10/06/2008
Ainda nos
tempos da ditadura, Marilena Lazzarini presidia o Procon-SP. Mas já
a incomodava o fato de que resolver reclamações
individuais é como enxugar gelo. Foi o ideal de defender
interesses coletivos que a levou a fundar, em 1987, dois anos após
o fim do regime militar, o Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (Idec). A independência política e econômica
da organização não governamental permitia ao
Idec um único interesse: o de representar coletivamente o
consumidor. Na presidência do Idec, Marilena venceu inúmeras
batalhas, hoje anunciadas no site institucional da organização,
como uma bandeira do mérito que faz lembrar todos os dias de
que lutar vale a pena. E são essas vitórias que motivam
a engenheira agrônoma a seguir na batalha por uma avaliação
adequada dos riscos dos transgênicos, que, ignorando as
irregularidades apontadas pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – mas
com o aval do governo brasileiro –, invadiram o mercado. E, na
figura de Marilena, essa luta transcende os limites do território
nacional. Hoje, mesmo no papel de coordenadora-executiva do Idec,
Marilena, que se tornou referência internacional, preside a
Consumers International, que congrega mais de 250 organizações
de consumidores de todo o mundo.
ComCiência
– Quais foram as principais conquistas e problemas enfrentados pelo
Idec nesses 20 anos de existência, atuando como defensor dos
interesses do consumidor? Marilena
Lazzarini – São incontáveis. No ano passado,
quando o Idec completou 20 anos, nós fizemos um livro com
essas conquistas e ele está no site do Idec para download. Mas
tivemos uma vitória que é emblemática: a
melhoria dos preservativos masculinos. Há uns 17 anos, no
Brasil, o padrão de qualidade exigido pelas normas técnicas
era muito baixo e isso com a aids se espalhando. Nós
insistimos, fizemos testes, trabalhamos muito para melhorar os
regulamentos técnicos e efetivamente esse trabalho resultou
numa melhoria de qualidade. Há também um trabalho que
nós temos na educação formal. É um guia
de consumo sustentável para professores, com o conteúdo
mais relevante para a realidade brasileira, e sobre como o professor
pode levar isso para a sala de aula, voltado para alunos de quintas a
oitavas séries do ensino fundamental. E esse material foi
adotado pelo Ministério da Educação, a quem nós
já cedemos os direitos autorais, e que capacitou 30 mil
professores. Outra vitória foi no caso dos alimentos
transgênicos. Continuamos nessa luta e o Idec tem dado uma
contribuição muito importante.
ComCiência
– A introdução dos transgênicos na cadeia
alimentar gerou um polêmico debate social e científico a
respeito dos riscos agregados e da necessidade de fornecer
informações ao consumidor. Qual é a posição
do Idec diante do plantio e comercialização de
transgênicos no Brasil? Marilena
Lazzarini – O Idec tem a mesma posição que tinha
em 1998, porque a decisão para liberar a soja transgênica,
o primeiro movimento da CTNBio, foi em 1998. Mas aí a
liberação foi interrompida, foi suspensa por uma ação
na justiça que o Idec apresentou. E desde aquela época
entendemos que a autorização para comercialização
desses alimentos requereria um protocolo de avaliação
ou regulamento técnico emitido pela Anvisa, que deveria
estabelecer uma avaliação de riscos à saúde,
e isso até hoje não aconteceu. A soja acabou sendo
liberada para comercialização sem esse protocolo e
também sem uma avaliação de riscos para o meio
ambiente, uma avaliação do impacto ambiental. E há
ainda um terceiro ponto: o da informação para o
consumidor. Havendo avaliação de riscos à saúde
e do impacto ambiental, é importante, também, o
consumidor ter a informação no rótulo, dizendo
se aquele produto é transgênico ou não, para que
ele tenha o direito de escolher. Esse foi o único ponto em que
nós conseguimos a vitória: a obrigatoriedade da
informação no rótulo, por meio de um decreto
federal. O governo acabou de liberar milho geneticamente modificado
sem avaliar riscos para a saúde e para o meio ambiente. E
ainda pior. A Anvisa e o Ibama fizeram manifestações
contundentes contra essa liberação e, mesmo assim, o
Conselho de ministros aprovou a liberação. Foi uma
aprovação de caráter político porque, no
âmbito da avaliação técnico-científica,
os órgãos envolvidos e tecnicamente responsáveis
por essa questão opinaram contra. Essa é uma situação
grave. Inclusive, o Idec recentemente entrou com uma reclamação,
junto com outras organizações não-governamentais,
ao Comitê de Cumprimento do Protocolo de Cartagena da
Organização das Nações Unidas (ONU), na
Alemanha, contra o governo brasileiro por esse motivo. No site do
Idec, estão os relatórios da Anvisa e o do Ibama. Eu
gostaria de convidar a todos que tiverem a oportunidade para entrar
no site do Idec, para que tenham a devida noção da
importância desses documentos e a percepção de
que a liberação dos transgênicos foi uma decisão
política.
ComCiência
– Levando em conta que a avaliação quanto à
segurança do produto geneticamente modificado deveria preceder
sua introdução no mercado, que postura o consumidor
deveria assumir nesse debate? Marilena
Lazzarini – Hoje, o rótulo deve informar que o produto é
geneticamente modificado, então o consumidor deve prestar
atenção no rótulo. Eu não compro produto
que tem ingrediente geneticamente modificado, porque eu sei que esses
produtos não contaram com uma adequada avaliação.
O governo e as empresas dizem que esses produtos não oferecem
risco à saúde, mas isso não está
demonstrado. Essa comprovação científica não
existe. Não estou afirmando que eles tenham; ninguém
sabe, porque isso não foi avaliado. E são alimentos
que, como eles são, não existem na natureza. Com aquilo
que a natureza fez, o homem já aprendeu a se relacionar, então
nós sabemos o que faz mal. Agora, com esses novos alimentos,
se eventualmente surgirem problemas daqui há alguns anos, como
não houve investigação científica, nós
vamos ter que lidar com coisas novas. Então, acho que é
mais seguro não consumir.
ComCiência
– As pesquisas em biotecnologia geraram produtos os mais diversos
que invadiram o mercado nos últimos anos e estão se
tornando cada vez mais acessíveis e banais. Como a senhora
avalia o impacto dessas novas tecnologias nas relações
de consumo? Que novas questões as biotecnologias trazem para
os consumidores? Marilena
Lazzarini – Depende muito do tipo de produto. Quando se fala de
um medicamento, ele é muito bem avaliado. Os protocolos de
avaliação de medicamentos são bem mais rigorosos
do que os dos alimentos. E os medicamentos são direcionados
para uma situação em que a pessoa tem um problema e vão
ter que passar por uma avaliação de risco e benefício.
Você vai passar pelo risco para conseguir o benefício,
você está apostando no benefício. Aí pode
valer a pena uma nova tecnologia que venha da biotecnologia ou de
qualquer outra técnica. O problema é o que está
sendo feito na área de alimentos transgênicos, em que
não há avaliação desses produtos, sendo
que as pessoas ingerem alimentos todos os dias em quantidades
grandes. A adoção dos alimentos transgênicos é
uma questão que envolve mudança de paradigma alimentar.
Estão trazendo coisas novas para bilhões de pessoas
consumirem em quantidades grandes.
ComCiência
– Pelo fato desses produtos terem o aval e legitimidade da ciência
o impacto é distinto do que acontece com outros produtos? Marilena
Lazzarini – Eles não têm o aval da ciência.
Existe uma controvérsia. Há cientistas, principalmente
aqueles que trabalham com a biotecnologia, que muitas vezes são
financiados pela indústria – porque a biotecnologia, em
grande parte, é desenvolvida não por instituições
independentes de pesquisa e sim por empresas que têm interesse
econômico – que defende os transgênicos. E há
cientistas muito críticos. Então, em
primeiro lugar, não há unanimidade. O que essas
empresas conseguiram foi - com um bom trabalho
de relações públicas, na mídia e, lógico,
como grandes anunciantes que são
– manipular a opinião pública. As matérias que saem, em geral, são favoráveis,
mas essa não é a realidade.
ComCiência
– Como tem sido o trabalho feito pelo Idec para sensibilizar o
consumidor de modo que ele se conscientize de que pode contribuir com
o desenvolvimento sustentável também na hora de
adquirir um produto? Marilena
Lazzarini – Nós temos trabalhado em várias
frentes do consumo sustentável. A mais relevante é o
“Manual de Educação para o Consumo Sustentável”.
Além disso, o Idec tem feito pesquisas e divulgado bastante
essa questão do consumo sustentável na nossa revista,
procurando abordar essa questão em termos práticos. Não
adianta falar de consumo sustentável sem levar para a prática.
Esse material, é voltado para a discussão prática
e também para a modificação de normas. Por
exemplo: as resoluções que regulam o descarte de
produtos que podem ser perigosos para a saúde, como pilhas e
baterias, que acabam indo para os lixões. Nós temos
defendido mudanças nessas normas, para que o fabricante seja
responsável por esse material. Isso não acontece no
Brasil, mas na Europa é obrigatório por uma diretiva
européia. Consumo sustentável e educação
são áreas em que o Idec quer trabalhar mais. Parte do
nosso papel tem sido produzir materiais. Hoje vejo muitas
organizações, como o Procon, usando nossos materiais, e
isso vai se multiplicando. Temos também o material “Mude o
consumo para não mudar o clima”, feito em parceria com uma
outra organização, a Vitae Civilis, e voltado para a
questão das mudanças climáticas. Temos o cartão
virtual, em que nós convidamos as pessoas a enviarem para o
seu supermercado. A chamada é: “Como saber se o seu bife
provoca desmatamento?”. A idéia é levar os
supermercados a cobrarem mais informação dos
distribuidores de carne, para garantir que essa carne não seja
procedente de áreas onde está havendo desmatamento.
Nesse tipo de material, a nossa proposta é sempre explorar a
questão das mudanças climáticas relacionando com
os padrões de consumo.
ComCiência
– O Idec foi fundado em 1987. Naquele ano, ainda não havia
Código de Defesa do Consumidor e nem mesmo a Constituição
Federal de 1988. Como foi fundar o Idec naquelas circunstâncias,
em que a abertura política era um processo incipiente? Marilena
Lazzarini – O Idec nasceu da minha experiencia no Procon-SP,
que dirigi de 1983 a 1986. Era um momento importante para o país,
momento de retomada da democracia, então já havia essa
luta por direitos, movimentos importantes, mas não se tinha
instrumentos para trabalhar. E mesmo assim muitas iniciativas foram
bem sucedidas com a ajuda da imprensa. Então, o Idec, para
mim, foi uma continuação da experiência que eu
estava vivendo no Procon. Mas, colocamos no Idec a perspectiva de uma
atuação mais coletiva do que individual, porque no
Procon o foco era bem grande na solução de reclamações
e o Idec começou com um foco mais coletivo.
ComCiência
– Qual é o papel do Idec hoje? Como ele se insere no atual
contexto político e social? Marilena Lazzarini – O Idec hoje é
uma organização que tem reconhecimento público
para representar os interesses do consumidor, nessa perspectiva
coletiva. Penso que o principal papel do Idec hoje é esse, o
de intervir, levando um posicionamento voltado para a defesa dos
interesses do consumidor em diferentes políticas públicas,
na área de alimentos, telecomunicações, serviços
financeiros, entre outros. Porque não adianta resolver o
problema, ou tentar resolver o problema, do consumidor individual, lá
na ponta do consumo, na relação de consumo, se não
houver um acompanhamento, monitoramento e também uma
incidência para garantir que as políticas públicas
levem em conta esses interesses. Resolver apenas reclamações
é como enxugar gelo. Por isso, hoje o Idec faz um esforço
grande para atuar nessa perspectiva das políticas públicas.
ComCiência
– A demora no atendimento, tanto por parte do Procon quanto pela
justiça, desestimula o consumidor que se sente lesado, o qual,
muitas vezes, acaba desistindo de procurar seus direitos. O que a
senhora aconselha nesses casos? Marilena
Lazzarini – No site do Idec, o associado tem uma área
reservada em que ele tem informações sobre praticamente
todos os problemas de consumo. Nós temos um banco de dados
sobre os direitos do consumidor e como ele deve proceder para fazer
valer os seus direitos. O primeiro passo que ele tem que dar é
buscar a solução do problema com a empresa diretamente,
não ir para a Justiça e não, necessariamente, ir
para o Procon. O consumidor, sabendo quais são os seus
direitos, na maior parte das vezes, consegue resolver o problema já
com a empresa. Saber os direitos é fundamental para saber
reclamar, porque o consumidor que mostra para a empresa que conhece
seus direitos, e que sabe reivindicá-los, geralmente tem
sucesso. O Procon é uma segunda alternativa e também os
juizados cíveis. E muitas vezes o consumidor consegue
resultados na justiça, a chance é grande. E a maior
parte desse problema é de âmbito coletivo. Mas o
consumidor vê essa questão por uma perspectiva
individual. Nós não temos ainda no Brasil uma cultura
de as pessoas se associarem às organizações de
consumidores. E de contribuir, porque uma organização
de consumidores precisa de associados para se sustentar porque não
pode receber dinheiro de empresas. O Idec não pode ter nenhuma
fonte que comprometa a sua independência. Então, há
grandes questões, as mais importantes, que são de
interesse coletivo porque elas passam pela definição de
políticas públicas, por um regulamento mal feito, o que
pode prejudicar todos os dias o consumidor. E mesmo que ele vá
reclamar no Procon, existe um regulamento que é contra o
consumidor. E quem é que faz esse regulamento? Lá no
governo, na comissão, no comitê, no Congresso Nacional,
são as organizações de defesa do consumidor que
vão representar e defender esse interesse, com apoio técnico
e advogado, porque o consumidor individualmente não faz isso.
A organização é como um sindicato que defende os
interesses dos trabalhadores.
ComCiência
– O Idec chegou a organizar, em 2003, protestos na forma de
boicotes populares, como o chamado “caladão”, contra o
reajuste da conta telefônica, em que os consumidores deixariam
seus telefones fora do gancho por algumas horas, e também o
“boicote pela paz”, em que os consumidores brasileiros evitariam
produtos de origem norte-americana em represália à
intervenção militar dos EUA no Iraque sem o aval da ONU
(Organização das Nações Unidas). Qual é
a sua avaliação a respeito desse tipo de protesto? A
senhora acha que eles deveriam ser adotados com maior freqüência
e de forma mais disseminada? Marilena
Lazzarini – Campanha de boicote é algo que precisa ser
bem planejado para não desgastar essa força. Acho que a
maior força do consumidor é essa, deixar de comprar, de
forma coletiva, determinados produtos. Nós temos vontade de
fazer mais dessas campanhas. O boicote tem que ser amplo para
realmente provocar uma mudança. Tem que ter uma questão
que envolva o interesse de uma parcela grande da população
e é uma estratégia muito importante. Eu imagino que
vamos ter muitos ainda nessa questão do consumo sustentável,
porque há uma tendência de que as organizações
de consumidores acompanhem a conduta de determinadas empresas.
ComCiência
– Desde março, na hora de oferecer parcelamentos que
envolvam cobranças de juros, as empresas têm que
informar ao consumidor o Custo Efetivo Total (CET), composto por
juros e outras taxas, como Imposto sobre Operaçõs
Financeiras (IOF) e Taxa de Abertura de Crédito (TAC). Dessa
forma, o consumidor saberá exatamente quanto vai pagar pelo
parcelamento. Antes disso, as empresas em geral mostravam somente os
juros, omitindo as outras taxas embutidas. Avalia-se que, com o CET,
será mais fácil comparar cada forma de pagamento e
escolher a mais vantajosa. Qual é o impacto desse tipo de
transparência nas relações de consumo? Marilena
Lazzarini – O CET nada mais permite do que o Código de
Defesa do Consumidor já obrigava. Ele já estava
disposto no Código. Hoje, essa questão é muito
importante porque, no Brasil, a quantidade de pessoas que ascendeu ao
mercado de consumo de uma forma mais ampla é de 20 milhões
de pessoas. São pessoas que estão recebendo cartão
de crédito, que estão começando a comprar muitas
coisas que elas não compravam, uma série de produtos, e
compram mal. Se por um lado elas tiveram uma melhoria na renda, por
outro lado, por falta de informação, eles são
vulneráveis. Todo consumidor é vulnerável. Na
condição de consumidor, perante as empresas, todos são
vulneráveis. O que dirá essa parcela de consumidores
que está entrando agora. Eles são hiper vulneráveis,
principalmente em relação a compras a crédito,
que têm taxas de juros exorbitantes. E o Custo Efetivo Total
ainda não está sendo implementado; se você for
nas lojas que vendem produtos a crédito, financeiras, essa
informação ainda não é fornecida de forma
adequada. Mas é óbvio que ela vai ajudar. Além
disso, é importante que a população se informe
melhor, porque uma doença que está crescendo em vários
países é o endividamento. Hoje tem países com
índices de endividamento preocupantes e alguns têm
uma legislação que "trata" das pessoas endividadas, como
aqui a legislação cuida das empresas nessa situação. No Brasil não se tem legislação para isso;
se a pessoa física vai à falência, ela não
tem saída, ela tem um tratamento pior do que a empresa. Há um grupo de juristas preparando
uma proposta de legislação para lidar com
endividamento. E hoje
existe um apelo muito forte para que a população compre
a crédito. Se você sai pelo centro da cidade aqui de São
Paulo, o que tem de pessoas que ficam fazendo propaganda na rua
chamando “Compre aqui”, “Crediário fácil”, e
essa propaganda está também na TV e cartões são
enviados pelo correio sem as pessoas pedirem. A
informação é fundamental, mas não só
informação, a educação.
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