Todos concordamos, ou ao menos tendemos a concordar, que a ciência contribui, de uma forma ou de outra, para a melhoria da qualidade de vida no planeta, embora seja também verdade que a desconfiança das populações não tenha deixado de acompanhar o desenvolvimento científico e as aplicações do conhecimento na geração das novas tecnologias e das inovações que se incorporam com frequência cada vez maior ao cotidiano de nossas vidas.
Além dos aspectos ligados ao bem-estar social que a ciência pode acarretar na forma das facilidades que pode oferecer através de suas aplicações tecnológicas e inovativas, há uma outra espécie de conforto que diz respeito às relações da sociedade com as tecnociências que envolve valores e atitudes, hábitos e informações, com o pressuposto de uma participação ativamente crítica dessa sociedade no conjunto dessas relações.
A esse tipo de conforto quero chamar de bem-estar cultural e é dele que pretendo, ainda que brevemente, tratar aqui.
O conjunto de fatores, eventos e ações do homem nos processos sociais voltados para a produção, difusão, o ensino e a divulgação do conhecimento científico constitui as condições para o desenvolvimento de um tipo particular de cultura, de ampla generalidade no mundo contemporâneo, a que se pode chamar de cultura científica.
A expressão cultura científica , como já observei (Vogt, 2003) tem, pelo menos, três sentidos possíveis: “cultura da ciência”, “cultura pela ciência” e “cultura para a ciência”.
A representação da dinâmica da cultura científica e desses diferentes sentidos complementares pode, num determinado espaço geopolítico, ser feita na forma de uma espiral que, acompanhando o desenvolvimento da ciência através das instituições voltadas para a sua prática e produção, contribua para visualizar e entender o que há de comum e, dessa forma, definidor, desse espaço geopolítico do conhecimento.
Nesse sentido, a espiral da cultura científica é também uma metáfora que pretende, de forma indicativa, relacionar fatos e acontecimentos institucionais coincidentes no tempo e que, desse modo, dispostos no movimento espiralado da figura, vão marcando pontos e desenhando traços que servirão para o delineamento do espaço cultural que abriga conceitualmente a dinâmica do conhecimento.
Espiral da Cultura Científica
Tomando-se como ponto de partida a dinâmica da produção e da circulação do conhecimento científico entre pares, isto é, da difusão científica, a espiral desenha, em sua evolução, um segundo quadrante, o do ensino da ciência e da formação de cientistas; caminha, então, para o terceiro quadrante e configura o conjunto de ações e predicados do ensino para a ciência e volta, no quarto quadrante, completando o ciclo, ao eixo de partida, para identificar aí as atividades próprias da divulgação científica.
Cada um desses quadrantes pode, além disso, caracterizar-se por um conjunto de elementos que, neles distribuídos, pela evolução da espiral, contribuem também para melhor entender a dinâmica do processo da cultura científica. Assim, no primeiro quadrante, teríamos como destinadores e destinatários da ciência os próprios cientistas; no segundo, como destinadores, cientistas e professores, e como destinatários, os estudantes; no terceiro, cientistas, professores, diretores de museus, animadores culturais da ciência seriam os destinadores, sendo destinatários os estudantes e, mais amplamente, o público jovem; no quarto quadrante, jornalistas e cientistas seriam os destinadores e os destinatários seriam constituídos pela sociedade em geral e, de modo mais específico, pela sociedade organizada em suas diferentes instituições, inclusive, e principalmente, as da sociedade civil, o que tornaria o cidadão o destinatário principal dessa interlocução da cultura científica.
Ao mesmo tempo, teríamos outros atores distribuídos pelos quadrantes. Desse modo, a título de ilustração, teríamos no primeiro quadrante, com seus respectivos papéis, as universidades, os centros de pesquisa, os órgãos governamentais, as agências de fomento, os congressos, as revistas científicas; no segundo, acumulando funções, outra vez as universidades, o sistema de ensino fundamental e médio, o sistema de pós-graduação; no terceiro, os museus e as feiras de ciência; no quarto, as revistas de divulgação científica, as páginas e editorias dos jornais voltadas para o tema, os programas de televisão, etc.
Importa observar que, nessa forma de representação, a espiral da cultura científica, ao cumprir o ciclo de sua evolução, retornando ao eixo de partida, não regressa, contudo, ao mesmo ponto de início, mas a um ponto alargado de conhecimento e de participação da cidadania no processo dinâmico da ciência e de suas relações com a sociedade, abrindo-se com a sua chegada ao ponto de partida, em não havendo descontinuidade no processo, um novo ciclo de enriquecimento e de participação ativa dos atores em cada um dos momentos de sua evolução.
Se perguntado sobre o sentido da vida, responderia que é o conhecimento que, desse modo, é ilimitado pela amplitude da pergunta e, ao mesmo tempo, limitado e útil pelo alcance de nossa capacidade de resposta.
Algo parecido pode ser encontrado, ou perdido, na metáfora fantástica e imortal do universo como a biblioteca de Babel, que nos apresenta Jorge Luis Borges em seu conto famoso. Depois de perambular pelos paradoxos do conhecimento contidos em sua labiríntica arquitetura, o autor/narrador anota, sob a forma de falsa conclusão, que a biblioteca é ilimitada e periódica. E termina: “Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao cabo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que repetida, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão se alegra com essa elegante esperança”.
O que, enfim, a espiral da cultura científica pretende representar, na forma que lhe é própria, é, em termos gerais, a dinâmica constitutiva das relações inerentes e necessárias entre ciência e cultura.
Buscar a qualidade de vida com auxílio da ciência e de suas aplicações é, nesse sentido, orientá-las para o compromisso com o bem-estar social e com o bem-estar cultural das populações dos diferentes países que se desenham nas redondezas do planeta. O bem-estar cultural é, assim, um conceito e um estado de espírito que se caracteriza pelo conforto crítico da inquietude gerada pela provocação sistemática do conhecimento.
Desse ponto de vista, seria ainda provocador distinguir duas formas de ignorância que resultariam de duas maneiras distintas de tratar e de relacionar-se com o conhecimento: a ignorância cultural que se opõe ao conhecimento, propriamente dito, e a ignorância social que se opõe ao conhecimento enquanto saber constituído, ou sabedoria autorizada. Neste caso, a ignorância é um estado de carência de conhecimento; no outro, o da ignorância cultural, trata-se de um estado crítico de desconfiança em relação ao conhecimento que se tem ou que se pode vir a ter. O que nos permitiria, na forma de um paradoxo, dizer que o objetivo do conhecimento é por o homem em estado de constante ignorância cultural. O que equivaleria a dizer que o bem-estar cultural é um estado paradoxal de qualidade de vida feito, ao mesmo tempo, de conhecimento e ignorância.
VOGT, C. A espiral da cultura científica. ComCiência . Disponível em: http://www.comciencia.br. Acesso em: jul. 2003.
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