a aprovação unânime dos países representados na Organização das Nações Unidas, foi ratificada oficialmente pela ONU em 1948 e serviu de base para dois tratados internacionais: o “Tratado Internacional dos Direitos Civis e Políticos” e o “Tratado Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” (ambos de 1966). "A Declaração é um momento civilizatório sem precedentes, porque os sentimentos de humanidade, e superação daquilo que diminuía o gênero humano, encontra nos trinta artigos ali descritos um avanço que consolida, em nível global, o que outros documentos começaram ao longo da história", avalia José Gregori. Gregori atualmente é Secretário Especial dos Direitos Humanos da cidade de São Paulo e foi ministro da Justiça durante o mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Para entender a amplitude do avanço da Declaração, que completou sessenta anos em dezembro de 2008, é preciso pensar em como era o mundo há sessenta anos atrás. “Não havia uma ‘ordem mundial'. Isso só aconteceu no período pós Segunda Guerra, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). E a Declaração é um documento particularmente especial, pois partiu de parâmetros universais para servir de baliza para os direitos de todos os seres humanos, igualitariamente”, analisa Jayme Benvenuto, que é professor de direito internacional da Universidade Católica de Pernambuco. Ele explica que os tratados, apesar de não terem a forma de leis, foram incorporados às constituições e legislações locais de vários países, e servem de instrumentos para mobilizar as pessoas, em todo o mundo, a questionarem os abusos sofridos e buscarem seus direitos. “Muitas vezes, como aconteceu no Brasil durante a ditadura militar, a lei consolida o autoritarismo de um regime”, lembra Gregori, “e o jeito encontrado para resistir são os direitos humanos, respaldados por um documento que, modernamente, é consenso mundial”, complementa.
Dois tratados, um só objetivo
A inspiração por trás dos dois tratados oriundos da Declaração Universal dos Direitos Humanos são diferentes, embora tenham o mesmo objetivo. De um lado o “Tratado Internacional dos Direitos Civis e Políticos”, chamado de primeira geração ou de direito individual. Ele parte do conceito liberal de liberdade como direito natural do homem, e onde as intervenções do Estado de maneira arbitrária e desmedida precisam ser limitadas garantindo a livre iniciativa e a igual representação política. “ Os direitos civis e políticos são aqueles que o homem tem perante o governo, existentes, em regra, para resguardar o cidadão dos abusos cometidos pelo ente estatal”, explica Ricardo Castilho, professor e diretor da Escola Paulista de Direito.
Seu complemento é o “Tratado Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, também chamado de direitos de segunda geração ou de direitos coletivos, baseado na herança do pensamento social democrata europeu. Para essa corrente de pensamento, o Estado estaria ligado à ascensão social do cidadão e, portanto, deve-se agir para gerar opções e controlar desníveis que possam distanciar os cidadãos ou grupos sociais de sua representavidade e, consequentemente, da sua liberdade. “ Os direitos econômicos, sociais e culturais são aqueles que visam a promover um nível mínimo, material e imaterial, de vida digna para os indivíduos, de maneira a suprir as necessidades básicas gerais”, completa Castilho. A amplitude dos direitos resguardados por esses dois tratados é chamado de liberdades fundamentais. “A diferença cabal existente entre os dois pactos identifica-se com a própria diversidade da natureza dos seus objetos”, finaliza.
“Os dois tratados não se excluem. São portas de entrada diferentes para o mesmo tema”, afirma Clodoaldo Meneguello Cardoso, professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (Unesp-Bauru) e coordenador do Observatório de Educação em Direitos Humanos da mesma universidade. Para ele, as diferenças aparecem quando se discute legislação. “Os direitos de primeira geração parecem estar mais avançados nesse sentido. Possuem metodologias claras para categorizar as violações e punir os indivíduos responsáveis, como ditadores, por exemplo”, avalia. Já os direitos de segunda geração, explica Cardoso, não possuem leis gerais aplicáveis igualmente em qualquer lugar, e sim modelos adaptáveis. Entretanto, têm maior articulação social, principalmente no que diz respeito ao combate à pobreza – a exemplo da Bolsa Família, modelo brasileiro exportado para outros países, ou os bancos de microcrédito, projeto trazido da Índia –, apesar da reticência de diversos governos em todo o mundo. Avaliando essa questão, Benvenuto critica a visão utilitarista dos governos: “para consolidar os direitos coletivos é necessário investimento. No caso dos direitos civis e públicos a implantação se dá por renúncia: renuncia-se à tortura; às execuções sumárias; e à perseguição política, por exemplo”.
Para Castilho, “a despeito das diferenças conceituais entre os objetos de ambos os pactos, é de se ressaltar a impossibilidade de pensarmos cada um deles de forma isolada”. Já Cardoso, lembra que, em 1993, a Declaração de Viena e o Programa de Ações da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos insistiu no diálogo e na interdependência dos dois planos: “não pode haver preconceito de qualquer um dois lados da questão. É necessário entender essa articulação entre ambos para melhor atender ao cidadão”, diz o pesquisador.
No âmbito internacional essas articulações e aplicações de leis, sanções, sugestões de projetos ou ações, são feitas pelos órgãos como as comissões da ONU, Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tribunal Penal Internacional a partir de denúncias dos indivíduos, organizações, autoridades ou da mídia de todo o mundo. No Brasil a responsável pela questão é Secretaria Especial de Direitos Humanos, com status de ministério, criada em 2003 em substituição às antigas Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (SEDH), de 1999, e Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SNDH), de 1997. Hoje, todos os estados brasileiros contam com secretarias estaduais ou programas estaduais de DH e várias cidades, a exemplo da cidade de São Paulo, também possuem as secretarias municipais. Em um horizonte próximo, existe até a possibilidade da criação efetiva do Ministério de Direitos Humanos. Para Benvenuto, “isso significaria um maior poder de articulação em âmbito nacional e internacional além de um aumento orçamentário necessário para instaurar políticas duradouras”.
Alfabetização cívica
“A idéia dos direitos humanos é transmissível. É necessário contagiar as pessoas”, com essa ênfase José Gregori explicita o valor dos tratados e declarações que buscam, também, tornar acessíveis às pessoas informações sobre quais são seus direitos e como comunicar às outras pessoas e autoridades os abusos desses direitos. “No Brasil existe um grande avanço em termos formais, as pessoas estão buscando seus direitos através de juizados, da mídia, das secretarias de direitos humanos federal, estaduais e municipais”, conta o professor da Católica de Pernambuco. Ele também ressalta que os principais problemas no Brasil, atualmente, são as execuções sumárias, pelos grupos de extermínio e os abusos de autoridade. Em sua avaliação, resquícios, de alguma forma, da ditadura militar. O relatório de 2009 da Human Rights Watch, adiciona a essa lista as péssimas condições das cadeias, trabalho escravo e conflitos pela terra.
“Já foi mais sério”, ressalta Roberto Monte. “Antes essas coisas ocorriam e as autoridades diziam que não existia esse tipo de problema. Hoje em dia, houve um avanço: as autoridades admitem publicamente que ocorre”. Monte, que é coordenador do projeto Direitos Humanos na Internet (DHnet) sabe disso na prática. Seu companheiro de atividades no Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP) no Rio Grande do Norte foi assassinado na época que denunciava a ação de grupos de extermínio que tinha participação de policiais militares da região de Natal-RN. “Na noite do velório ficamos disparando emails para autoridades, secretarias de direitos humanos e jornalistas. Três dias depois, uma equipe da maior rede de televisão do país foi para Natal preparar uma reportagem para o horário nobre”. Desde então, Monte focou sua atuação na internet, montando um portal que tenta articular as iniciativas de defesas dos direitos humanos em todo o país. Seu projeto ganhou, em 2007, o Prêmio Direitos Humanos da SEDH. “Iniciativas na área de educação e de democratização da informática contribuem para o aumento dos dígitos” diz, referendo-se ao número de pessoas e lideranças que lutam pelo respeito aos direitos humanos. Hoje o DHnet serve de exemplo para projetos similares em Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau.
“É necessário que a população se manifeste contra abusos e a imprensa livre é importante para que essas denúncias cheguem à sociedade”, diz Gregori. Em 1961, a campanha iniciada pela Anistia contou com algumas dezenas de pessoas. Hoje a ONG conta com 2,2 milhões de colaboradores em 150 países. É um exemplo da união de interesses de cidadãos comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa que denunciam os abusos através de uma mídia livre, articulando assim uma rede de atores em uníssono por valores universais. Benenson, na época, foi inspirado pela prisão sumária de dois estudantes portugueses que, em pleno regime do ditador Salazar, brindavam a liberdade numa mesa de bar. Em suas próprias palavras: “o leitor sente um desagradável sensação de impotência. Mas, se esses sentimentos de rejeição, que experimentam pessoas de todo o mundo, pudessem juntar-se numa ação comum, poderia ser algo eficaz”.
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