A política econômica de um país representa
muito mais do que o conjunto de medidas elaboradas para sanar picos de crises
remanescentes de processos históricos e iniciativas mal planejadas e mal
sucedidas. Mesmo que não tenha um reflexo imediato, pode delinear o
comportamento de uma sociedade. O período histórico pós-ditadura do Brasil tem
muito a nos ensinar a esse respeito, não apenas no que concerne às tentativas
de controle e consolidação da economia, mas principalmente em relação à
experiência e maturidade alcançadas. E como dizem os especialistas, as medidas
acabaram por promover o controle da inflação para valores aceitáveis no
contexto econômico moderno.
Para entender a crise e os planos econômicos
dos anos 80 é preciso recuperar o processo histórico de desenvolvimento
trilhado pelo Brasil, em décadas anteriores, quando o modelo econômico
brasileiro foi marcado pela falta de planejamento e continuidade das ações ou
intervenções dos governos, com o intuito de gerenciar e regular a economia.
Segundo Alexandre Macchione Saes, professor
de economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da
Universidade de São Paulo (FEA-USP), para entender a questão inflacionária do
Brasil é importante reconhecer que, ao longo dos anos 70, os planos nacionais de
desenvolvimento (PND) I e II, resultaram no “milagre brasileiro”, marcando um
período de forte crescimento (7% ao ano, em média) da economia nacional. Esses
planos tiveram como base o controle total do processo de produção da indústria
nacional. Um dos efeitos foi uma ampla disseminação de bens de consumo entre as
famílias brasileiras.
Entretanto, o grande endividamento nacional
para o financiamento desse crescimento, somado à crise do petróleo de 1973,
levaram ao aumento da inflação, que ficou em 34% na média da década. “O que era
aceitável naquele momento”, ressalta Saes, “pois havia a preocupação de que o
Brasil conseguisse completar todo o processo de industrialização e alcançasse
outro patamar, o dos países chamados de primeiro mundo”. O resultado
disso foi um período inflacionário que não era acompanhado pelo crescimento da
economia. “A escassez de financiamento externo faz com que o Brasil patinasse
no seu crescimento e perdesse o controle em relação à inflação, que continuou subindo,
refletindo diretamente na situação econômica do Brasil nos anos 80”, diz Saes.
Nesse sentido, a década de 80 apresenta duas
grandes fases. Uma que ocorre na primeira metade e ainda segue um pensamento
mais ortodoxo liderado por dois grandes economistas, Mário Henrique Simonsen e
Antônio Delfim Netto, ambos ministros de planejamento, que acreditavam que
seria necessário primeiro fazer um grande ajuste e conter a inflação, inclusive
fazer um ajuste externo, e depois voltar a pensar a questão do crescimento em
si. “Assim, é assumida uma ideia quantitativa da moeda, provocando um
endividamento do Estado que acaba forçando a emissão de moeda que, por sua vez,
gera a inflação”, explica Saes. Essa postura, pautada pela ortodoxia monetária,
resulta em um “choque ortodoxo”, caracterizado por queda dos gastos,
desindexação dos salários, e elevação dos juros, para o qual a solução estaria
na redução dos gastos, de forma que, ao menos teoricamente, seria possível
superar a inflação já nos anos 80.
Contudo, como esclarece Saes, essas medidas
não foram suficientes. Os resultados vão contra a lógica monetarista, pois
apesar da recessão – um dos efeitos desse enxugamento de recursos –, a inflação
não cede e perpetua-se uma estagflação (situação na qual a taxa de
inflação é alta, mas a taxa de crescimento econômico é baixa).
Consequentemente, aparecem novas linhas de
análise sobre a inflação e, a partir de 1985, iniciam-se os planos heterodoxos,
que vão encarar a inflação de uma maneira diferente, assumindo que no Brasil ela
tem um caráter muito peculiar. Desenvolve-se, então, a teoria da inflação
inercial – tendo como principais autores Luis Carlos Bresser-Pereira, André
Lara Resende, Francisco Lopes e Pérsio Arida –, na qual não há uma relação
direta entre oferta e demanda de bens e moedas, ou seja, o que irá gerar a
inflação não é apenas colocar mais moedas em circulação. A nova teoria propõe um fator que não era considerado, que é chamado de memória inflacionária – existe na inflação,
naquele momento, uma interferência da inflação experimentada, por exemplo, no
mês anterior. Desta maneira, essa mudança de concepção,
referente à origem da inflação, vai aparecer em todos os planos implementados a
partir de 1985. Serão as novas receitas para se combater a inflação.
O primeiro exemplo é o Plano Cruzado, que
contou com a criação de uma nova moeda, o cruzado, eliminando-se 3 zeros em
relação à moeda anterior, e que entrou em vigor no dia 28 de fevereiro de 1986.
O cruzado foi concebido para frear a intensa inflação, em torno de 19% ao mês em 1985, e, apesar de perseguir os mesmos objetivos
dos planos anteriores, ou seja, combater a inflação mantendo os níveis de
produção, contou com uma conduta tática muito diferente: através do congelamento
de preços, cria o gatilho salarial (reajuste automático de salários toda vez em
que a inflação alcançasse um determinado índice), e promove uma reforma
monetária. Porém, a inflação persistiu alta, revelando o fracasso do Plano
Cruzado, e no dia 21 de novembro daquele mesmo ano, é lançado um novo conjunto
de medidas, chamado de Plano Cruzado II.
Segundo Roberto Camps de Moraes, professor
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, doutor em economia e especialista em
desenvolvimento econômico, o Plano Cruzado “foi mal concebido e mal administrado.
Mal concebido por três razões principais: 1) congelou todos os preços da
economia, incluindo o câmbio, 2) aumentou os salários reais pelo pico anterior,
e 3) não tentou sequer fazer um ajuste fiscal, o que estava na raiz do processo
inflacionário. Mal administrado porque
permitiu a formação de enormes excessos de demanda por produtos específicos,
gerando um desabastecimento com ágios, o que sempre ocorre quando se congela os
preços por um período longo, além disso, foi usado para fins eleitorais, o que
destruiu a credibilidade daquele governo”.
As novas estratégias de combate à inflação
perpetuaram-se no governo Sarney. Destacam-se os Planos Bresser (no primeiro
semestre de 1987) e Verão (início de 1989, que cria o cruzado novo com 3
dígitos a menos que a moeda anterior, o cruzado) que apenas insistiram em combater
a inflação. Criou-se, assim, o paradigma da década perdida, caracterizado pelo
fracasso dos planos de estabilização da economia, por meio do combate à inflação
e o esgotamento do modelo de desenvolvimento da década anterior, fundamentado
em inúmeras intervenções do Estado na economia.
Planos Collor e Real
A troca de governo, por eleições diretas,
trouxe mais um pacote de medidas de combate à inflação, o Plano Collor, que
entrou em vigor no dia 16 de março de 1990. Houve novamente a substituição da
moeda, cruzado novo por cruzeiro, e a economia sofreu um duro golpe, uma vez
que foi dado um calote monumental, justamente nos elementos mais empreendedores
da economia, como o sequestro da poupança, compromentendo mais ainda a credibilidade
das autoridades monetárias, conforme critica Moraes. “O Plano Collor congelou o
estoque de liquidez real da economia, repetindo integralmente o roteiro da
reforma monetária implementada na Bélgica no pós-guerra. A sua concepção foi
totalmente errada, pois se baseava na ilusão infantil de que os preços teriam
uma flexibilidade para baixo o suficiente, para que a economia se ajustasse sem
uma profunda recessão”.
Para Saes, todas essas medidas promoveram a
efervescência do debate econômico e, como ressalta Moraes, “permitiram que a sociedade brasileira
tivesse um aprendizado coletivo sobre os custos reais da inflação e a sua
perversidade social”.
A última experiência de medidas de contenção
da inflação foi o Plano Real, proposto em 94, e que, para Saes, trouxe
elementos que já haviam sido propostos nos anos 80. O Plano Real foi composto
de várias receitas, inclusive as presentes no meio acadêmico. Uma delas é a indexação
da moeda, na qual se prevê a coexistência de duas moedas, uma mais fraca – a
moeda usual em circulação e que tem problemas inflacionários –, e a indexada –
que tem uma âncora externa, sem elementos inerciais. Nesse modelo há uma
transposição gradual da moeda usual até que seja totalmente substituída pela
indexada. No Plano Real, o dólar era o lastro da URV (Unidade Real de Valor) em
1993, que mais tarde, em 1994, tornaria-se a nova moeda do Brasil, o real. Este
conjunto de medidas fez a inflação cair para perto de zero e se manter.
Há, no entanto, o consenso de que essa
transição não ocorreu sem um custo social: o violento crescimento de impostos,
entre outras medidas, como o aumento da taxa de juros, por exemplo, na busca de
obter-se uma fluidez na circulação não apenas de capital estrangeiro, mas de
produtos, aproveitando-se que o cenário internacional estava muito propício a
isso. Essa é uma questão importante, pois o sucesso do Plano Real dependeu da
disponibilidade de capital estrangeiro para, entre outras coisas, justificar a
necessidade de um câmbio tão valorizado (a paridade com o dólar).
Há outro consenso, também no que se refere ao
custo social, principalmente porque nos primeiros anos do Plano Real a
valorização da moeda nacional (1 por 1 em relação ao dólar) foi mantida. Como explica
Moraes “devido às sucessivas crises cambiais da década de 90, a âncora cambial
tornou-se muito recessiva para a economia, pois a taxa de juros tinha que ser colocada
muito para cima, com o objetivo de amortecer ou mitigar os choques
especulativos”. Foi assim até que se passou ao regime de metas de inflação com
o valor da moeda nacional um pouco mais baixo, o chamado câmbio flexível de
1999 a 2002. “A introdução do regime de metas de inflação no Brasil conseguiu
deslocar da taxa de juros para a taxa de câmbio variável de ajuste da economia
aos choques externos, tornando a adaptação da economia muito menos recessiva”, comenta
o professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
No
contexto atual, os riscos de voltarmos
ao cenário inflacionário não estão tão distantes assim, “pela primeira vez na
economia brasileira no pós-guerra, temos uma escassez genuína de mão de obra
não qualificada”, diz Moraes. Com o excesso de demanda por trabalhadores
qualificados, cresce o espaço para uma espiral salário-preço, resultando em
pressão inflacionária. Isto reflete a realidade brasileira do crescimento
acelerado sem a devida educação de base e técnica.
O panorama atual da economia brasileira é de pressão inflacionária alta. A realidade internacional, a alta do preço do petróleo, a falta de mão de obra qualificada e o volume de gastos do governo federal contribuem para o quadro observado. Em poucas palavras, sofremos com o risco da volta da inflação em nossa economia. Entretanto, pode-se ver luz no fim do túnel. As experiências anteriores conduziram para a combinação de uma política austera do governo, com uma equipe econômica altamente qualificada no Banco Central, que se espera que leve o país a superar o quadro inflacionário atual.
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