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Reportagem
Ocupar as políticas e acelerar a democracia
Por Susana Dias
10/06/2007

2007. Itapecerica da Serra, São Paulo. Um mar de lonas pretas é estendido por 3 mil famílias, num terreno ocioso. O acampamento leva o nome do almirante negro "João Cândido", um dos líderes da Revolta da Chibata, de 1910. Nas negociações com o governo local, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) conquista o compromisso da construção de moradias populares para todas as famílias da ocupação, com recursos da Caixa Econômica Federal e da Companhia do Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). O prazo de permanência no terreno termina e a população é despejada. Marcham 8 km para um terreno disponibilizado pela prefeitura, mas no meio do caminho descobrem que a prefeitura voltou atrás e que não têm para onde ir. Novas negociações se iniciam até que a área provisória seja liberada. Erguem novamente suas casas de plástico e aguardam o cumprimento do acordo firmado com o governo.

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Marcha e assentamento. João Cândido, Itapecerica da Serra, 2007.
Fonte: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)

1980. Alcântara, Maranhão. Um decreto do governador João Castelo autoriza a instalação da base espacial do Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA). Uma área de 52 mil hectares, onde viviam 200 famílias de trabalhadores rurais de várias comunidades tradicionais quilombolas, é desapropriada. Cinco anos depois, o Ministério da Aeronáutica considera para reassentamento apenas as famílias que têm titulação oficial das terras. As famílias são deslocadas para uma área de 15 hectares, inviabilizando o auto-sustento, quando o Estatuto da Terra previa, no mínimo 30 hectares. Ao reunir diversas comunidades em um pequeno espaço, surgiram conflitos internos que não existiam antes. Em 1991, um novo decreto desapropria mais 62 mil hectares para expansão da Base. Ocupando cerca de 50% do município, a base desloca mais comunidades e restringe ainda mais as áreas propícias à pesca, agricultura e turismo. Boa parte da população vai morar nas palafitas da periferia de São Luís.

Os cenários descritos foram retirados de documentos (veja em Leia mais) produzidos por pesquisadores e representantes dos movimentos sociais envolvidos nas situações de despejos e reassentamentos das populações devido à implantação de projetos oficiais ou outros. Analisando esses e demais casos, o que se observa é que, da década de 80 para cá, embora existam avanços, tanto nas formulações teóricas e legislativas, quanto na organização e atuação dos movimentos sociais, os casos de despejos no Brasil ainda ocorrem sem políticas que garantam os direitos das populações removidas. O motivo para a remoção das famílias podem ser a construção de grandes obras – represas e estradas, por exemplo –, a implementação de projetos de revitalização urbana, a criação de unidades de conservação, ocupação ilegal de terrenos devido ao déficit habitacional, e situações de risco, como no caso de populações que vivem próximas a encostas e rios.

Para Regina Ferreira, educadora do Programa Direito à Cidade, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (ONG Fase), o principal entrave para a implementação de uma reforma urbana em nosso país é “a herança brasileira de um modelo de desenvolvimento concentrador de riquezas, que resultou na existência de grandes especuladores urbanos e na ausência de democratização da terra e da moradia. Um cenário em que o crescimento do país ainda é acompanhado pelo aumento da desigualdade socioeconômica”.

Dentre os avanços nas políticas, Nelson Saule Júnior, advogado, professor da PUC São Paulo e pesquisador na área de direito urbanístico, destaca: as mudanças que aconteceram na Constituição Federal, com a introdução de um capítulo sobre a política urbana, que ressalta a função social da propriedade; a implantação do Estatuto da Cidade (Lei Federal n°10.257/01); a constituição do Ministério das Cidades, uma demanda dos movimentos populares que lutam pelo direito à cidade; a constituição, em 2005, do Sistema e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei nº 11.124, resultante do PL 2.710/92 de iniciativa popular); e a realização, a cada dois anos, das Conferências Nacionais das Cidades, de onde saem os representantes dos Conselhos das Cidades que participam do processo de tomada de decisão sobre as políticas executadas pelo Ministério das Cidades. Saule salienta que muitas dessas conquistas permanecem no papel. “Existe a necessidade premente da implementação dessas formulações que estão sendo construídas nacionalmente. O que acontece com as famílias que são despejadas ainda depende muito das atuações regionais, tanto de movimentos sociais como de governos locais”, avalia ele, que também coordena a área de Direito à Cidade do Instituto Pólis. Essa é uma situação que expõe as comunidades menos organizadas, que podem não ter seus direitos garantidos.

Saule Júnior participou do Projeto Relatores Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, produzindo relatórios sobre a situação Alcântara e também a de Maceió – em 2003 o poder público municipal efetivou o assentamento para 800 famílias de baixa renda, sem implantar infra-estrutura. O Projeto tem por objetivo contribuir com a adoção, no Brasil, de um padrão de respeito aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, com base na Constituição Federal, no Programa Nacional de Direitos Humanos e nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo país. A coordenação é da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, com apoio do Programa das Nações Unidas para o Voluntariado e da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Atualmente, a pauta do Projeto de Relatores, no que toca à moradia e deslocamento de populações, focaliza o monitoramento da implantação de um pólo siderúrgico na ilha de São Luís (MA), a situação das famílias sem teto do parque industrial em Goiânia (GO), as ocupações urbanas em Teresina (PI), o saneamento ambiental na Baixada Fluminense (RJ), as ameaças de despejo das comunidades de baixa renda no Rio de Janeiro (RJ) e São José dos Campos (SP), que apresentam um histórico de pobreza e violação do direito à moradia e direito à cidade sustentável, além do monitoramento em São Paulo da política de revitalização urbana do governo, e a paralisação dos programas de habitações populares.

Bandeiras dos movimentos sociais

Para os movimentos sociais, atualmente, a situação de despejo de moradores só é aceitável em caso de risco para as populações. “A principal pauta dos movimentos hoje é a prevenção contra os despejos. Está se fazendo uma campanha para que sejam implementadas as políticas que levam em consideração os impactos socioambientais na aprovação dos empreendimentos. Isso tem que ser contemplado porque se trata da vida das pessoas”, revela Saule. As repercussões negativas para a vida das pessoas, nas inúmeras experiências de deslocamentos no país, deram impulso aos movimentos, como o do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). No início, as reivindicações dos movimentos focalizavam exclusivamente as indenizações individuais às famílias atingidas, com o tempo, passaram a integrar a melhoria de suas vidas após a realocação, permitindo a elas um acesso amplo à cidade. Diz-se “o direito à cidade”, que inclui o acesso a lazer, trabalho, transporte, saneamento básico, postos de saúde e escolas.

A ampliação da pauta também incluiu a luta por mudanças no foco das políticas de crescimento econômico do país. O MAB, por exemplo, defende a necessidade de mudanças na política energética brasileira, questionando o valor cobrado pela energia elétrica e o modelo de construção de grandes barragens, cujos impactos socioambientais são incalculáveis. Mais do que ocupar estradas, terrenos ociosos, edifícios abandonados, prédios públicos, os movimentos sociais desejam fazer uma ocupação das políticas. “Pensamos que a gestão das cidades não pode ficar restrita à democracia representativa, com a atuação apenas dos eternos porta-vozes do povo. Mas também por meio de uma democracia efetiva, na qual os diversos segmentos organizados da população possam discutir com os governos, exercendo um controle social sobre o orçamento, as políticas e os programas”, comenta Regina Ferreira.

PAC: controle social também precisa ser acelerado

O governo acaba de anunciar que projetos de habitação e saneamento dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) receberão R$ 9,7 bilhões de investimentos este ano. Muitas das obras propostas no Programa terão um impacto expressivo na vida das comunidades, em sua maioria pobres, que perdem moradia, local de trabalho e a identidade, como aconteceu em Alcântara. Apesar de existirem críticas ao PAC, o programa é avaliado pelos movimentos como um avanço na política nacional. "O Estado está assumindo o papel de promotor do desenvolvimento urbano e, mais importante, considerando o desenvolvimento urbano como elemento central ao desenvolvimento econômico do país", avalia Regina Ferreira.

No entanto, os movimentos sociais identificaram uma lacuna no PAC, que é a falta de controle social dos recursos destinados a esse programa. A discussão sobre a aplicação dos recursos tem ficado restrita aos governos federal, estaduais e municipais, sem passar por nenhum canal de participação pública. "Uma das reivindicações dos movimentos populares é que os representantes do Conselho Nacional das Cidades sejam chamados a participar nas decisões sobre a alocação desses recursos, bem como possam monitorar sua efetiva aplicação", diz Regina Ferreira, que também coordena a secretaria executiva do Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU). O Conselho é formado por representantes de diversos segmentos da sociedade e governo, que discutem políticas e monitoram a implementação das mesmas. Outra crítica ao PAC é que, embora um terço do Programa esteja voltado para obras de infra-estrutura urbana, ao focalizar apenas habitação e saneamento deixa de fora um problema sério enfrentado pelos moradores de grande parte das cidades: a falta de transportes.

Na síntese da Oficina de Planejamento do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), de fevereiro de 2007, os representantes dos movimentos sociais criticaram a fragmentação e departamentalização da política urbana do governo Lula. Para eles, este seria um dos empecilhos para a garantia efetiva do direito pleno à cidade. Os projetos propostos não conseguem articular as políticas setoriais urbanas – transporte, moradia e saneamento – com as políticas nacionais de desenvolvimento urbano. Um dos desafios da próxima Conferência Nacional da Cidade, que acontecerá este ano, é pensar e produzir propostas que promovam a articulação das políticas setoriais na política de desenvolvimento urbano, bem como consolidar o processo de participação na gestão das cidades através dos Conselhos das Cidades.

Para garantir maior participação popular, na elaboração e implementação das políticas urbanas, os movimentos hoje defendem que haja uma aceleração não apenas do crescimento econômico, mas do processo de democratização e controle social dos recursos, programas e políticas. Uma das apostas tem sido as ações do Conselho das Cidades, criado em 2004 para servir de instrumento de uma gestão democrática da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e na criação dos Conselhos Estaduais e Municipais das Cidades, nos estados e municípios.

Leia mais:

Itapecerica da Serra. Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
http://mtst.info/despejo_joao_candido

Relatório da missão a Maceió. Alagoas, Brasil – 2003. Instituto Polis.
http://www.polis.org.br/tematicas.asp?cd_camada1=16&cd_camada2=117

A situação dos direitos humanos das comunidades negras e tradicionais de Alcântara.
Relatório da Missão da Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada e à Terra Urbana. Instituto Pólis
http://www.polis.org.br/obras/arquivo_102.pdf

Rodoanel de SP: manaciais em risco. Instituto Socioambiental.
http://www.socioambiental.org/esp/rodoanel/pgn/pordentrodorodoanel.html

Impactos ambientais da barragem de Tucuruí: lições ainda não aprendidas para o desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia
Philip M. Fearnside do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)
http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/mss%20and%20in%20press/tuc-ambientais.pdf

Boletim do FNRU sobre o PAC
http://www.forumreformaurbana.org.br