As imagens que constituem nosso imaginário sobre os países africanos são formadas por estereótipos reproduzidos intensamente desde o período colonial. Filmes como Tarzan, Os deuses devem estar loucos ou As minas do rei Salomão apresentam o continente como selvagem, atrasado e sem história. A maior parte desses filmes foi produzida por cineastas estrangeiros. Muitos tinham a intenção de documentar a vida e os hábitos africanos através de documentários etnográficos produzidos, principalmente, entre as décadas de 1930 e 1950 como uma espécie de inventário sobre o comportamento dos povos africanos. Mas se para o ocidente ver filmes sobre África servia como conhecimento de um continente “inóspito” e “distante”, os colonizadores europeus faziam o uso de imagens como meio de “domesticar” e “civilizar” os povos colonizados. Filmes em que se ensinava como era o comportamento dos ocidentais e como africanos deveriam reproduzir esse comportamento para se civilizarem eram distribuídos pelos escritórios britânicos e franceses mostrando como o cinema não era apenas um meio de diversão, mas era também imbuído de uma tarefa civilizatória.
Dentro desse contexto, a produção cinematográfica africana conduzida por realizadores africanos era inexistente. Foi apenas com o vislumbre das independências que africanos passaram a ter direito de produzirem seus próprios filmes, falando de assuntos pertinentes à sua realidade e à sua fantasia. É no limiar das independências também que cineastas europeus começaram a produzir filmes anticolonialistas, como As estátuas também morrem (1955) de Alain Resnais (diretor de Hiroshima, mon amour) e Chris Marker em que criticavam a pilhagem da arte africana pelos museus europeus (a sua exibição foi proibida na França durante 10 anos) ou, o mais recente, Der Leone hat sept cabezas (O leão tem sete cabeças), de 1970, em que Glauber Rocha crítica a razão colonial européia.
Os primeiros filmes produzidos e dirigidos por cineastas africanos narravam suas difíceis experiências nas metrópoles coloniais onde vivenciavam o choque com a descoberta do racismo, o desprezo e o mercado de trabalho. L'Afrique sur Seine de Paulin Soumanou Vieyra (1955) é um exemplo desse caso. Apesar de ser um filme africano, foi gravado em solo europeu e analisa os costumes em relação à presença negra africana na Europa. Touki-Bouki (1973) de Djibril Diop Mambéty (Senegal), Le Soleil (1969) de Med Hondo (Mauritania) e La noire de…(1966) de Ousmane Sembène (Senegal) tocam no mesmo tema, ainda hoje caro ao cinema africano das mais distintas nacionalidades.
No Brasil, infelizmente, há pouco acesso à diversidade da filmografia africana. Talvez o filme mais conhecido seja o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2006, Infância roubada (Tsotsi, 2005), do sul-africano Gavin Hood que fala sobre a juventude marginal de Johannesburgo. Outro diretor de repercussão é Idrissa Ouédraogo, burkinese que dirigiu um dos curtas do longa 11 de setembro (11'09”01) realizado em 2002, em que crianças de Burkina-Faso acreditam ter visto Osama Bin Laden e tentam capturá-lo para ganhar uma recompensa e comprar remédios para a mãe doente de um deles. Dos filmes produzidos pelos Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) há pouca divulgação e perde-se a oportunidade, por exemplo, de ver a profícua cinematografia de Flora Gomes, cineasta de Guiné Bissau. Flora mergulha no mundo guineense, revelando os principais problemas de sua sociedade através de alegorias, da análise da diáspora africana na Europa ou da relação entre a tradição e a modernidade como em Nhá Fala (2002), Mortu nega (1988) e Pó di sangui (1996).
Algumas mostras de cinema africano são produzidas esporadicamente no Brasil como a Mostra Novo Olhar do Cinema Africano, promovida pela Cinemateca Francesa ou a Retrospectiva da Fespaco (Festival Pan-Africano de Cinema e de Televisão de Uagadugu/ Burkina Fasso), maior festival de cinema africano, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Quase não há produção acadêmica sobre o tema e a esparsa bibliografia sobre cinema africano restringe-se à literatura em língua francesa e inglesa em bibliotecas universitárias – na Unicamp são em torno de 9 livros e alguns artigos ou entrevistas com cineastas africanos. Lastimável, pois nossa leitura do cinema africano sempre parece mediada por leituras e análises de segunda mão. Nosso conhecimento também é pequeno sobre o sistema de produção africano e com isso, nos mantemos alheios, por exemplo, à criatividade e intensidade da produção da Nolywood nigeriana.
A Nigéria é um dos maiores produtores mundiais de cinema. Segundo a Cahiers du Cinéma, uma das mais respeitadas revistas de cinema do mundo, em 2004, os nigerianos produziram em torno de 1200 filmes – o dobro da produção de Hollywood – arrecadando em torno de US$ 250 milhões, a terceira maior arrecadação mundial, atrás somente dos americanos e dos indianos. A indústria cinematográfica nigeriana é a segunda maior indústria do país e perde apenas para a indústria petrolífera. Embora a cinematografia nigeriana remonte aos anos 1950, foi somente na década de 1990 que ela ganhou status de indústria: seu surgimento remonta ao cineasta Okechukwu Ogunjiofor. Camelô, ele notou que se gravasse filmes dentro dos VHS que vendia por 1 dólar, poderia vendê-los pelo triplo do preço. Assim gravou seu primeiro filme, Living in Bondage, em vídeo e conseguiu vender mais de 750 mil cópias do mesmo. Os atores eram seus amigos. A distribuição dos filmes é feita por uma rede de camelôs e em locadoras de vídeo. A indústria de distribuição de cinema na África, assim como na América Latina é dominada por grandes indústrias internacionais, então o sistema nigeriano é uma opção que opera contra essa indústria hegemônica. Pode ser irônico, mas isso se deve sobretudo à globalização que barateou o acesso aos meios de produção audiovisual.
Grande parte dos filmes de Nollywood trata de “amor, romances, religião, tradição e crimes”, segundo a cineasta Amaka Igwe em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 11 de maio de 2006. Esse cinema, conhecido como cinema povo, é baseado em produções de baixo custo, em torno de 20 mil dólares, financiados por produtores locais, que vendem em média 100 mil vídeos a 3 dólares. Esse esquema de produção e distribuição faz o diferencial do cinema nigeriano, que não recebe subsídio do governo e que agora transcende os limites do seu próprio território: através do canal Africa Magic pode ser vista 24 horas por dia em toda a África. A história de africanos, contada por eles mesmos faz sucesso, subvertendo a idéia de que é necessário uma excelência de qualidade e produções de altíssimo custo para atrair público. Esse tipo de produção repele a pirataria. Aqui, o fenômeno é estudado por Ronaldo Lemos, advogado e representante da licença Creative Commons no Brasil. Mas além dos circuitos do povo, que vêm rapidamente se expandindo, temos um circuito mais tradicional ligado aos festivais de cinema.
Antes da Nigéria, Burkina Faso era reconhecida como a Hollywood africana. Com mais de 100 cineastas, cujo principal expoente é Idrissa Ouédraogo, o país montou um fundo para o desenvolvimento cinematográfico após a independência, além de nacionalizar as salas de cinemas e abrir uma escola técnica de cinematografia. Em Burkina Faso, como em muitas partes de África as dificuldades na produção de cinema provêm da escassez de recursos técnicos para a produção, mas também de dentro de um âmbito político, pela definição do que seja de fato a missão do cinema africano: fortalecer ou criticar as tradições. Optar por um ou outro é, para muitos cineastas, motivo para terem seus filmes qualificados como mais ou menos africanos. Para Ouédraogo, em entrevista à Lúcia Nagib1 trata-se de notar que “temos tantas coisas para contar sobre o amor, a vida, sobre a violência, mas coisas também que fazem parte de nossa própria sociedade, já que a nossa sociedade faz parte da humanidade. Se contarmos essas coisas com palavras corretas, que nos tocam realmente, os outros nos compreenderão. Mas se nos fecharmos na nossa especificidade porque é cômodo e os europeus apreciam, porque é exótico, nunca iremos progredir” 1. Trata-se mais oportunamente de definir quais são os limites da tradição e da universalidade do cinema africano. Durante algum tempo essa dicotomia era mostrada através da oposição entre filmes rurais e urbanos, sendo que a expressão cunhada para designar o primeiro grupo foi “filmes-aldeia”. Os temas prediletos desses filmes eram os casamentos poligâmicos e questões de gênero. Nesse quesito, tanto a produção de documentários como a de filmes de ficção é bastante forte. Veja-se o filme Sambigaza (1972) de Sarah Maldoror sobre mulheres durante o período da guerra em Angola.
Africanos também já rodaram filmes no Brasil, como A deusa negra dirigido pelo nigeriano Ola Balogun, em 1979, onde é narrada a história de um intelectual nigeriano que descobre as tradições afro-brasileiras.
Há uma diversidade de produção de cinema dos países africanos. Talvez seja exagerado falar de um cinema africano, mas assim como há uma diversidade de países em África, há lá também uma diversidade na produção de cinema. Países mais expressivos ou menos expressivos em sua produção, todos tentam, de algum modo, hoje, exprimir-se pelas imagens em movimento.
Conhecer a África pelos africanos poderia ampliar nosso entendimento, revertendo imagens estereotipadas de representação e contribuindo para um imaginário mais amplo sobre o continente. Poderia abrir-nos também para novas experiências e para a troca de vivências que poderiam nos mostrar novos meios de produção e distribuição de cinema que vão para além do modelo hollywoodiano.
Janaína Damasceno é filósofa, produtora de cinema e mestranda da Faculdade de Educação da Unicamp
1 Revista Imagens, v 8, 1998: p. 114-121
|