Uma vereda de água gelada e cristalina, cercada de imponentes buritis. Um cheiro característico, que só quem já caminhou por um Cerrado fechado pode reconhecer. Um fruto avermelhado aberto de chichá, com suas sementes pretas perfeitamente alinhadas, como se fossem contas de um colar. Uma moita repleta de gabiroba, fruta amarelada, deliciosa. Esses são exemplos do que uma visita ao Cerrado pode propiciar, bioma com características marcantes e ainda pouco conhecidas de muitos brasileiros, embora seja um dos mais ricos em biodiversidade do mundo, patrimônio genético sem preço, região de nascentes das grandes bacias brasileiras e com inúmeras espécies nativas com potencial ornamental, interesse farmacêutico e frutas comestíveis.
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Flor e fruto de pequi (Caryocar brasiliense), espécie nativa de uso alimentício e medicinal. Foto: Linda Caldas |
Nem bem completou 50 anos que o bioma começou a ser ocupado de forma mais agressiva, por meio da expansão da fronteira agrícola, e o Cerrado vem sendo devastado a olhos vistos. No entanto, monitorar a destruição dos dois milhões de quilômetros quadrados desse que é o segundo maior bioma brasileiro é um desafio. Responder a perguntas simples sobre a área que se mantém preservada e as taxas de desmatamento ao longo dos anos ou mesmo anual, não é fácil, dado o alto nível de incertezas.
Ao contrário da Amazônia, que conta com sistema oficial de monitoramento do desmatamento há muito tempo, cada vez mais sofisticado, o Cerrado não tem ainda vigilância parecida. “Estamos criando agora um sistema para monitorar os demais biomas do Brasil, aplicando metodologia semelhante ao que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) faz na Amazônia. Já no ano de 2009, teremos um novo produto atualizado, e o Cerrado será prioridade. A idéia é fazer monitoramentos anuais”, diz Bráulio Ferreira de Souza Dias, diretor do Departamento de Conservação da Biodiversidade, do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
O dado oficial mais recente de mapeamento da vegetação natural remanescente do Cerrado foi publicado em 2007, uma iniciativa do MMA, por meio do Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira (Probio). As análises de imagens do satélite Landsat, todas de 2002, indicaram que, aproximadamente, 39,5% da área do bioma já tinha sido convertida em diferentes formas de uso. As pastagens cultivadas e a agricultura ocupavam, em 2002, 26,5% e 10% do Cerrado, respectivamente. Nos estados do Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo e no sul de Minas Gerais, o Cerrado praticamente desapareceu. “Nessas áreas, a vegetação remanescente está abaixo do mínimo exigido pelo Código Florestal”, afirma Dias. Os remanescentes são o centro e norte de Minas Gerais, oeste da Bahia, Piauí, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso. O diretor do MMA conta que a região montanhosa do nordeste do Goiás está razoavelmente bem preservada, assim como a região alagada do Araguaia, embora projetos de irrigação de arroz já tenham alterado a vegetação.
Usar a área dos limites oficiais dos biomas estabelecidos pelo IBGE em 2004 foi a primeira sistematização do estudo. “Antes, existia o bioma de cada especialista, o que dificultava as comparações”, acredita Dias. O IBGE usa o critério de contiguidade, considerando as manchas de Cerrado dentro da Amazônia, por exemplo, como disjunções do bioma Amazônia e não como pertencente ao bioma Cerrado. O mesmo vale para o Cerrado das chapadas Diamantina e Araripe, que fazem parte do bioma Caatinga. Além dos demais ajustes metodológicos de escalas e resoluções, a equipe optou também por separar pastagem plantada da nativa. Segundo Bráulio Dias, em alguns mapeamentos prévios todas as pastagens foram colocadas na categoria de vegetação degradada. Mas é importante destacar que o objetivo do mapeamento não foi avaliar o status de conservação da vegetação remanescente, e sim mapear áreas potenciais para ações de conservação, recuperação e promoção do uso sustentável.
Quando esses dados foram publicados, houve muita discussão na imprensa e na literatura. “Muita ONG reclamou, alegando que não temos os 61% de vegetação remanescente no Cerrado, que estamos trabalhando contra a agenda ambiental e que colocamos o problema como menor do que ele realmente é”, diz Bráulio Dias. De fato, os dados são diferentes das “Estimativas de perda da área do Cerrado brasileiro”, publicada em 2004 pela Conservação Internacional – referência largamente citada por pesquisadores, mídia e ONGs –, na qual os autores calcularam que a área já desmatada para o bioma até o ano de 2002 era de cerca de 55% da área original. Na ocasião, o lema foi “o Cerrado pode sumir até 2030”, muito embora os próprios pesquisadores tenham destacado no texto que “considerando a resolução das imagens utilizadas (1 km x 1 km) e a falta de verificação em campo, os resultados apresentados devem ser encarados com ressalva”. As estimativas da WWF são ainda mais pessimistas, destacando que somente 19,15% da área atual do Cerrado corresponde a áreas nas quais a vegetação original ainda está em bom estado.
As taxas de desmatamento são também controversas. No documento de 2004 da Conservação Internacional, a estimativa era de que 1,5% do Cerrado estava sendo desmatado por ano, dado vastamente utilizado. Uma avaliação mais recente do Sistema Integrado de Alerta de Desmatamentos para o bioma Cerrado (Siad Cerrado), uma parceria entre a Universidade Federal de Goiás (UFG), a própria Conservação Internacional e a The Nature Conservancy, mostram que os desmatamentos continuam. “Para o período entre outubro de 2003 e outubro de 2007, detectamos em torno de 18.980 km2 de possíveis novos desmatamentos”, afirma Laerte Guimarães Ferreira, do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da UFG. Esse valor equivaleria a uma média de 0,25% de desmatamento por ano. “Com a expansão do álcool, quando os países se recuperarem desta crise financeira e voltar a ter uma demanda maior por soja e alimentos, certamente vai aumentar a pressão”, pondera Bráulio Dias.
Antes da iniciativa MMA/Probio, o RadamBrasil, realizado na década de 1970, havia sido o único mapeamento completo da cobertura vegetal feito em detalhe para o Brasil. Eram sobrevôos que geravam imagens de radar por avião. Desde então, iniciativas estaduais de mapeamento e monitoramento da vegetação nativa do Cerrado, por meio de imagens de satélites, têm sido efetivas para São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, que tem um programa financiado pelo Banco Mundial. No estado de São Paulo, por exemplo, um acompanhamento da devastação ao longo dos anos mostra que a cana-de-açúcar fez o Cerrado paulista sumir, restando atualmente meros 2% da vegetação original, segundo dados do Instituto Florestal de São Paulo.
O que resta do Cerrado paulista. Fonte: Instituto Florestal de São Paulo.
Todos os dados gerados nos estados têm sido de grande valor para acompanhar o desmatamento, mas não fornecem o quadro geral. “Como cada estado usa uma metodologia diferente, não é possível juntar os dados, porque cada um utiliza, por exemplo, categorias de uso de terra diferentes”, explica Dias.
Dificuldades e avanços
A dificuldade aumenta quando a análise do desmatamento é feita para os 2 milhões de km2 do bioma. As dificuldades e desafios são muitos. Além da vasta extensão, “o Cerrado é marcado por uma conspícua sazonalidade e um complexo mosaico vegetacional”, explica Laerte Ferreira, referindo-se às alterações naturais, ao longo do ano, características da vegetação. O desafio é conciliar um sistema de monitoramento o mais automatizado possível, capaz de rastrear a extensa área em uma frequência desejada (monitoramentos anuais, semestrais, mensais), com uma série de fatores. “Por exemplo, uma mudança no padrão, época ou intensidade da chuva, de um ano para outro, faz com que áreas naturais, principalmente referentes às fisionomias campo limpos, campo sujo e Cerrado stricto sensu sejam facilmente confundidas com áreas já desmatadas, o que gera os chamados erros de comissão ou falsos alertas de desmatamentos”, diz o geólogo, que é também do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais (IESA).
Além das dificuldades inerentes ao próprio bioma, as controvérsias surgem em função não só da escala espacial, mas também dos métodos de pesquisa. Wendy Jepson, da Universidade do Texas A&M, nos Estados Unidos, publicou um trabalho, em 2005, no periódico científico The Geographical Journal (Vol. 171, pág. 99-111), comparando as diferentes estimativas que haviam sido publicadas até o momento sobre a devastação do bioma, com a pergunta “o Cerrado está desaparecendo?”. A conclusão foi que são ainda necessários métodos transparentes de monitoramento por meio de análises de alta resolução, acompanhamento ao longo do tempo e classificações homogêneas de uso da terra.
Ciente de todas as dificuldades, muitos avanços têm sido obtidos recentemente nas metodologias e protocolos para detecção de desmatamentos no Cerrado. O Siad Cerrado desenvolveu uma metodologia que usa imagens com resolução espacial de 250 metros, obtidas pelo sensor Modis, que está a bordo do satélite Terra, principal satélite da Nasa para observação terrestre. Os pesquisadores detectam mudanças na biomassa fotossinteticamente ativa, em determinados períodos de tempo, o que pode ser um sinal de que a área foi desmatada. “Todas essas variações são inspecionadas visualmente, com vistas a se minimizar os falsos alertas de desmatamentos”, explica Laerte Ferreira. “Ainda que toda esta metodologia já esteja razoavelmente amadurecida, continuamos o seu aperfeiçoamento, o que deve incluir, em futuro próximo, o uso de imagens com maior resolução espacial (por exemplo, imagens do satélite sino-brasileiro CBERS) e uma abordagem heurística e probabilística para facilitar a validação dos polígonos de mudanças identificados”.
Espiral da falta de conhecimento
“No mundo da conservação, a prioridade sempre foi floresta”, avalia Bráulio Dias. “Em última análise, é cultural, pois no mundo inteiro, as vegetações abertas, como savanas e campos, chamam menos atenção. O Pampa e a Caatinga também foram muito relegados e o Pantanal recebeu mais atenção por conta da fauna”. Aliado à questão cultural de baixa apreciação das savanas, o Cerrado foi a área estrategicamente escolhida pelo governo federal para a produção agrícola. “Nesta mentalidade ‘PIBiana', a transformação do Cerrado em um grande celeiro de commodities agrícolas era (e ainda é...) a prioridade”, diz Ferreira.
Segundo o especialista da UFG, entramos em um círculo vicioso, no qual uma das espirais e consequências é a falta de conhecimento, nas suas várias dimensões. “Assim, só mais recentemente, com o avanço das pesquisas, temos conseguido entender melhor o real valor e papel desse importante e imprescindível bioma”, conclui. Em 2007, foi criada a rede de pesquisas ComCerrado, uma iniciativa conjunta do Ministério da Ciência e Tecnologia (Coordenação de Ecossistemas Seped), do MMA (Núcleo Cerrado e Pantanal – SBF), instituições de ensino e pesquisa e ONGs, que pretende entender o funcionamento do Cerrado em suas várias “esferas” (humana, biodiversidade, paisagens etc), subsidiando, assim, uma melhor governança territorial e ambiental. Outras iniciativas também têm colaborado para a preservação desse bioma (leia reportagem nesta edição), somadas a uma participação crescente do setor privado. Além disso, o “Plano diretor da Embrapa Cerrados” para o período de 2008 a 2011 contempla, em seus cinco objetivos estratégicos, a busca por maior eficiência nos sistemas de produção do bioma, e também desafios voltados para a sustentabilidade dos ecossistemas. O decreto presidencial “Programa nacional de conservação e uso sustentável do Cerrado”, lançado há dois anos, mas ainda em fase incipiente de negociação, prevê recursos para ações de conservação desse bioma, embora com cifras em patamares muito inferiores às da Amazônia.
A destruição do Cerrado ocorre em larga escala. Há uns anos, para que uma viagem nas proximidades de Brasília pela rodovia BR-040 passasse rapidamente, bastava contar o número de ipês amarelos na beira da estrada. Hoje, falta pouco para que as lavouras alcancem o próprio asfalto. Porém, tão importante quanto o alerta de que o Cerrado está desaparecendo, é gerar números confiáveis de quanto efetivamente resta da vegetação natural, além de entender e avaliar sua notável capacidade de recuperação.
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