“Na
natureza nada se cria, tudo se copia”. No mercado também.
Atualmente, na China, a produção das chamadas cópias,
imitações, réplicas e falsificações
é um fenômeno social que produz efeitos em todo o mundo
e se impôs de forma incontrolável devido aos mecanismos
através dos quais ele se expande e reinventa a si próprio.
Made
in China, hoje, é “marca registrada” de produto barato
e de pouca qualidade. Na realidade, as cópias e demais
produtos tipo “bugigangas” têm sido a âncora do
crescimento econômico chinês, uma vez que o mesmo está
alicerçado na proliferação da pequena e média
indústria, especialmente em zonas e cidades especiais de
produção e exportação no sul do país
(Zona Industrial do Delta do Rio da Pérola, em Guangdong). Ao
passo que existem inúmeras esferas governamentais e
empresariais que procuram combater tal faceta comercial, a realidade
é que essa força encontra forte eco nas sociedades em
que se manifesta, principalmente em países em desenvolvimento.
Nesse sentido, as imitações desempenham um papel social
decisivo, tanto no que diz respeito ao sistema de produção
e distribuição de bens (na geração vasta
e rápida de renda e empregos formais e informais), quanto no
consumo dos mesmos.
A partir
de pesquisas etnográficas realizadas no sul da China e no sul
do Brasil sobre o consumo desses produtos, percebe-se claramente que
o mercado de cópias – também conhecido como pirataria
– preenche lacunas abertas em diversas esferas sociais. Em primeiro
lugar, dentro desse amplo e heterogêneo mercado de bens made
in China, é preciso distinguir os seus diversos ramos, os
quais atingem públicos diferentes e possuem distintas
implicações sociais, morais, políticas e legais
da China ao Brasil.
Embora o
consumo de pirataria seja, comumente, associado ao fator baixa renda,
uma vez que se supõe que indivíduos procuram por
“substitutos” por não terem dinheiro para comprar os
produtos originais, a pesquisa realizada em centros de
comercialização desses produtos no camelódromo
de Porto Alegre e nos shopping centers de Shenzhen, aponta que nem
sempre a fórmula “classes populares consomem bens
falsificados e classes médias e altas consomem bens originais”
é verdadeira. O poder aquisitivo é uma variável
de suma importância, mas não é a única na
escolha entre cópias e bens autênticos. Nesse sentido,
seria interessante classificar, lato sensu, duas grandes
categorias de consumidores: os que são “enganados” e os
que “enganam”.
No
primeiro caso, o baixo preço das falsificações
é a mola propulsora do consumo. Os grupos mais atingidos desse
mercado são os de baixa renda. Na maioria das situações,
eles são os consumidores e as vítimas dos mesmos. Aqui,
estamos tratando de um ramo de falsificações
considerado o mais ilícito numa escala moral e legal: remédios
e alimentos. O consumidor vai a uma feira e compra ovos. Ele escolhe
os mais baratos em locais de venda mais populares. O que teria de
errado em um ovo? Nada, até o momento em que vai ao hospital
de Guangzhou (capital de Guangdong) com problemas gástricos
crônicos e descobre que o inocente ovo
era falsificado, feito com produtos químicos como
parafina. O mesmo ocorre para os compradores de chá,
refrigerante e remédios mais variados. Este quadro aponta o
nível e a sofisticação do mercado de
falsificações na China atualmente, fato este que não
é velado, sendo tratado diariamente nas principais agências
de notícias do país como um grave problema social a ser
resolvido. Produtos corriqueiros do cotidiano são copiados
cada vez mais e oferecem risco à saúde de qualquer
cidadão que mora na China (e fora dela, quando exportados),
especialmente àqueles que se abastecem em locais mais
distantes e baratos, onde a fiscalização é menos
rigorosa.
Quando
pensamos em cópias, no entanto, nos vem à mente
produtos, pertencentes ao mercado de
réplicas de marcas de luxo. Nesse ramo, o público em
geral não é composto por camadas populares, mas
principalmente pelas classes médias. No Brasil, esses produtos
chineses são encontrados, em geral, nos centros urbanos de
comércio popular. Eles vêm de importação
direta da China ou via Paraguai. Apesar de serem falsificadas, tais
réplicas (assim chamadas pelos comerciantes e consumidores)
possuem um custo bastante elevado – até 300 reais –, mas
ainda se constituem em alternativas ao produto original, pois custam
em torno de 10% do valor disponível nas lojas. No Brasil, as
bolsas da marca parisiense Louis Vuitton são os produtos mais
cobiçados nesse ramo de luxo. No momento em que pessoas das
camadas médias adquirem tais cópias, existe um jogo
social para que essa bolsa se passe por legítima. Trata-se de
um consumo inconfesso. Nos casos estudados, os consumidores
esforçam-se para dizer que a bolsa foi comprada em alguma
viagem, um presente ganho ou adquirido através de um grande
esforço de poupança. O público observador
acredita na medida em que o convencimento é eficiente. Por
outro lado, o desalentador e cruel sistema classificatório
discriminador da sociedade brasileira, pouco conferirá
legitimidade a uma Louis Vuitton usada por indivíduos de
camadas populares. É por isso que o mercado de réplicas
no Brasil vai ter apelo principalmente entre pessoas da classe média,
os quais sentem que, através do uso da marca, conseguem burlar
momentaneamente sua condição social numa direção
ascendente.
Na China,
consumir produtos de luxo é, sem dúvida, uma febre
nacional, símbolo máximo do rompimento da ética
e estética sombria e revolucionária maoísta. O
uso de marcas representa claramente uma nova era: um tempo de
prosperar – como já dizia Deng Xiao-ping, sucessor de
Mao-Tse Tung e reformador da China pós Revolução
Cultural. Com a febre da produção de cópias, nos
anos 80, e a produção de excedente a partir dos anos 90 fez surgir um período em que a própria sociedade chinesa passou a descobrir os deleites do
consumo e a tornar-se rapidamente um dos maiores mercados consumidores
do mundo. Em cidades como Shenzhen, fronteira com Hong Kong, o uso de
falsificações possui uma manifestação
soberana. As réplicas abrangem todos os produtos de marca
imagináveis e surpreendem dia-a-dia com sua sofisticação,
uma vez que, muitas vezes, são feitas através dos
mesmos materiais e máquinas que os produtos originais. O
conhecimento dos falsificadores é extremamente perspicaz,
lançando cópias no mercado, por vezes, antes do próprio
original. Há, definitivamente, uma cultura da imitação
no país, seja na produção, no consumo e na
aceitação social. Segundo dados obtidos numa fábrica
original da Dolce&Gabbana visitada na China durante a pesquisa, enquanto
ela possui uma capacidade de produção mensal de 3000
bolsas, 3 milhões de cópias eram lançadas ao
mesmo tempo no “fake market”. O público consumidor de tais
imitações é diversificado, abrangendo desde o
operário que compra uma Louis Vuitton falsificada por um dólar
(8 yuan), até um empresário bem sucedido que compra um
Rolex para si ou uma bolsa Gucci para presentear alguma mulher –
marcas mais cobiçados na China atualmente pelo público
masculino e feminino respectivamente.
Cada vez
mais, chegam bens falsificados chineses ao Brasil. Embora esses
produtos sejam de comercialização proibida sob o ponto
de vista legal, enquanto o consumidor está consciente do que
compra e de suas escolhas, há uma gradação moral
que pode ser socialmente aceitável. Bolsas Louis Vuitton ainda
são inofensivas. O problema é que junto com elas, vêm
produtos como remédios e alimentos. Os caminhos desses fluxos
globais nos apontam uma direção desconfortável:
o dia em que não saberemos mais o que estamos consumindo.
Embora o mercado de bens chineses (como as famosas bugigangas), tenha
trazido também inúmeros benefícios para o poder
de compra de setores mais desfavorecidos da população,
que passaram a ter acesso a uma série de bens de consumo que
outrora estavam desprovidos, hoje vivemos numa sociedade de consumo
de risco. Ao invés de buscar a culpa nos outros, é
preciso atentar para as próprias deficiências do mercado
brasileiro (preço, controle de qualidade, geração
de emprego, etc), às quais abrem margem para os produtos
chineses e sua invasão, nem sempre inocente e saudável.
Rosana
Pinheiro-Machado é antropóloga, doutoranda da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com estágio no
Departamento de Cultura Material da University College London.
Realizou trabalho de campo na China, Paraguai e Brasil. Organizadora
do livro Antropologia & Consumo (AGE, 2006) e, juntamente
com Ruben Oliven, da revista Horizontes antropológicos n. 28 sobre o tema "Antropologia e consumo". E-mail: rosana.pinheiro@ufrgs.br
Referências bibliográficas
FERNANDEZ, J. & UNDERWOOD, L. China CEO. Singapore, John Wiley & Sons, 2006.
GARNER, J. The rise of the chinese consumer. London: Credit Suisse, 2005.
PINHEIRO-MACHADO, R. LEITÃO, D. “O luxo do povo e o povo do luxo: consumo e classe social no Brasil”. In LEITÃO, LIMA, MACHADO (orgs.) Antropologia & Consumo. Porto Alegre: AGE, 2006.
PUN, Ngai. Subsumption or consumption? The phantom of consumer revolution in “globalizing” China. Cultural Anthropology. N.18 (4), p. 469-492, 2003.
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