Por
que o mundo não é uma bola de bilhar, liso, sem fronteiras políticas? Essa
pergunta feita por um geógrafo, Jean Gottmann, na década de 1950, anima até
hoje muitos espíritos nas ciências humanas e no mundo prático da política.
Há
um paradoxo colocado à existência do território político desde sua fundação
moderna, com a Paz de Westphalia estabelecida na Europa em 1648. Quanto maior é
a integração física do mundo, com o estabelecimento de redes de transporte e
comunicações, maior é sua compartimentação em novas unidades territoriais políticas.
Integração rima com compartimentação ou, em outras palavras, quanto maior o
intercâmbio, mais fronteiras são construídas. À medida que caíram as barreiras
físicas de acesso aos lugares, outras barreiras foram erguidas, as políticas.
De fato, o
território sempre suscitou referências identitárias, sociais, políticas,
jurídicas e econômicas, acalorando debates sobre as nacionalidades, regiões e
lugares que, circundados por fronteiras políticas, individualizam-se jurídica e
politicamente. A exaltação política e a exatidão geométrica do território
cristalizaram-se, sobretudo, a partir do século XVII. Até então, o território
designava a zona que circundava uma cidade e que estava sob sua jurisdição.
Como o Império Romano e a cristandade tinham pretensões de universalidade, o
termo nunca se aplicou às suas jurisdições completas. O território ressurge nas
cidades medievais italianas, mas o seu significado moderno, como área de
exercício do poder de um Estado e não mais apenas de uma cidade, emerge quando
Estado e soberania passam a compor uma única ordem territorial e as fronteiras
que circunscrevem cada território passam a ser respeitadas internacionalmente.
Portanto, apesar do termo território ter sua raiz no Império Romano, é somente
a partir do século XVII que seu uso político passa a ser mais largo,
especialmente em razão do Tratado de Westphalia. Segundo este tratado, cada
Estado é soberano em seu território; consequentemente, as interferências nos
assuntos internos de um país passam a ser reconhecidas como violação dos
direitos internacionais. Assim, surgem na Europa as primeiras fronteiras
modernas que demarcam os primeiros Estados-territoriais do mundo.
A
compartimentação do mundo em territórios nacionais resulta do problema
fundamental da repartição e distribuição das coisas e pessoas segundo
diferentes projetos de uso do espaço humanizado. A compartimentação começou com
a circunscrição do primeiro campo, com a construção do primeiro limite e o
traçado do primeiro caminho; de uma maneira geral, o espaço destinado ao
trabalho é apropriado, delimitado, marcado. Toda forma de vida que se propagou
sobre a Terra, sempre tomou a forma de um domínio, dotado de uma posição, uma
configuração e um tamanho, um espaço de propagação, cujos pontos
extremos são demarcados para a fixação daquilo que é interno e externo. Este é
um dos paradoxos fundamentais do uso do território; ele é ao mesmo tempo
compartido e dividido, pois os indivíduos se unem no espaço em função de seus
projetos, mas também são obrigados a excluir outros para conseguir o mesmo fim.
A
Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada em 1945 com 51 membros. Em 1989
ela passou a ter 158 membros; em 2000, eram189; e hoje chega a 193 membros. A
esse número podem ser agregados territórios independentes mas não reconhecidos
e os Estados juridicamente reconhecidos mas de soberania limitada. Ainda que
não tenhamos espaço neste pequeno texto para entrar no debate sobre os territórios
independentes e os de soberania limitada (os quase-Estados), o que importa é
constatar que o processo de compartimentação não está estancado, ou seja, aos
193 membros da ONU ainda teríamos que considerar muitas regiões que lutam por
sua independência. O caso mais recente é o do Sudão do Sul, tornado
independente depois de doze anos de guerra civil.
Após
a Segunda Guerra Mundial, a busca por soberania é o evento explicativo do
processo de descolonização que culminou com a criação de um grande número de
novos territórios nacionais. De 1946
a 1989 – antes do fim da União Soviética – quase uma
centena de países foram criados como resultado da descolonização. Depois de 1989, a divisão da União
Soviética é a maior responsável pela criação de novos territórios nacionais.
Não
há qualquer espaço da superfície terrestre que não tenha sido objeto de
apropriação política segundo os critérios de Westphalia. Por isso, hoje, compartimentação
é referida à divisão política de um território nacional já existente e que dá origem
a uma nova nação, ou a novas nações, como ocorreu com a antiga União Soviética.
Apesar dos traumas que, na maioria das vezes, envolvem o separatismo – do qual a
Iugoslávia emerge como paradigma –, o surgimento de uma nova nação não implica
em perda de soberania para o território cindido, tampouco para o território
nascente. Com a compartimentação, a divisão multiplica o princípio da
autodeterminação dos povos: a cada nova nação e sua soberania, seu território. São
regiões que buscam soberania e, assim, reafirmam o princípio político
fundamental de existência do Estado territorial moderno.
Contudo,
especialmente hoje, com a globalização econômica, aos processos de
compartimentação somam-se os processos de fragmentação dos territórios. Com a
globalização, a Terra é inteiramente compartimentada, e todo e qualquer pedaço
da superfície se torna funcional às necessidades, usos e ambições de Estados e
empresas transnacionais. Redefinida em função dos atributos do atual período, a
compartimentação atual distingue-se daquela do passado recente na medida em que,
hoje, à compartimentação associa-se o que Milton Santos chama de fragmentação do território.
A velocidade é um dos atributos distintivos da
atual globalização, sobretudo a velocidade aplicada à transmissão das
informações que autoriza a constituição de um comércio planetário capitaneado
pelas finanças. No centro das transformações mundiais encontram-se mutações nas
condições de mobilidade relativa dos capitais, das técnicas e das pessoas,
estas menos móveis. Para os agentes hegemônicos, aqueles que efetivamente têm
poder de ação planetária, todas as possibilidades dessa circulação global são
exploradas, mas para a maioria da humanidade, esse mundo fluido é apenas uma
imagem.
Ao acelerar a
circulação dos capitais, a globalização revoluciona os horizontes temporais dos
lugares atingidos pela aceleração, promovendo atritos entre os atores internos.
Todavia, isso só pode ser realizado por meio de investimentos de longo prazo no
meio ambiente construído, ou seja, sem territórios fluidos, a velocidade não
pode ser realizada. Mas, apesar da porosidade das fronteiras dos territórios
nacionais, há cada vez mais capital fixo no território, criando uma estrutura
de recursos geograficamente organizada que inibe a livre trajetória das
circulações. Como afirma David Harvey, a ideia de desmantelar infraestruturas
urbanas e grandes obras de engenharia é sempre difícil; portanto, cria-se uma
enorme contradição com a crescente necessidade de fluidez. Além disso, as novas
circulações, sob o escudo da globalização econômica, exigem adaptações
normativas dos territórios nacionais à suas equações de lucro. Veja-se o caso
atual da crise na Grécia: a União Europeia – leia-se França e Alemanha – não
aceita que a Grécia realize um plebiscito sobre um “pacote de ajuda financeira”
ao país, que em outras palavras significa aprofundamento à adesão ao processo
de globalização dos capitais. A soberania territorial grega é questionada e o
país se fragmenta entre a aceitação incondicional à globalização e a sua
recusa.
Assim, formas e
normas são permanentemente mobilizadas, buscando a ilusão de um planeta “liso”,
sem fronteiras políticas, homogêneo. Por isso, do ponto de vista da circulação
do capital, os territórios nacionais aparecem como uma inconveniência, uma
barreira a ser superada, tanto materialmente quanto normativamente. O
capitalismo é caracterizado por um esforço permanente de superação de todas as
barreiras espaciais à circulação do capital. Tentando impor-se como norma, a
globalização demanda formas para a aceleração da circulação; por isso hoje os
lugares são “nervosos”: a todo o momento são exigidas adaptações materiais e
legais que atritam com o espaço preexistente.
As
tentativas de homogeneização das sociedades, inerente à unificação da economia
mundial, têm como corolário a fragmentação das mesmas, pois entre a razão
mercantil que se expande e as culturas com seus desejos de afirmação e de
pertença, as diferenças aumentam. A vocação transfronteiriça do mercado global
se dá mediante processos que buscam a unificação de pontos de interesse do
capital e não propriamente a união da totalidade do território. Por estas
razões, os conflitos territoriais se exacerbam e a coexistência se torna
conflitiva. De um lado, espaços extrovertidos, guiados pelos princípios do
mercado global, e, de outro lado, a criação de novas formas de solidariedades
domésticas, orientadas por princípios que escapam à racionalidade hegemônica. O
caso da realização de grandes eventos esportivos no Brasil acaba de colocar em
choque a soberania brasileira e as exigências da Federação Internacional de
Futebol (Fifa) para a realização de tais eventos. Essa dialética entre uma
racionalidade global, portadora de demandas homogeneizantes, e uma
racionalidade nacional, portadora de demandas particulares, é motivo de tensão.
Como também é motivo de
tensão a “guerra fiscal”. Ela, como muitas pesquisas já mostraram, é, em
verdade, uma guerra global entre lugares. As grandes corporações elegem nos
territórios os pontos de seu interesse e, a partir daí, passam a exigir
equipamentos locais e regionais adequados ao seu funcionamento. Além disso,
exigem adaptações políticas, mediante a adoção de normas, legislações
trabalhistas frouxas e aportes fiscais e financeiros. É a partir desses
instrumentos que os lugares passam a concorrer entre si para atrair
investimentos, obedecendo ao imperativo da competitividade. Sobretudo, trata-se
de tornar o território mais fluido, com aportes informacionais modernos, para
atender as demandas das empresas. Os colapsos institucionais (municipais e
estaduais) não são menos importantes. Presos a engessadoras políticas de
austeridade fiscal e alimentados pela crença de que orçamentos “enxutos” sempre
são o melhor meio para uma cidade competitiva (eis a “guerra dos lugares”),
reduzem-se os serviços públicos enquanto aumenta a concessão de subsídios
fiscais, tributários e infraestruturais, segundo as equações de lucro de cada
empresa. Aprisionado pela ideologia da competitividade territorial, os laços
regionais nacionais são desconstruídos, e o território é cindido entre lugares
concorrendo por investimentos.
A maior inserção no
mundo da globalização sem a consideração da soberania nacional enfraquece ainda
mais os laços regionais. A inserção dos países nos novos contextos globais
aumenta as diferenciações inter e intra-regionais, produzindo regiões alienadas ao capital
internacional, ao mesmo tempo em que produzem-se novos bolsões de pobreza em
regiões onde antes não existiam, em razão da absorção de um padrão de
tecnificação caracterizado por uma margem crescente de desemprego estrutural
(com a adoção de tecnologias poupadoras de força-de-trabalho). Essa alienação,
aliada ao colapso do planejamento econômico nacional, tendencialmente fortalece
opções de integração regional com o exterior, em detrimento das articulações
inter-regionais. Essa “exogamia” coloca em risco as forças centrípetas que
agiram para integrar o território nacional.
A globalização hegemônica,
conforme André Gorz, é referida ao imperativo da competitividade que afrouxa as
coerções sociais, colocando aqueles Estados que aceitam a supremacia das leis
do mercado a serviço da competitividade das empresas. Esse imperativo conduz ao
divórcio entre os interesses do capital transnacional e aqueles do Estado
nacional, referido à nação. O espaço político do Estado (que deveria abranger a
totalidade do território nacional) e o espaço econômico das empresas
(constituído por pontos, por fragmentos de interesse do capital transnacional)
deixam de coincidir. Ao institucionalizar e materializar interesses do mercado
(porque a fluidez requerida pelas empresas é normativa e também
infraestrutural), o Estado ordena um território fluido para o mercado
hegemônico, um território reticulado por interesses pontuais e setoriais. Ao
realizar a política das empresas o Estado renuncia aos pactos de abrangência
nacional para realizar pactos de abrangência pontual; para as empresas, a
valorização do lugar tem a ver com os pontos de interesse de lucro e não com o
entorno: os compartimentos não coincidem com os espaços reticulares de
dominação das empresas. Aqui a globalização se inscreve no processo de
dominação.
Contudo, a globalização
atual não se restringe à fragmentação, porque há processos em curso que promovem
novas solidariedades entre povos e territórios. Por meio de integração
solidária, obtida mediante solidariedades sociais, econômicas e culturais,
grupos sociais sobrevivem em conjunto. Temporalidades
internas, ou, contra-racionalidades, definem formas diversas de convivência com
o meio geográfico, criadas a partir do próprio repertório de estratégias que os
grupos territorializados desenvolvem ao longo de sua permanência nos lugares.
Essas forças de permanência de um grupo, em coalescência com seu meio, para usar uma expressão de
Max Sorre, resultam de ordens internas, apesar das influências e
interdependências globais. Parte da força política dos movimentos que lutam
pela preservação de suas formas de vida vieram de mobilizações internacionais,
de ideias que, apesar de se realizarem localmente, compartilharam dos
fundamentos mundiais do chamado “direito à diferença”. As forças de circulação
exacerbadas neste período têm caráter de dissolução de hábitos, costumes e tradições
que desorganizam a vida dos lugares, mas também são fontes de proposição de
novas formas de convivência, novas iconografias,
pois a realização cada vez mais densa do processo de globalização enseja o
caldeamento, ainda que elementar, das filosofias produzidas nos diversos
continentes. Aqui a globalização se inscreve, sobretudo, no processo de
emancipação e busca desenhar uma nova federação de lugares, distante dos
processos de fragmentação. Essa globalização age mais num mundo em que a velocidade
não traduz a vida de relações dos lugares, tampouco a dominação é sua matriz.
Esse recorte analítico
orienta a distinguir entre as forças do mercado global, desorganizadoras da
vida de relações e a força das ideias veiculadas por uma outra globalização, conforme
Milton Santos. Sendo o nexo entre as forças globais e os lugares, os
territórios nacionais solicitam pactos de abrangência também nacional e segundo
parâmetros de um projeto que possa servir a todos, lugares e pessoas, de
maneira mais justa e digna para evitar os processos de fragmentação.
Marcio Cataia é professor no Departamento de Geografia do
Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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