10/11/2006
Para o jornalista, todos esses eventos
recentes sinalizam um perigoso processo de “linchamento político da
imprensa”. A posição de Dines tem sido contestada por muitos
leitores do próprio Observatório, que o acusam de fazer uma defesa
intransigente da imprensa.
Para ele, essa acusação seria mais um dos indícios do processo de
violência política que estaria em curso. “Quando se trata de criticar a
imprensa, nós somos os primeiros. Por isso é que, nessa circunstância
específica que estamos vivendo, eu lhe digo: a imprensa não merece esse
linchamento”. Em entrevista à ComCiência, Dines analisa a atuação da mídia nos episódios recentes.
ComCiência - Em linhas bastante gerais, a ética diz
respeito a uma moral inscrita no tempo e no espaço, a certas regras e
prescrições relativas a um determinado contexto, que as especificam.
Nesse sentido é que muitas vezes se fala numa “ética da política”, “
ética da ciência”. Existiria, assim, uma “ ética do jornalismo”?
Podemos discuti-la a partir de todos esses eventos recentes?
Alberto Dines -
Há um problema filológico. Os europeus não usam a palavra ética, eles
usam deontologia para se referir aos princípios éticos ou morais
aplicados à práxis profissional. A ética se refere a todo um processo
filosófico bastante sofisticado, relativo aos princípios morais e mesmo
a um plano espiritual. Por isso, acho que a palavra mais apropriada é
deontologia. A deontologia se refere, portanto, aos deveres cotidianos
e não aos grandes deveres morais. Prefiro falar em princípios
deontológicos da profissão de jornalista. Ética não tem nada a ver com
o fechamento da primeira página, deontologia tem. Sempre temos dito
isso – eu e outros companheiros do Observatório da Imprensa - vamos
falar em deontologia, que é a aplicação de princípios morais e éticos
mas dentro do dever profissional e da realidade cotidiana.
Mas
quero deixar claro que, na minha opinião, os eventos dessa conjuntura
pós-eleitoral não tem nada a ver com ética. Trata-se de um processo de
violência política contra a imprensa. Primeiro, quando a mídia cobre o
ilícito, ela cumpre a sua obrigação. E era ilícito: tinha gente sendo
investigada pela polícia federal, sendo indiciada, presa. Por isso, na
minha opinião, essa reação contra a imprensa não tem nada a ver com
ética. É linchamento puro.
Por
que vilanizar a mídia, diabolizá-la, dizer que ela é golpista? O que é
que a mídia estava fazendo? Estava discutindo um dossiê. Agora quem
criou esse dossiê, às vésperas da eleição? Foi a Isto É. A única vilã nessa história chama-se Isto É
e ninguém fala. Ela se dispôs a publicar uma entrevista fajuta e não se
sabe ainda o que ela iria receber em troca, isso ninguém investiga.
Agora, não foi a mídia quem inventou o dossiê Vedoin. E se a mídia o
discute é porque isso tudo é muito importante, principalmente às
vésperas de uma eleição. Inclusive uma eleição que estava ganha no
primeiro turno. A mídia cumpriu o seu papel. Alguns exageraram?
Exageraram. Mas também omitiram o papel da Isto É e com isso deram uma colher de chá ao governo porque a Isto É não faz nada de graça.
Vi algumas pessoas açulando o povo contra a imprensa de uma forma como
eu nunca tinha assistido na minha vida. Eles fizeram um linchamento. E
ele efetivamente começou com aquele episódio em Brasília, quando os
repórteres que aguardavam a chegada do Lula no Palácio da Alvorada
foram agredidos fisicamente por militantes do PT.
É
o negócio do aprendiz de feiticeiro. Começaram a diabolizar a imprensa
e, de repente, você tem todo um segmento grande já querendo linchar. Eu
estou sendo linchado. Nós do Observatório da Imprensa
que recebemos uma quantidade razoável de e-mails diários, não estamos
conseguindo dar conta pelo volume e, sobretudo, pela selvageria. De
mim, o que já disseram... E eu nunca escrevi nada contra ninguém. Isso
ofende quem? Os militantes porque, para eles, a imprensa é golpista
porque isso foi dito e martelado durante três meses. Aliás, vem sendo
martelado desde o mensalão. Hoje o Tarso Genro está em todos os jornais
dizendo que há um núcleo autoritário na militância do PT, mas o dia em
que ele veio ao OI, ele reconheceu que tinha exagerado num manifesto
que escreveu quando era presidente do PT. Isso ele me disse ao vivo, no
programa. Então você fica diabolizando e, evidentemente que, quando tem
um estouro, as pessoas perdem as estribeiras. A teoria do linchamento,
do estouro da manada, é uma realidade científica.
A
mesma coisa aconteceu com os judeus na Alemanha. O Hitler falando
contra os judeus durante as décadas de 1920 e 1930 e depois foi fácil.
E não foi só a Gestapo: estava todo mundo querendo liqüidar os judeus.
Todos os casos de linchamento são assim. Nos Estados Unidos: gritam
“nigger”, “nigger” e aí quando se pega um suspeito que é
afro-descendente, pronto, lincham, enforcam, matam.
ComCiência - No caso da divulgação das fotos do
dinheiro que foi apreendido pela polícia federal e que seria usado na
compra do dossiê Vedoin: não seria preciso lembrar que nem sempre o
repórter detém o controle sobre a divulgação da notícia? Por que muitas
críticas foram dirigidas ao comportamento dos jornalistas que obtiveram
as fotos e poucas aos seus editores ou mesmo às empresas jornalísticas
que, em última instância, são os que decidem pela publicação de uma
foto ou de uma matéria. Como fica a situação e a ética do jornalista
nesse campo de forças?
Alberto Dines - Hoje, pelo menos nos
grandes jornais, nada se faz contra a vontade do repórter. Quando o
delegado da PF Edmilson Bruno entregou as fotografias e pediu que seu
nome fosse omitido através de uma mentira, fui o primeiro a escrever
sobre isso, reprovando essa omissão. Alguns veículos erraram ao aceitar
não só omitir o nome dele como também reproduzir a mentira sugerida por
ele de que as fotos tinham sido roubadas. Erraram. Mas se esse
escândalo como um todo tem um peso 100, esse episódio equivale a 10.
Ainda
nesse caso da divulgação das fotos, estava correta a exigência da
publicação por parte da polícia federal porque isso faz parte dos
próprios procedimentos deontológicos da PF: Quando se faz uma
apreensão, se publica o material apreendido, sejam armas, drogas ou
dinheiro. É do procedimento interno da PF: você apreende uma coisa
ilegal, você mostra. Por isso, quando a mídia exigia as fotografias do
dinheiro, ela não estava fazendo campanha contra o Lula, ela estava
querendo que se fizesse, nesse caso, o que sempre se fez.
Eu não acho que a imprensa tenha errado muito. Ela errou: a Veja não devia ter feito a capa com o filho do Lula, há duas semanas atrás, não tinha nada de novo. Aquela história da Veja
com os dólares de Cuba, também não se provou nada. Mas, de uma forma
geral, o mensalão está aí. Foi reconhecido pela Procuradoria Geral da
República.
ComCiência - Não se pode negar a participação direta
de certos veículos, principalmente as chamadas revistas semanais na
última disputa eleitoral: Veja publicou essa matéria a respeito do filho do presidente da República, totalmente “requentada”. A Carta Capital
acusou a mídia de, com a divulgação das fotos do dinheiro apreendido,
favorecer o candidato do PSDB, provocando um segundo turno. A Isto É
detonou o caso do dossiê Vedoin com a publicação da entrevista. Existem
outros exemplos históricos relativos à interferência, mais ou menos
direta, de empresas de comunicação em campanhas eleitorais. (Como os
notórios casos envolvendo a Rede Globo e a campanha ao governo do Rio
de Janeiro, em 1982, e a edição do debate Lula x Collor, em 1989).
Esses episódios, essas práticas da imprensa, não contribuem para que
ela seja colocada sob suspeição e vista com desconfiança pelos seus
leitores/telespectadores/ouvintes?
Alberto Dines - Cada uma dessas revistas é diferente da outra. A Carta Capital faz a mesma coisa que a Veja só que em outra direção. E a Isto É faz
negócios, ela não está preocupada com política. O debate entre Lula e
Collor foi em 1989. Depois disso, a Globo prestou enormes serviços. E
estamos esquecendo – isso o Lula, o Márcio Thomaz Bastos e o Paulo
Delgado disseram várias vezes, esse último inclusive no nosso programa
– que quem ajudou a fazer o PT e a fazer o Lula foi a imprensa.
Mas se você vai ver as coisas ruins, você pode remontar ao Gutemberg.
Agora, nessas eleições, a imprensa vinha se comportando muito
tranquilamente. O que atrapalhou foi o dossiê Vedoin. E quem inventou o
dossiê foi a equipe que o presidente chama de “aloprados”. Isso foi
levado para a mídia porque, nas vésperas de uma eleição, era o tipo de
coisa que ela não podia ignorar – se você ignora, você é mau
jornalista. Eu estou preocupado. Nós vamos ter problemas sérios entre
sociedade, imprensa e governo. O governo precisa da imprensa para fazer
a reconciliação nacional mas não pode contar mais com ela porque o
próprio governo a está desacreditando. Estamos assistindo, nesse
momento, a um processo de destruição – ou de suspeição, o que dá no
mesmo –
de um dos poderes da República, que é a imprensa, sobretudo no momento
em que o governo apela para a união nacional. Ora, quem é que vai
vocalizar isso? É a imprensa.
Por
isso que os analistas mais bem preparados estão alertando: olha,
estamos nos encaminhando para uma situação totalitária, de coação pelo
poder. Os jornais têm liberdade para fazer o que eles querem, eles não
dependem de favor. Televisão e rádio é que depende de concessão. Agora
me diga o que é que a TV Globo fez de errado? Inventaram que a TV Globo
preferiu, na sexta-feira, véspera do primeiro turno, dar as fotos do
dinheiro apreendido pela PF ao desastre da Gol. O Ali Kamel escreveu,
foi ao OI e explicou: a Globo não podia dizer que havia a suspeita de
que um avião da Gol tinha desaparecido. Tinha que dar a informação
correta, e não correr o risco de dar um boato. A explicação, quando é
precisa, ninguém lê. Agora a frase emocional “a TV Globo é golpista”
cola. O Brasil tem que deixar a fase da insanidade, da exacerbação de
ânimos. Se nós queremos ser um país moderno e civilizado, temos que
aprender a discutir política politicamente.
ComCiência - Mas além desse argumento que recupera o passado recente da imprensa...
Alberto Dines -
Mas aí você está sendo injusta. O ser humano não pode ser condenado
pelo pecado original, ele tem que ser condenado pelo pecado que ele
comete. Então, nessa eleição – e eu te digo isso a partir dos meus 54
anos de profissão – não houve por parte da imprensa nenhum ilícito,
houve erros pontuais de alguns veículos. Da imprensa como instituição
não houve. Veja errou uma ou duas vezes e a Isto É. Só que ninguém fala da Isto É, o PT não fala dela. Porque se não houvesse Isto É
disposta a publicar qualquer coisa em troca de dinheiro, o escândalo
não teria ocorrido. Eu também não estou querendo linchar a Isto É. Se há episódios vexaminosos, o da Isto É é que coroa tudo.
Então, eu não vou chegar e dizer: “ah, mas o passado da imprensa”.
Porque se for assim, então vamos voltar à imprensa abolicionista, à
imprensa republicana e ver tudo o que a imprensa fez pelo país. A
imprensa antecipou-se ao Golpe de 1964. Qual foi o jornal que deu o
sinal? O Correio da Manhã.
Logo depois passou a ser o mais atacado pela ditadura militar. Não dá
para ficar remontando ao passado. Mas se quiser, por exemplo, pense nas
eleições de 2002. A imprensa foi impecável. E foi bastante simpática ao
Lula porque estava ouvindo uma inclinação da sociedade como um todo
para mudar. O Lula foi beneficiário disso. E agora a imprensa também
vinha muito bem. De repente, os “aloprados” inventaram o dossiê Vedoin.
Quem ajudou a divulgá-lo foi um órgão de imprensa irresponsável.
ComCiência - Muitas vezes o que acontece – e aí não
estou pensando no governo – é que qualquer tentativa de discussão sobre
a imprensa, qualquer tentativa de questionamento é taxada como censura,
ameaça à liberdade de imprensa...
Alberto Dines - O Observatório da Imprensa
existe há 10 anos. Não é um ano, são 10 anos. Todas as nossas edições
estão arquivadas no site. Nós estamos discutindo a imprensa desde 1996,
criticando a imprensa, brigando com a imprensa. Meu nome não sai na Folha de S. Paulo. Estou vetado, na “lista negra”. Meu nome não sai na Veja.
Eu estou discutindo a imprensa. Quando se trata de criticar a imprensa,
nós somos os primeiros. Por isso é que, nessa circunstância específica
que estamos vivendo, eu lhe digo: a imprensa não merece esse
linchamento.
ComCiência - E nesse caso específico as críticas estão partindo do governo?
Alberto Dines -
A gente não sabe se é governo, se é PT, se é a ala de cá ou a de lá do
PT. Está todo mundo no bolo. Agora, quem é que fez o melhor trabalho de
exposição dos candidatos durante as eleições? Foi a mídia. Não foi a
propaganda eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Foram
entrevistas, sabatinas, debates, a imprensa fez um excelente trabalho.
Os candidatos é que não queriam dizer o que deveriam ter dito.
Preferiram ficar no atalho fácil sugerido pelos marqueteiros. Ao longo
de 29 dias, durante o segundo turno, os candidatos participaram de
quatro debates na TV aberta. Isso é magnífico. E a imprensa não fez
isso porque é obrigada. Ela fez por causa do seu compromisso público. E
o conjunto dos debates foi muito bom. Não vai se dizer, hoje, que a
Globo preferiu fulano, a Band, sicrano... Eu acho até que ficava um
programa chatíssimo por causa das regras. Mas têm que ser assim.
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