09/04/2006
ComCiência
- A política externa brasileira tem colocado mais foco nas
relações Mercosul - UE e Sul-Sul em detrimento à
Alca. Qual a sua opinião a respeito disso? O senhor considera
que os resultados têm sido positivos?
Demétrio
Magnoli - A Alca, tal como proposta pelos EUA, pouco significa
para o comércio. Seria, basicamente, um acordo sobre serviços,
compras governamentais e proteção de investimentos
estrangeiros. Por isso, não interessa aos países
industrializados da América do Sul, ou seja, Brasil e
Argentina.
A
política externa brasileira teve sucesso em articular o G-20
na OMC. Mas a sua orientação Sul-Sul subordinou-se ao
objetivo da conquista de uma cadeira de membro permanente no Conselho
de Segurança da ONU, o que a esvaziou de substância. O
resultado foi negativo, do ponto de vista do Mercosul e do esforço
de integração sul-americana. No fundo, o Brasil hoje
exerce menos influência regional do que há quatro ou
cinco anos.
ComCiência
- Quais são os principais avanços e quais as
dificuldades que ainda persistem para que o Mercosul se consolide? De
que modo as novas medidas protecionistas na Argentina podem
interferir no Mercosul?
Magnoli
- O Mercosul responde a um imperativo político mais
importante que seus aspectos comerciais: a aliança com a
Argentina. Essa aliança é o fundamento da paz e da
estabilidade no Cone Sul – e a única plataforma possível
de integração política e comercial da América
do Sul.
Nos
últimos anos, o Mercosul sofreu um processo de desconstrução.
O Brasil tem mais culpa por isso do que a Argentina, pois definiu
como prioridade a meta da conquista de uma cadeira de membro
permanente no CS da ONU, o que gerou atritos com Buenos Aires, e não
ofereceu apoio à renegociação da dívida
externa argentina. As novas medidas protecionistas adotadas por
Kirchner não ajudam, mas não deveriam servir para
ocultar os erros da política externa brasileira.
ComCiência
- Quais as implicações da entrada da Venezuela no
Mercosul?
Magnoli
- Cria-se uma dinâmica na qual a Argentina tem uma
alternativa ao entendimento e articulação de posições
com o Brasil. Politicamente, o Brasil torna-se menos determinante no
bloco e o bloco, menos dependente da parceria Brasil-Argentina. No
plano econômico e comercial, não há conseqüências
de curto prazo, pois a adaptação da Venezuela às
regras do Mercosul, cada vez menos estáveis, deve durar no
mínimo dois anos.
ComCiência
- A esquerdização da América Latina, com maior
autonomia em relação às grandes potências
deve contribuir para uma maior integração dos países
da América do Sul, além das questões comerciais?
Como isso poderá ocorrer?
Magnoli
- A “esquerdização” da América Latina é
mais um mito da mídia e um eco retórico que uma
realidade da política internacional. Venezuela e Bolívia
seguem políticas nacionalistas. Brasil e Chile mantêm
políticas econômicas liberais. A Argentina oscila, ao
sabor das necessidades imediatas do governo Kirchner. Além
disso, os atritos comerciais entre Brasil e Argentina, a política
do gás de Evo Morales e a defesa chilena da Alca revelam que,
no fim das contas, interesses nacionais estão acima da
retórica dos chefes de Estado. E esses interesses são,
em temas fundamentais, divergentes.
ComCiência
- Alguns críticos, como o egípcio Samir Amim avaliam
que o Brasil foi mal no Haiti e precisará se redimir. Mas
representantes do governo afirmam que a ajuda do Brasil ao Haiti tem
sido fundamental. Qual a sua posição em relação
à missão do Brasil no Haiti? O senhor acredita que essa
ação poderá garantir a posição de
membro permanente no Conselho de Segurança da ONU que o Brasil
deseja?
Magnoli
- O Brasil foi ao Haiti devido a uma solicitação de
George W. Bush, para sustentar um governo ilegal que emanou de
intervenção militar estrangeira. O governo Lula e o
Itamaraty apostavam que, em troca, Washington apoiaria a
reivindicação brasileira de um lugar de membro
permanente no CS da ONU. Isso não aconteceu e não
acontecerá: os EUA sabem que um CS ampliado, ao menos na forma
proposta pelo G4, é um empecilho à sua política
mundial.
ComCiência
- Até o final deste mês, os membros da OMC vão
apresentar suas propostas definitivas de reduções de
tarifas e subsídios nas áreas industrial, agrícola
e de serviços. O senhor acredita que Estados Unidos e Europa
vão reduzir esses subsídios, e qual o impacto disso
para o Brasil?
Magnoli
- Não há indícios de que os europeus
pretendam fazer cortes reais nos subsídios agrícolas.
Até o momento as propostas de Bruxelas são de “cortes
na água”, ou seja, redução de limites máximos
de subsídios que não são efetivamente
praticados. Na França, em particular, os subsídios
agrícolas são tema intocável da política
nacional. O risco é o fracasso total da Rodada Doha, que
poderia provocar até o colapso da OMC.
ComCiência
- No final deste mês, representantes da esquerda mundial se
reunirão em Recife, no Fórum Social Brasileiro, para
discutir principalmente a política brasileira, interna e
externa. Qual a sua perspectiva para esse Fórum, em vista do
ocorrido em Caracas?
Magnoli
- O FSM é, essencialmente, um congresso mundial de ONGs
revestido por uma retórica vazia anti-globalização.
Em Caracas, Hugo Chávez “sequestrou” o Fórum,
transformando-o em caixa de ressonância da sua “revolução
bolivariana”. As ONGs ficaram indignadas, pois querem um evento que
aumente seu poder de pressão sobre governos e agências
multilaterais como o Banco Mundial. As ONGs, que controlam os órgãos
de direção do FSM, vão se precaver para impedir
que esse controle volte a ser contestado.
|