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Reportagem
Trajetória legal do Marco Civil
Por Simone Caixeta de Andrade
10/05/2014
Desde as primeiras conexões comerciais à internet, na década de 1990, o Brasil tem experimentado uma grande expansão no acesso à rede. A evolução dos meios de comunicação, “virtualizou” relações pessoais e comerciais. Somos cada vez mais dependentes dos computadores para cada mínimo aspecto das nossas vidas. Supermercado, banco, ensino e lazer ... Cada vez mais conectados, porém, cada vez mais vulneráveis. A evolução dos meios de comunicação exige um novo tipo de relacionamento com questões como liberdade e privacidade. Justamente esses dois pontos, além da neutralidade, formam os pilares do Marco Civil da internet. A lei foi sancionada em 23 de abril, durante a abertura do Encontro Global Multissetorial sobre o Futuro da Governança da Internet - NET Mundial, em São Paulo. Esta lei “estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”.

Os primeiros passos

“A internet é o tecido das nossas vidas”, afirma Manuel Castells em A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. “A influência das redes acessadas na internet vai além do número de seus usuários: diz respeito também à qualidade do uso. Atividades econômicas, sociais, políticas e culturais essenciais por todo o planeta estão sendo estruturadas pela internet e em torno dela, como por outras redes de computadores. De fato, ser excluído dessas redes é sofrer uma das formas mais danosas de exclusão em nossa economia e em nossa cultura”, diz Castells.

No Brasil, a evolução das atividades em torno da internet começou em 1994 e, um ano depois, foi criada a Norma 004-1995, que definia a internet como “nome genérico que designa o conjunto de redes, os meios de transmissão e comutação, roteadores, equipamentos e protocolos necessários à comunicação entre computadores, bem como o ‘software’ e os dados contidos nestes computadores”. Essa norma resultou na definição das características dos serviços de internet no país. Naquele mesmo ano, o Comitê Gestor da Internet (CGI) foi criado para a governança da rede no Brasil. O comitê é composto por representantes do governo federal, do setor empresarial, do terceiro setor, da comunidade científica e tecnológica, além de um pesquisador de notório saber em assuntos de internet.

Concomitantemente ao crescimento do número de internautas e das inovações tecnológicas que permitiram um acesso mais rápido, houve um aumento e diversificação das práticas ilegais e criminosas no meio digital, merecedoras de estudo para tipificação penal. Em fevereiro de 1999, o deputado Luiz Piauhylino, do PSDB de Pernambuco, apresentou o Projeto de Lei 84/99, cujo texto, sob a relatoria do senador Eduardo Azeredo (PSDB), tipificava os crimes digitais e previa, por exemplo, que os dados dos usuários deveriam ser guardados por três anos para investigação criminal. Em um de seus pontos polêmicos, o projeto previa “detenção de um a dois anos e multa” àqueles que utilizassem de forma não autorizada senhas de computadores.

A sociedade reagiu negativamente ao projeto, que ficou conhecido como “AI-5 digital”. A positiva consequência foi o debate sobre a necessidade do estabelecimento, no âmbito legal, de garantias de direitos dos usuários, como privacidade e liberdade de expressão, em oposição clara às propostas do PL 84/99, que previa censura, detenção e um sistema de vigilância na rede em nome de uma suposta segurança.

Construção coletiva

Durante mais de uma década de conturbada tramitação do PL84/99, outras propostas foram surgindo para complementá-lo ou substituí-lo. Em 2006, uma reportagem da ComCiência sobre segurança digital já apontava os primeiros passos do que seria futuramente chamado de Marco Civil da internet. “Embora os países desenvolvidos – com acesso à informática garantido há décadas para uma parcela considerável de sua população – já tenham legislação específica sobre o assunto, é relativamente recente a tentativa de padronização de procedimentos e a proposta de ação colaborativa entre as nações nos casos de crimes cibernéticos”, destaca a reportagem.

No ano seguinte, o advogado Ronaldo Lemos, que, na época, lecionava na Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), publica o artigo “Internet brasileira precisa de marco regulatório civil”, no qual defendia que, “o caminho natural de regulamentação da rede, seguido por todos os países desenvolvidos é, primeiramente, estabelecer um marco regulatório civil, que defina claramente as regras e responsabilidades com relação a usuários, empresas e demais instituições acessando a rede, para, a partir daí, definir regras criminais”.

Em 2009, quando o PL84/99 estava pronto para ser votado em plenário, ativistas da internet iniciaram uma ampla campanha publicitária contra a aprovação, convocando reuniões e abrindo o debate na rede. A tramitação do projeto foi paralisada. Em outubro daquele ano, a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com a FGV-Rio, lança o projeto para a construção colaborativa de um Marco Civil da internet no Brasil. Lemos ficou responsável por montar uma plataforma digital, hospedada em www.culturadigital.br , para que a lei fosse escrita de forma colaborativa por todos os atores interessados no tema. Assim, na primeira fase, em 2009, as discussões foram divididas em temas. A partir do esboço da lei, iniciava-se a segunda fase, em 2010, do debate, na qual cada artigo, parágrafo e inciso poderia ser comentado.

Esse debate virtual permitiu a expressão pública dos atores e grupos sociais envolvidos na formulação da regulamentação da internet. Isso envolveu o conjunto de usuários de internet no Brasil; o governo federal – representado pelos Ministérios da Justiça, da Ciência, Tecnologia e Inovação e das Comunicações –, a academia, representada pela FGV-Rio; entidades e movimentos civis como Grupo Marco Civil Já e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; e o setor privado, representado pelas empresas que participam de toda a cadeia de serviços da internet – provedores de acesso e provedores de serviços de telecomunicação e a indústria do copyright (detentores de produção de conteúdo para entretenimento, como estúdios de cinema, produtoras e redes de televisão, gravadoras de música, entre outros). O texto final resultante desse debate foi apresentado na forma de Projeto de Lei 2126/2011 à Câmara dos Deputados.

Grupos contrários

Há três grupos declaradamente contrários ao Marco Civil da internet tal como foi aprovado. O primeiro deles é composto pelas empresas de telecomunicações, as chamadas telecoms ou teles. Elas queriam derrubar o conceito de neutralidade da internet, que garante igualdade a todos, para poder filtrar a rede, controlar o tráfego, e moldar a navegação dos usuários. Rodrigo Moreno Marques, doutor em ciência da informação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e docente da Universidade da Fundação Mineira de Educação e Cultura, enfatiza que “a liberdade de ação que tem sido concedida aos provedores de conexão e provedores de aplicações também é uma forma de governança, onde há poucos e frágeis mecanismos de regulação e controle das ações das empresas que atuam na internet. Esse é um tipo de governança liberal e permissiva que acaba atendendo somente aos interesses econômicos de grandes grupos empresariais que não têm compromisso com o uso social e emancipatório da web. O maior compromisso das decisões dos conselhos de acionistas dessas corporações é com o retorno financeiro de investimentos. E a história nos mostra, por meio de diferentes exemplos, que esse tipo de situação induz o surgimento de monopólios e oligopólios que são nefastos para a sociedade”.

O segundo grupo contrário é a indústria do copyright, principalmente as associações de cinema e música, que querem impedir as liberdades que estão garantidas no Marco Civil. Esse grupo se acha no direito de mandar retirar conteúdos de sites e portais sem a necessidade de apresentar uma ordem judicial, alegando suposta violação do direito do autor. Além dele, também são contrários ao Marco Civil setores ligados à segurança e inteligência, que pressionaram pela inclusão de mecanismos de vigilância em massa.

Por força da ação de todos esses agentes, a votação do projeto de lei foi adiada seis vezes na Câmara dos Deputados, em 2012. Jorge Alberto Silva Machado, docente do Programa de Pós-Graduação em Participação Política e Mudança Social da Universidade de São Paulo (USP), acredita que a pressão deles “conseguiu reduzir muito o alcance do texto do Marco Civil sobre as remoções sumárias de conteúdos por supostas violações de direito autoral. Houve também o lobby de organizações da sociedade civil, que pressionaram deputados e lutaram até o aprovação de um texto mais próximo do original resultante da consulta pública. Em suma, houve participação da sociedade civil, sim, mas infelizmente quando um texto de projeto de lei entra na Câmara, a lógica passa a ser outra”.

Efeito Snowden

Em setembro de 2013, um novo – e fundamental – interesse se associou à condução da regulamentação da internet: o escândalo de espionagem revelado pelo ex-funcionário da agência americana de inteligência, CIA (Central Intelligence Agency), Edward Snowden. O fato de que as agências de inteligência interceptaram mensagens e dados inclusive da presidente Dilma Rousseff e da Petrobras teve como consequência a imposição de regime de urgência na tramitação do Projeto de Lei do Marco Civil da internet na Câmara dos Deputados, trancando inclusive, a partir de outubro, a votação de qualquer outro projeto na casa legislativa.

Desde a denúncia de espionagem, o Brasil assumiu uma posição eminente na discussão sobre privacidade dos usuários e, consequentemente, sobre governança da internet no mundo. “Diante disso, era importante que o Brasil detivesse algo próprio para acrescentar e para demonstrar na discussão, e o Marco Civil, que se encontrava emperrado na Câmara, era um projeto avançado nesse sentido. Não se pode menosprezar a importância da sociedade civil organizada para a aprovação, mas acredito que o caso Snowden certamente tenha aberto uma janela de oportunidade para recolocar o tema em pauta e garantir sua aprovação rápida”, conclui Rafael Sampaio, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Democracia Digital, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Pontos críticos

A redação final do Projeto de Lei 2.126/2011, assinada pelo relator, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), foi enviada ao Senado Federal no dia 25 de março deste ano. Transcorrido menos de um mês, o texto foi sancionado pela presidente Dilma. A celeridade na tramitação no Senado não pode ser entendida como um contraponto a um possível aprimoramento do texto, que está em discussão desde 2009. “Contextualmente, aprová-lo no Senado sem modificações foi o melhor caminho na minha opinião. Um retorno à Câmara poderia ser mais maléfico do que benéfico para o texto final”, observa Sampaio.

Dentre as transformações ocorridas entre o projeto de lei original e a lei sancionada, o artigo 15 tornou-se o grande ponto crítico de diversos apoiadores do projeto, uma vez que ele determina que “o provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento”.

“Isso significa que tudo que você faz quando está logado em qualquer serviço online deverá ser registrado e armazenado para estar à disposição das autoridades”, esclarece Machado. Ele ainda acredita que “há que se tentar, via lei sobre privacidade de dados pessoais, sanar esse problema do Marco Civil, mas isso pode demorar alguns anos. Assim, se alguém quiser ficar livre da vigilância em massa do Estado, deve usar criptografia ou usar serviços no exterior”. Machado ainda acredita que “há esperança de corrigir a brecha aberta pelo artigo 15; ela está no decreto que regulamentará o Marco Civil e no Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais, cujo texto ainda é mantido em sigilo pelo governo”.

Sampaio descarta modificações no artigo 15. “Acho difícil que seja modificado nos próximos anos. Há quem diga também que o Marco Civil da internet abre brechas para a quebra da neutralidade da rede, mas eu não acho que seja questão de modificar a forma como a lei está escrita, e simplesmente em regular as empresas e garantir que a neutralidade seja mantida. Assim, imagino que seria interessante verificarmos sua aplicação e averiguar se estão ocorrendo problemas ou distorções e, se for este o caso, iniciarmos a pressão para as mudanças”.

 

Fora da lei

Marques esclarece que, apesar do lobby da indústria cultural (de copyright) pela inclusão do direito autoral no texto do projeto, o Marco Civil da internet não foi concebido para abordar o direito autoral. “Nem deve entrar nessa questão, pois já existe uma proposta de reforma da Lei 9.610 de 1998 (lei de direitos autorais). Tentaram acrescentar um parágrafo na lei (do Marco Civil) que, se acatado, abriria precedentes para eliminar a necessidade de ordem judicial para remoção de conteúdo da web nos casos de materiais que supostamente ferissem o direito autoral e seus direitos conexos. Nota-se que, se acatada essa sugestão, a liberdade de expressão na internet ficaria cerceada em benefício de interesses privados que podem carecer de autenticidade e legitimidade”, acrescenta.

“O Marco Civil da internet não foi concebido como marco jurídico dos crimes digitais”, pontua Marques. Os crimes digitais foram objeto da Lei 12.735 (que tipifica condutas realizadas mediante uso de sistema eletrônico, digital ou similares, que sejam praticadas contra sistemas informatizados e similares) e da Lei 12.737 (tipificação criminal de delitos informáticos), ambas sancionadas em 30 de novembro de 2012.

Princípios do Marco Civil

Entre os principais pontos da lei sancionada estão a garantia do direito à privacidade dos usuários, especialmente à inviolabilidade e ao sigilo de suas comunicações pela internet; e a chamada neutralidade de rede, regra que determina tratamento igual para todos os conteúdos. Segundo o princípio da neutralidade da rede, “o fluxo de informação deveria ser como a rede de energia elétrica: não cabe às empresas definirem o uso que o usuário faz da energia”, exemplifica Machado. Além da questão da neutralidade da rede, o Marco Civil da internet aborda também o problema da coleta massiva de informações dos internautas por parte dos provedores. Segundo a lei, somente os provedores de aplicações podem armazenar nossos dados pessoais de navegação. O artigo 14º diz que “na provisão de conexão, onerosa ou gratuita, é vedado guardar os registros de acesso a aplicações de internet”. “A lei busca, portanto, evitar a concentração de um poder praticamente ilimitado nas empresas de telecomunicações (provedores de conexão)”, explica Marques.

O mais importante, segundo ele, é que “o Marco Civil da internet não tem o objetivo de regular todos esses temas (propositalmente, estão de fora, por exemplo, os direitos autorais, os direitos de cópias e os crimes eletrônicos)”. O texto sancionado, com toda a sua trajetória, “é um caso ímpar de participação cidadã na construção legislativa no Brasil”, enfatiza Sampaio.