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Artigo
O universo Made in China®
Por Rosana Pinheiro-Machado
10/06/2008

“Na natureza nada se cria, tudo se copia”. No mercado também. Atualmente, na China, a produção das chamadas cópias, imitações, réplicas e falsificações é um fenômeno social que produz efeitos em todo o mundo e se impôs de forma incontrolável devido aos mecanismos através dos quais ele se expande e reinventa a si próprio.

Made in China, hoje, é “marca registrada” de produto barato e de pouca qualidade. Na realidade, as cópias e demais produtos tipo “bugigangas” têm sido a âncora do crescimento econômico chinês, uma vez que o mesmo está alicerçado na proliferação da pequena e média indústria, especialmente em zonas e cidades especiais de produção e exportação no sul do país (Zona Industrial do Delta do Rio da Pérola, em Guangdong). Ao passo que existem inúmeras esferas governamentais e empresariais que procuram combater tal faceta comercial, a realidade é que essa força encontra forte eco nas sociedades em que se manifesta, principalmente em países em desenvolvimento. Nesse sentido, as imitações desempenham um papel social decisivo, tanto no que diz respeito ao sistema de produção e distribuição de bens (na geração vasta e rápida de renda e empregos formais e informais), quanto no consumo dos mesmos.

A partir de pesquisas etnográficas realizadas no sul da China e no sul do Brasil sobre o consumo desses produtos, percebe-se claramente que o mercado de cópias – também conhecido como pirataria – preenche lacunas abertas em diversas esferas sociais. Em primeiro lugar, dentro desse amplo e heterogêneo mercado de bens made in China, é preciso distinguir os seus diversos ramos, os quais atingem públicos diferentes e possuem distintas implicações sociais, morais, políticas e legais da China ao Brasil.

Embora o consumo de pirataria seja, comumente, associado ao fator baixa renda, uma vez que se supõe que indivíduos procuram por “substitutos” por não terem dinheiro para comprar os produtos originais, a pesquisa realizada em centros de comercialização desses produtos no camelódromo de Porto Alegre e nos shopping centers de Shenzhen, aponta que nem sempre a fórmula “classes populares consomem bens falsificados e classes médias e altas consomem bens originais” é verdadeira. O poder aquisitivo é uma variável de suma importância, mas não é a única na escolha entre cópias e bens autênticos. Nesse sentido, seria interessante classificar, lato sensu, duas grandes categorias de consumidores: os que são “enganados” e os que “enganam”.

No primeiro caso, o baixo preço das falsificações é a mola propulsora do consumo. Os grupos mais atingidos desse mercado são os de baixa renda. Na maioria das situações, eles são os consumidores e as vítimas dos mesmos. Aqui, estamos tratando de um ramo de falsificações considerado o mais ilícito numa escala moral e legal: remédios e alimentos. O consumidor vai a uma feira e compra ovos. Ele escolhe os mais baratos em locais de venda mais populares. O que teria de errado em um ovo? Nada, até o momento em que vai ao hospital de Guangzhou (capital de Guangdong) com problemas gástricos crônicos e descobre que o inocente ovo era falsificado, feito com produtos químicos como parafina. O mesmo ocorre para os compradores de chá, refrigerante e remédios mais variados. Este quadro aponta o nível e a sofisticação do mercado de falsificações na China atualmente, fato este que não é velado, sendo tratado diariamente nas principais agências de notícias do país como um grave problema social a ser resolvido. Produtos corriqueiros do cotidiano são copiados cada vez mais e oferecem risco à saúde de qualquer cidadão que mora na China (e fora dela, quando exportados), especialmente àqueles que se abastecem em locais mais distantes e baratos, onde a fiscalização é menos rigorosa.

Quando pensamos em cópias, no entanto, nos vem à mente produtos, pertencentes ao mercado de réplicas de marcas de luxo. Nesse ramo, o público em geral não é composto por camadas populares, mas principalmente pelas classes médias. No Brasil, esses produtos chineses são encontrados, em geral, nos centros urbanos de comércio popular. Eles vêm de importação direta da China ou via Paraguai. Apesar de serem falsificadas, tais réplicas (assim chamadas pelos comerciantes e consumidores) possuem um custo bastante elevado – até 300 reais –, mas ainda se constituem em alternativas ao produto original, pois custam em torno de 10% do valor disponível nas lojas. No Brasil, as bolsas da marca parisiense Louis Vuitton são os produtos mais cobiçados nesse ramo de luxo. No momento em que pessoas das camadas médias adquirem tais cópias, existe um jogo social para que essa bolsa se passe por legítima. Trata-se de um consumo inconfesso. Nos casos estudados, os consumidores esforçam-se para dizer que a bolsa foi comprada em alguma viagem, um presente ganho ou adquirido através de um grande esforço de poupança. O público observador acredita na medida em que o convencimento é eficiente. Por outro lado, o desalentador e cruel sistema classificatório discriminador da sociedade brasileira, pouco conferirá legitimidade a uma Louis Vuitton usada por indivíduos de camadas populares. É por isso que o mercado de réplicas no Brasil vai ter apelo principalmente entre pessoas da classe média, os quais sentem que, através do uso da marca, conseguem burlar momentaneamente sua condição social numa direção ascendente.

Na China, consumir produtos de luxo é, sem dúvida, uma febre nacional, símbolo máximo do rompimento da ética e estética sombria e revolucionária maoísta. O uso de marcas representa claramente uma nova era: um tempo de prosperar – como já dizia Deng Xiao-ping, sucessor de Mao-Tse Tung e reformador da China pós Revolução Cultural. Com a febre da produção de cópias, nos anos 80, e a produção de excedente a partir dos anos 90 fez surgir um período em que a própria sociedade chinesa passou a descobrir os deleites do consumo e a tornar-se rapidamente um dos maiores mercados consumidores do mundo. Em cidades como Shenzhen, fronteira com Hong Kong, o uso de falsificações possui uma manifestação soberana. As réplicas abrangem todos os produtos de marca imagináveis e surpreendem dia-a-dia com sua sofisticação, uma vez que, muitas vezes, são feitas através dos mesmos materiais e máquinas que os produtos originais. O conhecimento dos falsificadores é extremamente perspicaz, lançando cópias no mercado, por vezes, antes do próprio original. Há, definitivamente, uma cultura da imitação no país, seja na produção, no consumo e na aceitação social. Segundo dados obtidos numa fábrica original da Dolce&Gabbana visitada na China durante a pesquisa, enquanto ela possui uma capacidade de produção mensal de 3000 bolsas, 3 milhões de cópias eram lançadas ao mesmo tempo no “fake market”. O público consumidor de tais imitações é diversificado, abrangendo desde o operário que compra uma Louis Vuitton falsificada por um dólar (8 yuan), até um empresário bem sucedido que compra um Rolex para si ou uma bolsa Gucci para presentear alguma mulher – marcas mais cobiçados na China atualmente pelo público masculino e feminino respectivamente.

Cada vez mais, chegam bens falsificados chineses ao Brasil. Embora esses produtos sejam de comercialização proibida sob o ponto de vista legal, enquanto o consumidor está consciente do que compra e de suas escolhas, há uma gradação moral que pode ser socialmente aceitável. Bolsas Louis Vuitton ainda são inofensivas. O problema é que junto com elas, vêm produtos como remédios e alimentos. Os caminhos desses fluxos globais nos apontam uma direção desconfortável: o dia em que não saberemos mais o que estamos consumindo. Embora o mercado de bens chineses (como as famosas bugigangas), tenha trazido também inúmeros benefícios para o poder de compra de setores mais desfavorecidos da população, que passaram a ter acesso a uma série de bens de consumo que outrora estavam desprovidos, hoje vivemos numa sociedade de consumo de risco. Ao invés de buscar a culpa nos outros, é preciso atentar para as próprias deficiências do mercado brasileiro (preço, controle de qualidade, geração de emprego, etc), às quais abrem margem para os produtos chineses e sua invasão, nem sempre inocente e saudável.

Rosana Pinheiro-Machado é antropóloga, doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com estágio no Departamento de Cultura Material da University College London. Realizou trabalho de campo na China, Paraguai e Brasil. Organizadora do livro Antropologia & Consumo (AGE, 2006) e, juntamente com Ruben Oliven, da revista Horizontes antropológicos n. 28 sobre o tema "Antropologia e consumo". E-mail: rosana.pinheiro@ufrgs.br

Referências bibliográficas

FERNANDEZ, J. & UNDERWOOD, L. China CEO. Singapore, John Wiley & Sons, 2006.
GARNER, J. The rise of the chinese consumer. London: Credit Suisse, 2005.
PINHEIRO-MACHADO, R. LEITÃO, D. “O luxo do povo e o povo do luxo: consumo e classe social no Brasil”. In LEITÃO, LIMA, MACHADO (orgs.) Antropologia & Consumo. Porto Alegre: AGE, 2006.
PUN, Ngai. Subsumption or consumption? The phantom of consumer revolution in “globalizing” China. Cultural Anthropology. N.18 (4), p. 469-492, 2003.