Uma resposta eficiente à propagação internacional
das doenças exigiria uma ação internacional que priorizasse a atenção primária
à saúde e aos seus determinantes sociais, especialmente saneamento básico,
alimentação, moradia e educação. É sintomático que a proposta apresentada por
OMS, Banco Mundial e Fundação Rockefeller como solução para a saúde no mundo não
mencione o direito de acesso universal e gratuito à saúde. O debate
brasileiro sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) situa-se em um contexto
internacional complexo, que precisa ser conhecido e estudado. Surpreende que,
quando se fala do presente e do futuro do SUS, raramente se mencione que o
Brasil é hoje o epicentro de uma emergência sanitária de importância internacional
(ESPII) – qual seja a associação entre o
zika vírus, a microcefalia e outros distúrbios
neurológicos – declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em
fevereiro de 2016 e ainda vigente. Em primeiro
lugar, é preciso dizer que jamais o Brasil teria a possibilidade de detectar e
reagir a essa emergência, além de atender às recomendações da OMS, caso não
dispusesse do SUS e de instituições de pesquisa de excelência. Em segundo
lugar, é preciso perguntar por que a associação entre o zika e malformações é
considerada uma emergência internacional, enquanto doenças como a dengue, por
exemplo, não o são. Segundo o Ministério da Saúde, apenas entre 1º de janeiro e
9 julho de 2016 foram registrados 1.399.480 casos prováveis de dengue no
Brasil; até 20 de agosto de 2016, 9.091 casos de microcefalia ou alteração do
sistema nervoso central sugestiva de infecção congênita foram notificados,
sendo 1.845 confirmados. Ao responder a essa pergunta, descobrimos então que a
declaração de uma emergência internacional não está vinculada ao número de
pessoas atingidas, à gravidade de uma doença ou aos danos que ela causa a uma
população, e sim ao risco de que ela saia do local onde deve permanecer.
Refletir sobre o
contexto internacional da saúde remete a um campo de conhecimento referido,
especialmente na última década, como “saúde global”. Esta expressão polissêmica
compreende os mais variados interesses e práticas que podem ser observados em
processos deliberativos incontáveis, tanto internacionais (entre Estados) como
transnacionais (envolvendo diversos atores públicos e privados), que produzem
impactos no campo da saúde pública. Trata-se, porém, de um campo bastante
opaco. A Comissão de Oslo sobre a governança
global da saúde, que elaborou, sob os auspícios da revista The Lancet, um relatório sobre as origens das imensas desigualdades
mundiais no campo da saúde, apontou a falta de transparência da atuação de
instituições e processos de governança global, concluindo que atualmente não
existem meios adequados pelos quais seja possível assegurar a responsabilidade
de agentes governamentais e não governamentais pelas consequências de suas
ações sobre a saúde.
O presente
artigo pretende destacar brevemente um aspecto dessa vasta agenda política e
científica: a ascensão do tema da “segurança da saúde global”, especialmente a
partir da epidemia da doença por vírus ebola na África Ocidental, que teve seu
auge em 2014 e 2015, do qual parece que estão sendo tiradas as “lições
erradas”. Nos países ditos do Rio Mano
(Guiné, Libéria e Serra Leoa), ela acarretou milhares de mortes evitáveis,
diante da incapacidade dos sistemas nacionais de saúde tanto de agir
preventivamente como de oferecer uma resposta adequada.
A comunidade
internacional e em particular os países desenvolvidos são responsáveis pelo
fracasso da chamada “cooperação internacional para o desenvolvimento”,
especialmente pela reiterada utilização de estratégias verticais de erradicação
de doenças sob o paradigma da “bala mágica” (tratamento ou vacina que elimina
uma doença sem promover mudanças significativas de seus determinantes sociais),
além da persistência da situação de precariedade social e econômica em que se
encontram as populações dos países mais atingidos, entre as mais pobres do
mundo.
Devem
ser especialmente responsabilizadas as instituições financeiras internacionais
como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Estudos recentes
demonstram que as políticas de ajustamento estrutural do FMI desempenharam um
papel decisivo na falta de pessoal e no despreparo dos sistemas de saúde da
África Ocidental. O mesmo pode ser dito do Banco Mundial: pesquisadores
sustentam que, em Serra Leoa, por exemplo, ao longo dos anos 1990, os consultores
do Banco Mundial conseguiram, em três anos, demitir mais de cinco mil
empregados dos hospitais e reduzir dois terços da massa salarial do Ministério
da Saúde. O resultado disto é que, mesmo antes da epidemia, Serra Leoa dispunha
de apenas 0,2 médico para cada 10 mil habitantes, e a Libéria, 0,1.
A
Organização das Nações Unidas (ONU), por sua vez, deve ser questionada pelos
limites de suas missões políticas e operações de manutenção da paz. A região
mais atingida pela epidemia corresponde a Estados abalados por graves crises
políticas e, no caso da Libéria e de Serra Leoa, por guerras civis. A Libéria
acolhe desde 2003 uma missão da ONU, a Missão das Nações Unidas na Libéria (Minul),
criada pela Resolução 1509 do conselho de segurança. Em Serra Leoa, uma missão
de paz da ONU (United Nations Integrated Peacebuilding Office in Sierra Leone,
Unipsil) fechou suas portas em março de 2014, poucos meses antes do agravamento
da epidemia. A ONU então criou, em 18 de setembro de 2014, uma nova missão
especificamente para o combate ao Ebola, a Missão das Nações Unidas para a Luta
contra o Ebola (Minauce, em inglês UNMEER), que foi apresentada como a primeira
missão onusiana de caráter sanitário, sem que se saiba exatamente o que isso
significa.
Deve
ser responsabilizada, ainda, a indústria farmacêutica, que desde a aparição do
vírus ebola, há cerca de quarenta anos, jamais fabricou tratamentos ou vacinas,
eis que essa doença foi confinada histórica e geograficamente aos países pobres
africanos, que não constituem um mercado interessante para os grandes
laboratórios.
No
entanto, é a OMS quem aparece como a grande responsável pela dimensão alcançada
pela crise do ebola. Acusada de não ter percebido a tempo a gravidade da
situação, apesar das reiteradas advertências provenientes da organização
não-governamental Médicos Sem Fronteiras, a OMS teria sido incapaz de articular
uma resposta à altura, por numerosas disfunções, inclusive a falta de recursos
humanos e financeiros para agir. O relatório elaborado por um painel independente
criado pela OMS para avaliar o seu desempenho durante a crise do ebola,
conhecido como o relatório Stocking, concluiu que a organização não está
preparada para enfrentar crises dessa amplitude, formulando uma verdadeira
agenda de mudanças institucionais, inclusive a revisão do regulamento internacional
sanitário, em vigor desde 2007. Por meio desse regulamento, 196 Estados
assumiram o compromisso de adquirir capacidades mínimas para evitar a
propagação internacional das doenças, que pressupõem a existência de sistemas
nacionais de saúde estruturados. Ora, esse regulamento ainda está longe de ser
cumprido em dois terços do planeta. Antes de modificá-lo, é preciso
primeiramente colocá-lo em prática.
No Ocidente, os sete casos de ebola notificados até fevereiro
de 2016 (quatro nos Estados Unidos e casos individuais na Espanha, na Itália e
no Reino Unido), entre os quais apenas um óbito, tiveram repercussão
vertiginosamente maior do que o total de 28.639 casos confirmados, prováveis ou
suspeitos, e os 11.316 óbitos notificados à OMS no mesmo período. Houve pânico sem precedentes em relação a uma crise sanitária.
Embora
a colonização da agenda da saúde pela segurança não seja novidade histórica, o
que se constata na literatura recente é a proposição de que a resposta
internacional às crises sanitárias, especialmente a partir das “lições do ebola”,
seja pautada sob a perspectiva da “segurança global da saúde” (global health security).
Esse enfoque alinha-se claramente com a concepção norte-americana de segurança
sanitária e justifica ações unilaterais dos Estados, em detrimento do papel de
coordenação que deveria exercer a OMS. Por exemplo, os Estados Unidos
instalaram um CDC (center for desease control and prevention) na África em
parceria direta com a União Africana. Por outro lado, as oportunidades de
negócios para o setor de segurança no campo da saúde global são destacadas em
numerosos relatórios técnicos.
Combater
a propagação internacional das epidemias pela via do fortalecimento dos
sistemas de vigilância e, quando necessária a resposta internacional, de
missões da ONU focadas na contenção e na militarização, constitui uma espécie
de “utopia totalitária”.
Totalitária
porque justifica regimes jurídicos de exceção (tais como as leis nacionais e regulamentos
adotados nos países mais atingidos pela epidemia de ebola) que erodem o estado
de direito, além de patrocinar violações de direitos humanos que excedem
largamente as limitações do exercício das liberdades que poderiam ser exigíveis
para evitar a propagação das doenças (por exemplo, a alteração da legislação
migratória na Austrália e no Canadá para evitar a entrada em seu território de
pessoas que tivessem passado pela África Ocidental, adotadas em total
desrespeito às recomendações da OMS que favoreciam a circulação, especialmente
de profissionais de saúde). Totalitária, ainda, porque ao negligenciar graves
problemas de saúde global – tais como a malária, a tuberculose, a saúde da
mulher e dos indígenas etc. – para privilegiar o combate a doenças de maior
letalidade, a resposta internacional que foi dada à crise do ebola aprofunda as
desigualdades no plano mundial, resolvendo-as por meio do isolamento de
territórios e da retomada da já citada ideia da “bala mágica”.
É
também uma utopia, eis que a estratégia de contenção de doenças por isolamento
do território é, na prática, impossível. Apesar dos pesados investimentos em
recursos humanos e financeiros, toda a barreira física pode ser potencialmente
rompida; do mesmo modo que a estratégia da bala mágica é impotente diante do
potencial de mutação constante dos agentes causadores das doenças
infectocontagiosas. Nesse diapasão, uma vasta literatura demonstra a
complexidade da origem das epidemias, vinculadas às mudanças de equilíbrio
entre o homem e a fauna selvagem, as modificações dos ecossistemas e o aumento
das trocas entre zonas rurais e urbanas, assim como as trocas internacionais.
Logo,
uma resposta eficiente à propagação internacional das doenças exigiria uma ação
internacional que priorizasse a atenção primária à saúde e aos seus
determinantes sociais, especialmente saneamento básico, alimentação, moradia e
educação; e o investimento das instituições financeiras internacionais nos
sistemas nacionais de saúde, com massivos recursos para prevenção e atenção
básica à saúde, em infraestruturas sanitárias e no recrutamento de
profissionais de saúde bem formados, de carreira estável e bem remunerada.
Nesse
sentido, é sintomático que a proposta apresentada pela OMS, pelo Banco Mundial
e pela Fundação Rockefeller como solução para a saúde no mundo, intitulada
Cobertura Universal de Saúde (sigla
em inglês UHC), não mencione expressões como o direito à saúde, a equidade ou o
acesso universal e gratuito à saúde. Inspirada do modelo norte-americano, a UHC
parece a princípio atender mais aos interesses do mercado de seguros do que
efetivamente o direito à saúde das populações. Pesquisadores independentes consideram que essa proposta
corresponde à crescente pressão de interesses privados no que eles chamam de
“mercado da saúde”, que pretende segmentar a população de acordo com seu poder aquisitivo, ficando a cargo do Estado apenas a responsabilidade pela
saúde dos mais vulneráveis. Não há, porém, segurança possível para o conjunto
dos Estados e das sociedades em relação à propagação internacional das doenças
sem a existência de sistemas nacionais eficientes, de acesso universal e
gratuito. Resta saber, porém, a segurança de quem a saúde global pretende de
fato tutelar.
Deisy de Freitas
Lima Ventura é professora associada do
Instituto de Relações Internacionais e da Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo. deisy.ventura@usp.br
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