Na
tela do computador, a página de uma rede social com fotos de um jovem belo e
musculoso sentando em uma praia paradisíaca, uma garota escalando uma montanha
coberta de neve, um prato de comida esteticamente saboroso e uma selfie de um
casal apaixonado. Diante dessa tela está Scott, que olha para seu marmitex em
cima da mesa e para sua namorada sentada no sofá assistindo televisão. A rede
social lhe pergunta “no que você está pensando?” e Scott responde: “sushi com
minha garota hoje à noite!!! <3”. Imediatamente a postagem recebe uma
curtida. Scott parece ter descoberto algo.
Esse
é o início do curta-metragem What’s on
your mind? (No que você está
pensando?), publicado no Youtube
no começo de junho e que já conta com mais de 9 milhões de visualizações. No
filme, o personagem Scott passa a postar comentários sobre sua vida,
supervalorizando e fazendo uma “releitura” de acontecimentos que não foram
exatamente um sucesso. As postagens entusiasmadas sobre sua vida feliz vão
ganhando cada vez mais curtidas, enquanto que no “mundo real” as coisas estão
indo ladeira abaixo para Scott.
O
diretor do filme, Shaun Higton, conta que teve a ideia em um dia que estava
conferindo seu Facebook e, ao se sentir deprimido por ver uma atualização
incrível atrás da outra, pensou consigo mesmo: “ninguém pode ser tão feliz o
tempo todo”. E pela repercussão positiva do filme, não é apenas de Shaun a percepção
de que nas redes sociais as pessoas parecem ser mais felizes do que realmente
são.
Fora e dentro da
internet
As
redes sociais online são um fenômeno relativamente recente e vêm aumentando sua
abrangência ao longo dos últimos anos, tornando-se cada vez mais relevantes no
cotidiano das pessoas. Segundo relatório da Serasa Experian, o Facebook é a
rede social mais acessada no Brasil, com 67,96% de participação de visitas (em
relação a outras redes sociais, como Youtube e Twitter). De acordo com outra
pesquisa, da Social Bakers, somos o segundo país em número de usuários nessa
rede, 60,6 milhões, e o que mais compartilha conteúdo, sendo uma estimativa de
6,2 bilhões de postagens por mês – mais que o dobro do Egito, o segundo
colocado em compartilhamento.
Compartilhar
conteúdo, seja através de um texto que expresse seu sentimento ou de uma foto
da última viagem, é um dos meios de sociabilização nas redes sociais online,
onde também é possível se comunicar através de mensagens privadas. Assim como
no mundo do lado de fora da internet, escolhemos o que tornar público e o que
contar apenas para um amigo mais próximo. Compartilhar informações é uma das
formas de construção de laços pessoais e de identidade e essas informações não
são constituídas apenas de relatos e opiniões. A maneira como nos apresentamos
– nossa imagem – também transmite ideias sobre nossa identidade. Vestir roupas
sociais ou esportivas, ter um carro de luxo ou popular, viajar para o Guarujá
ou para Cancun: são opções que fazemos todo dia (de modo consciente ou não)
conforme nossos desejos e poder aquisitivo. Todas essas informações dizem quem
somos para os outros, com base nos ideais e referências que temos em comum.
Estamos sempre diante da aprovação ou reprovação do outro, que poderá se
identificar conosco e querer estabelecer vínculos afetivos ou profissionais.
Dessa
forma, compartilhar conteúdo na internet não é diferente do que já fazíamos
antes da chegada das redes sociais online (nossos círculos de familiares,
amigos e colegas de trabalho fora da internet também são redes sociais). No
entanto, o que mudou foi a dimensão do nosso poder de compartilhar informação.
Para Ana Carolina Coelho, professora e pesquisadora da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, “ainda estamos tateando e tentando
entender os limites e as formas de estar na internet”. Nela, conseguimos nos
comunicar com um maior número de pessoas, inclusive pessoas que não conhecemos,
e partilhamos do mesmo espaço que antes era restrito a artistas, políticos,
jornalistas – pessoas que tinham acesso aos meios de comunicação de massa
tradicionais, como a televisão e o jornal. Outro fator importante é que
passamos de apenas receptores de conteúdo para também produtores de conteúdo
nas mídias sociais.
Essas
novas possibilidades potencializam modos de ser e de pensar a nossa vida,
exacerbando tanto aspectos positivos quanto negativos. E a vontade de
demonstrar felicidade nas redes sociais o tempo todo, como mostrada no filme What’s
on your mind? parece ser um dos grandes dilemas atuais da sociedade. Ao
querer parecer mais felizes, podemos estar nos tornando infelizes.
Visibilidade e
reconhecimento
Quando
falamos em felicidade, devemos lembrar que ela não tem um significado único e
imutável. O que é ser feliz varia de acordo com a cultura e o
momento histórico. Em nossa sociedade, a concepção dominante de felicidade tem
uma estreita relação com o consumo: ser
feliz é poder comprar bens materiais e ter acesso a serviços. Em seu artigo
“Estou no melhor momento da minha vida: o imperativo da felicidade nas redes
sociais”, Ana Carolina escreve que “a felicidade, em geral, é mensurada por
signos visuais que denotem alto poder de consumo e conforto e não poder
ostentar tais mercadorias é interpretado como sinal de incompetência”. Ser
feliz é uma obrigação e “demonstrar tristeza chega a ser algo punível”.
Segundo
o sociólogo Jean Baudrillard, em seu livro A sociedade do consumo, a
felicidade em nossa sociedade deve ser visível e mensurável através de “objetos
e signos de conforto”. A felicidade “sem necessidade de provas”, invisível aos
nossos olhos e aos dos outros, não é válida dentro desse ideal de consumo. Ana
Carolina ainda acrescenta que vivemos em um momento que o filósofo Gilles
Lipovetsky chama de sociedade da performance, onde o indivíduo deve
edificar-se, distinguir-se e ampliar suas capacidades, onde somos “estimulados
a buscar o êxito e a superação”.
Essa
ideia de felicidade é difundida e reforçada nas novelas, filmes e seriados, no
jornalismo e, em especial, na publicidade. A publicidade explora nossos anseios
por felicidade para nos manter interessados em consumir. São feitos grandes
investimentos em estudos sobre comportamento e tendências de consumo para o
planejamento de campanhas de marketing. Giovanna Baccarin, jornalista e
empreendedora, explica que as empresas e marcas estão cada vez mais percebendo
que o discurso do marketing deve ser sobre quem compra e não sobre o que se
vende. Alguém não compra um carro para ser o homem bem-sucedido do comercial do
carro, mas para ser visto pelos outros como o homem bem-sucedido do comercial.
A visibilidade é uma parte fundamental nessa ideia de felicidade, pois o status
adquirido pelo consumo só é possível se houver o reconhecimento dos outros.
Segundo
a publicação Status stories da empresa trendwatching.com, especialista
em estudos de tendência de consumo, as marcas contam estórias sobre si mesmas a
fim de gerar visibilidade e reconhecimento para quem as compra, tornando-se um
símbolo de status. Mas apesar desses símbolos permanecerem atrelados à marca,
cada vez mais apenas isso não é suficiente. Agora, os consumidores precisam
contar aos outros essas estórias para adquirir status. Então, no lugar de
contar as suas estórias, as marcas passam a ajudar os consumidores a contá-las
uns aos outros. “Nesse sentido, a pessoa vira a própria propaganda do produto e
as mídias sociais trabalham muito com isso”, diz Giovanna.
De
um lado queremos ter reconhecimento e ostentar nossa felicidade, do outro, estratégias
de marketing produzem discursos – as estórias – que irão garantir o nosso
status perante os outros, e assim consumimos seus produtos. Dessa maneira,
vamos reproduzindo esse referencial de consumo, felicidade e visibilidade. De
acordo com Giovanna, “as marcas estão muito atentas ao que está acontecendo e o
que elas puderem usar em benefício próprio, elas vão usar. O marketing não
apenas cria, mas percebe tendências e as reforça”.
Incorporamos
a maneira do marketing de contar estórias e passamos a contar estórias sobre
nós mesmos, transformando-nos no produto a ser consumido. Nos sites de redes
sociais, isso acontece de maneira mais intensa, pois é mais fácil esconder o
que não contribui para uma imagem de sucesso e felicidade, ou maquiar a realidade.
Além disso, como dependemos do reconhecimento dos outros, as redes sociais,
como o Facebook, fornecem-nos uma ferramenta poderosa para ter certeza desse
reconhecimento: o botão curtir. “Não há como negar a emoção que você sente
quando posta algo e as pessoas curtem. Essa sensação de validação instantânea e
gratificação é viciante”, reconhece Shaun Higton em um artigo que faz reflexões
sobre o filme (Are you becoming a ‘human brand’ without even realising it?).
Shaun
também considera que o desejo de compartilhar momentos felizes não é um
problema em si. Mas o botão curtir é feito para medir o quão legal uma pessoa
é, e essa medida acaba ditando o nosso comportamento. Quanto mais um tipo de
postagem recebe curtidas, mais propensos estaremos a compartilhar o mesmo tipo
de conteúdo. E para o marketing, esse tipo de conteúdo é uma mina de ouro.
Compartilhar felicidade
O
Facebook é gratuito para seus usuários, porém é uma empresa que vale 150
bilhões de dólares. O seu modelo de negócio baseia-se em oferecer para
anunciantes um público extremamente segmentado, fazendo com que o anúncio
atinja o seu alvo. Para identificar esse público, o Facebook (e outras redes
sociais) utiliza a técnica da mineração de dados, que consiste em coletar
informações e cruzá-las para estabelecer padrões de comportamento e perfis de
consumo. E quem fornece essas informações somos nós mesmos, ao postarmos
conteúdos no site.
O
feed de notícias do Facebook é o
local onde vemos as postagens de nossos amigos e de páginas que seguimos. Mas
há um algoritmo que filtra quais postagens aparecem e quais ficam em destaque
no topo do feed. O Facebook revela
alguns parâmetros desse algoritmo, mas não todos. Isso não impede que muitos
usuários realizem testes para tentar desvendar o seu funcionamento. Existem até
guias, como esse publicado no blog Personal Nerd do Estadão, que ensinam
a se tornar popular no Facebook, o que significa ter visibilidade no feed de notícias e assim receber mais
curtidas e comentários.
Além
da mineração de dados, o Facebook também realiza pesquisas para aprimorar seu
algoritmo e desenvolver funcionalidades que nos incentive a compartilhar mais
conteúdo: “alguns tipos de publicação são privilegiadas porque dizem algo sobre
o seu padrão de consumo. Qualquer mudança que o Facebook faça é para melhorar a
coleta desse tipo de informação”, explica Giovanna Baccarin. Para Fernanda
Bruno, professora e pesquisadora da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, o que importa é “manter o fluxo da produção e
circulação de informações sobre nossos modos de vida, nossos humores, desejos,
que formam a mina de que se alimentam essas corporações. Se a felicidade
aumenta o compartilhamento, então, que se promova a felicidade”.
Dessa
forma, o algoritmo do Facebook funciona como um mecanismo de controle, gerindo
a nossa felicidade sem sequer passar pelo nosso conhecimento. Mesmo que de
maneira inconsciente, acabamos compartilhando conteúdos que irão receber mais
curtidas e comentários. “O controle algorítmico da felicidade importa pelos
seus resultados: mais e mais compartilhamentos, mais e mais dados, mais e mais
perfis. Seria, para usar uma expressão do futebol, uma felicidade de
resultados”.
A armadilha da
felicidade
Podemos
estar pagando um preço bem alto pela satisfação momentânea de receber uma
curtida ou um comentário. O reconhecimento do outro é importante porque é a
partir das nossas relações sociais que constituímos nossa identidade, que
afirmamos nossa existência no mundo. Entretanto, segundo a psicóloga Erica
Berto, nas redes sociais tornou-se mais fácil criar um “falso self”, um personagem de nós mesmos, e é
ele que está recebendo a aprovação dos outros: “como é uma relação a partir de
um falso self, acaba sendo uma
relação superficial, que num primeiro momento pode satisfazer o ego, mas que
não satisfaz as demandas de um relacionamento humano mais completo”.
A
necessidade de nos sentirmos integrados e amados faz com que permaneçamos nesse
ciclo e vamos negando as nossas dores, perdas e atropelando processos que
ocorrem de maneira mais lenta. Como é um movimento em massa, temos a impressão
de que todo mundo está feliz o tempo todo e isso acaba causando impactos na
subjetividade, podendo despertar sentimentos como a inveja e problemas de
autoestima. Em casos extremos, a repressão e a não elaboração de sentimentos
pode resultar em patologias, como depressão e síndrome do pânico.
Os
impactos na subjetividade vão depender da estrutura psicológica e da capacidade
de reflexão de cada um: “os adolescentes têm mais necessidade de seguir um
grupo, estão mais sujeitos a cair nessa armadilha se não houver uma reflexão. E
essa reflexão não está sendo promovida pela nossa sociedade”, acrescenta Erica.
Precisamos estar atentos para não transformar a busca pela felicidade em um
caminho para a infelicidade.
E a felicidade, como
fica?
No
final de What’s on your mind?, Scott está deprimido e decide esconder
todas as suas postagens. O diretor do filme prefere não dar muitas explicações
e diz que há várias maneiras de se interpretar essa atitude, mas que uma delas
é que, ao esconder suas postagens, Scott decide ser honesto consigo mesmo e “a
consequência é que seu alter ego digital deve morrer junto com sua popularidade”.
A
internet e suas redes sociais, assim como a vida fora delas, são ambientes que
nos oferecem muitos potenciais positivos. Enquanto sites como o Facebook
reforçam padrões que nos tiram a autonomia e limitam as possibilidades de vida,
existem outras comunidades que contribuem para o encontro de pessoas e o
compartilhamento de ideias que expandem essas possibilidades. Para Fernanda
Bruno, a tarefa é imaginar meios de sabotagem coletiva do controle que sites
como o Facebook exercem sobre a nossa felicidade, da mesma forma que já
aprendemos a “driblar, enganar e contestar nossos pastores, pais, educadores, médicos e toda sorte de
pretensos diretores de consciência”.
Dentro e fora da internet, o caminho para a
felicidade talvez esteja também em deixar um pouco de buscar o olhar dos outros
e voltar nossos olhos para nós mesmos para descobrir o que nos deixa felizes,
mesmo quando não tem ninguém por perto para ver ou curtir.
|