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Artigo
Não há segurança sem acesso universal e gratuito à saúde
Por Deisy Ventura
13/09/2016

Uma resposta eficiente à propagação internacional das doenças exigiria uma ação internacional que priorizasse a atenção primária à saúde e aos seus determinantes sociais, especialmente saneamento básico, alimentação, moradia e educação. É sintomático que a proposta apresentada por OMS, Banco Mundial e Fundação Rockefeller como solução para a saúde no mundo não mencione o direito de acesso universal e gratuito à saúde.

O debate brasileiro sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) situa-se em um contexto internacional complexo, que precisa ser conhecido e estudado. Surpreende que, quando se fala do presente e do futuro do SUS, raramente se mencione que o Brasil é hoje o epicentro de uma emergência sanitária de importância internacional (ESPII) –  qual seja a associação entre o zika vírus, a microcefalia e outros distúrbios neurológicos – declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em fevereiro de 2016 e ainda vigente. Em primeiro lugar, é preciso dizer que jamais o Brasil teria a possibilidade de detectar e reagir a essa emergência, além de atender às recomendações da OMS, caso não dispusesse do SUS e de instituições de pesquisa de excelência. Em segundo lugar, é preciso perguntar por que a associação entre o zika e malformações é considerada uma emergência internacional, enquanto doenças como a dengue, por exemplo, não o são. Segundo o Ministério da Saúde, apenas entre 1º de janeiro e 9 julho de 2016 foram registrados 1.399.480 casos prováveis de dengue no Brasil; até 20 de agosto de 2016, 9.091 casos de microcefalia ou alteração do sistema nervoso central sugestiva de infecção congênita foram notificados, sendo 1.845 confirmados. Ao responder a essa pergunta, descobrimos então que a declaração de uma emergência internacional não está vinculada ao número de pessoas atingidas, à gravidade de uma doença ou aos danos que ela causa a uma população, e sim ao risco de que ela saia do local onde deve permanecer. 

Refletir sobre o contexto internacional da saúde remete a um campo de conhecimento referido, especialmente na última década, como “saúde global”. Esta expressão polissêmica compreende os mais variados interesses e práticas que podem ser observados em processos deliberativos incontáveis, tanto internacionais (entre Estados) como transnacionais (envolvendo diversos atores públicos e privados), que produzem impactos no campo da saúde pública. Trata-se, porém, de um campo bastante opaco. A Comissão de Oslo sobre a governança global da saúde, que elaborou, sob os auspícios da revista The Lancet, um relatório sobre as origens das imensas desigualdades mundiais no campo da saúde, apontou a falta de transparência da atuação de instituições e processos de governança global, concluindo que atualmente não existem meios adequados pelos quais seja possível assegurar a responsabilidade de agentes governamentais e não governamentais pelas consequências de suas ações sobre a saúde.

O presente artigo pretende destacar brevemente um aspecto dessa vasta agenda política e científica: a ascensão do tema da “segurança da saúde global”, especialmente a partir da epidemia da doença por vírus ebola na África Ocidental, que teve seu auge em 2014 e 2015, do qual parece que estão sendo tiradas as “lições erradas”. Nos países ditos do Rio Mano (Guiné, Libéria e Serra Leoa), ela acarretou milhares de mortes evitáveis, diante da incapacidade dos sistemas nacionais de saúde tanto de agir preventivamente como de oferecer uma resposta adequada.

A comunidade internacional e em particular os países desenvolvidos são responsáveis pelo fracasso da chamada “cooperação internacional para o desenvolvimento”, especialmente pela reiterada utilização de estratégias verticais de erradicação de doenças sob o paradigma da “bala mágica” (tratamento ou vacina que elimina uma doença sem promover mudanças significativas de seus determinantes sociais), além da persistência da situação de precariedade social e econômica em que se encontram as populações dos países mais atingidos, entre as mais pobres do mundo.

Devem ser especialmente responsabilizadas as instituições financeiras internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Estudos recentes demonstram que as políticas de ajustamento estrutural do FMI desempenharam um papel decisivo na falta de pessoal e no despreparo dos sistemas de saúde da África Ocidental. O mesmo pode ser dito do Banco Mundial: pesquisadores sustentam que, em Serra Leoa, por exemplo, ao longo dos anos 1990, os consultores do Banco Mundial conseguiram, em três anos, demitir mais de cinco mil empregados dos hospitais e reduzir dois terços da massa salarial do Ministério da Saúde. O resultado disto é que, mesmo antes da epidemia, Serra Leoa dispunha de apenas 0,2 médico para cada 10 mil habitantes, e a Libéria, 0,1.

A Organização das Nações Unidas (ONU), por sua vez, deve ser questionada pelos limites de suas missões políticas e operações de manutenção da paz. A região mais atingida pela epidemia corresponde a Estados abalados por graves crises políticas e, no caso da Libéria e de Serra Leoa, por guerras civis. A Libéria acolhe desde 2003 uma missão da ONU, a Missão das Nações Unidas na Libéria (Minul), criada pela Resolução 1509 do conselho de segurança. Em Serra Leoa, uma missão de paz da ONU (United Nations Integrated Peacebuilding Office in Sierra Leone, Unipsil) fechou suas portas em março de 2014, poucos meses antes do agravamento da epidemia. A ONU então criou, em 18 de setembro de 2014, uma nova missão especificamente para o combate ao Ebola, a Missão das Nações Unidas para a Luta contra o Ebola (Minauce, em inglês UNMEER), que foi apresentada como a primeira missão onusiana de caráter sanitário, sem que se saiba exatamente o que isso significa.

Deve ser responsabilizada, ainda, a indústria farmacêutica, que desde a aparição do vírus ebola, há cerca de quarenta anos, jamais fabricou tratamentos ou vacinas, eis que essa doença foi confinada histórica e geograficamente aos países pobres africanos, que não constituem um mercado interessante para os grandes laboratórios. 

No entanto, é a OMS quem aparece como a grande responsável pela dimensão alcançada pela crise do ebola. Acusada de não ter percebido a tempo a gravidade da situação, apesar das reiteradas advertências provenientes da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras, a OMS teria sido incapaz de articular uma resposta à altura, por numerosas disfunções, inclusive a falta de recursos humanos e financeiros para agir. O relatório elaborado por um painel independente criado pela OMS para avaliar o seu desempenho durante a crise do ebola, conhecido como o relatório Stocking, concluiu que a organização não está preparada para enfrentar crises dessa amplitude, formulando uma verdadeira agenda de mudanças institucionais, inclusive a revisão do regulamento internacional sanitário, em vigor desde 2007. Por meio desse regulamento, 196 Estados assumiram o compromisso de adquirir capacidades mínimas para evitar a propagação internacional das doenças, que pressupõem a existência de sistemas nacionais de saúde estruturados. Ora, esse regulamento ainda está longe de ser cumprido em dois terços do planeta. Antes de modificá-lo, é preciso primeiramente colocá-lo em prática.

No Ocidente, os sete casos de ebola notificados até fevereiro de 2016 (quatro nos Estados Unidos e casos individuais na Espanha, na Itália e no Reino Unido), entre os quais apenas um óbito, tiveram repercussão vertiginosamente maior do que o total de 28.639 casos confirmados, prováveis ou suspeitos, e os 11.316 óbitos notificados à OMS no mesmo período. Houve pânico sem precedentes em relação a uma crise sanitária.

Embora a colonização da agenda da saúde pela segurança não seja novidade histórica, o que se constata na literatura recente é a proposição de que a resposta internacional às crises sanitárias, especialmente a partir das “lições do ebola”, seja pautada sob a perspectiva da “segurança global da saúde” (global health security). Esse enfoque alinha-se claramente com a concepção norte-americana de segurança sanitária e justifica ações unilaterais dos Estados, em detrimento do papel de coordenação que deveria exercer a OMS. Por exemplo, os Estados Unidos instalaram um CDC (center for desease control and prevention) na África em parceria direta com a União Africana. Por outro lado, as oportunidades de negócios para o setor de segurança no campo da saúde global são destacadas em numerosos relatórios técnicos.

Combater a propagação internacional das epidemias pela via do fortalecimento dos sistemas de vigilância e, quando necessária a resposta internacional, de missões da ONU focadas na contenção e na militarização, constitui uma espécie de “utopia totalitária”.

Totalitária porque justifica regimes jurídicos de exceção (tais como as leis nacionais e regulamentos adotados nos países mais atingidos pela epidemia de ebola) que erodem o estado de direito, além de patrocinar violações de direitos humanos que excedem largamente as limitações do exercício das liberdades que poderiam ser exigíveis para evitar a propagação das doenças (por exemplo, a alteração da legislação migratória na Austrália e no Canadá para evitar a entrada em seu território de pessoas que tivessem passado pela África Ocidental, adotadas em total desrespeito às recomendações da OMS que favoreciam a circulação, especialmente de profissionais de saúde). Totalitária, ainda, porque ao negligenciar graves problemas de saúde global – tais como a malária, a tuberculose, a saúde da mulher e dos indígenas etc. – para privilegiar o combate a doenças de maior letalidade, a resposta internacional que foi dada à crise do ebola aprofunda as desigualdades no plano mundial, resolvendo-as por meio do isolamento de territórios e da retomada da já citada ideia da “bala mágica”.

É também uma utopia, eis que a estratégia de contenção de doenças por isolamento do território é, na prática, impossível. Apesar dos pesados investimentos em recursos humanos e financeiros, toda a barreira física pode ser potencialmente rompida; do mesmo modo que a estratégia da bala mágica é impotente diante do potencial de mutação constante dos agentes causadores das doenças infectocontagiosas. Nesse diapasão, uma vasta literatura demonstra a complexidade da origem das epidemias, vinculadas às mudanças de equilíbrio entre o homem e a fauna selvagem, as modificações dos ecossistemas e o aumento das trocas entre zonas rurais e urbanas, assim como as trocas internacionais.

Logo, uma resposta eficiente à propagação internacional das doenças exigiria uma ação internacional que priorizasse a atenção primária à saúde e aos seus determinantes sociais, especialmente saneamento básico, alimentação, moradia e educação; e o investimento das instituições financeiras internacionais nos sistemas nacionais de saúde, com massivos recursos para prevenção e atenção básica à saúde, em infraestruturas sanitárias e no recrutamento de profissionais de saúde bem formados, de carreira estável e bem remunerada.

Nesse sentido, é sintomático que a proposta apresentada pela OMS, pelo Banco Mundial e pela Fundação Rockefeller como solução para a saúde no mundo, intitulada Cobertura Universal de Saúde (sigla em inglês UHC), não mencione expressões como o direito à saúde, a equidade ou o acesso universal e gratuito à saúde. Inspirada do modelo norte-americano, a UHC parece a princípio atender mais aos interesses do mercado de seguros do que efetivamente o direito à saúde das populações. Pesquisadores independentes consideram que essa proposta corresponde à crescente pressão de interesses privados no que eles chamam de “mercado da saúde”, que pretende segmentar a população de acordo com seu poder aquisitivo, ficando a cargo do Estado apenas a responsabilidade pela saúde dos mais vulneráveis. Não há, porém, segurança possível para o conjunto dos Estados e das sociedades em relação à propagação internacional das doenças sem a existência de sistemas nacionais eficientes, de acesso universal e gratuito. Resta saber, porém, a segurança de quem a saúde global pretende de fato tutelar.

Deisy de Freitas Lima Ventura  é professora associada do Instituto de Relações Internacionais e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. deisy.ventura@usp.br


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