Artigo |
|
Futebol e cinema: paixões planetárias |
Por Victor Andrade de Melo
10/08/2006
|
|
Na sociedade contemporânea, o futebol praticamente se
impõe em cada pedaço desse mundo globalizado. Não
surpreende, portanto, que existam mais países ligados à
Fifa do que à ONU.
Se o futebol é uma grande paixão mundial, o cinema
não é um amor menor. Os heróis e heroínas,
os vilões e vilãs, as estrelas cinematográficas e
seus comportamentos inundam o nosso imaginário. Formas de ser e
de se portar, utopias e sonhos, difundidos pelas películas,
habitaram o cotidiano de pessoas de todo o mundo: nada parece ter
passado desapercebido aos cineastas e seus filmes.
Assim, quando discutimos as relações entre futebol e
cinema, estamos certamente narrando os encontros e desencontros entre
duas paixões universais, diferentes mas profundamente
relacionadas.
Se são constantes e profícuos os
encontros entre cinema e esporte, por que a mais popular das
práticas esportivas contemporâneas está em certo
sentido pouco representada, ainda mais quando a comparamos a outros
esportes, como o boxe (este quase um gênero à parte entre
os filmes esportivos)? Alguns motivos podem ser elencados:
Questões técnicas
Ao contrário do boxe, da
natação e de alguns outros esportes, é muito
difícil recriar artificialmente uma partida de futebol. Mesmo
que encontrássemos um bom jogador que também
representasse bem, algo pouco provável, é muito
difícil recriar com exatidão as inusitadas e
imprevisíveis situações de um jogo, um dos
encantos, aliás, deste esporte.
Ao contrário das películas, que
são obras de arte produzidas a partir de um certo controle,
até mesmo em função de suas características
(normalmente, por exemplo, há um roteiro prévio), uma
partida de futebol é bastante aberta, uma performance sem
roteiro pré-definido (ainda que existam as “jogadas ensaiadas”),
onde um grande número de variáveis interfere na
configuração do resultado final.
Isso ajuda também a explicar o porque do
grande número de filmes documentais produzidos, majoritariamente
para o mercado doméstico, onde se apresentam coletâneas de
belos gols, belas jogadas, fatos inusitados do esporte. Na verdade,
também para as salas de projeção se produziu e
continua a se produzir esse tipo de película.
Esse material de natureza documental, que historicamente é
anterior aos filmes de ficção, tem sido de grande
importância para contribuir para a difusão do futebol por
todo o mundo, notadamente a partir da construção de
mitos: os grandes jogadores do passado, os jogos inesquecíveis;
a mística que envolve o esporte, algo que passa necessariamente
pela torcida, uma de suas facetas fundamentais.
Dramas
Ainda que a figura do craque seja de grande
importância para o futebol, este é um esporte coletivo,
onde 22 pessoas (além dos árbitros) interagem todo o
tempo. Com isso, e pelo que o envolve fora de campo, possui uma
força dramática menos explícita do que, por
exemplo, o boxe.
Os esportes individuais permitem exponenciar os
embates típicos do cinema, notadamente construídos a
partir de uma dualidade maniqueísta: um herói e um
bandido, o primeiro sempre se superando para enfrentar o segundo.
Além disso, ainda que o futebol seja um jogo violento, esta
dimensão não fica tão clara quanto no boxe, onde
é sempre a tônica. Violência, sangue, suor
são peças de grande valia para a composição
de histórias notáveis.
Menor interesse do público norte-americano
A principal indústria cinematográfica
mundial é a dos Estados Unidos. Como o público
norte-americano tem menor interesse pelo “soccer”, isso também
influencia na realização de um número menor de
filmes onde o futebol está presente.
De qualquer forma, não se pode dizer que o futebol não
esteve presente nas películas. Por exemplo, podemos citar um dos
mais relevantes filmes que tentou o levar às grandes telas, Fuga
para a vitória (1981), dirigido por John Huston, estrelado por
grandes nomes do cinema (como Sylvester Stallone e Michael Caine) e do
futebol (como Pelé e Bobby Moore). Lembramos ainda de Febre de
bola (David Evans, 1997), Meu nome é Joe (Ken Loach, 1998), A
copa (Khyentse Norbu, 1999), Driblando o destino (Gurinder Chadha,
2002), entre outros.
É interessante identificar o lugar que o Brasil (sejam seus
jogadores ou seus símbolos) ocupa em muitas dessas
películas, ainda que de forma bastante estereotipada. Parece um
mistério que alguns cineastas desejam entender: a qualidade e
vigor do futebol brasileiro; quase um ato de reverência.
E no “país do futebol”, como o cinema representou o futebol? No
Brasil freqüentemente também vemos surgir a
discussão de que temos poucos filmes sobre o assunto. Vamos
direto ao ponto: isso não é verdade.
De fato, o que há é um desconhecimento de nossa
produção cinematográfica, uma
restrição na consideração somente dos
longa-metragens e uma comparação infundada com outros
países: de nada adianta contrastar com outros esportes nos
Estados Unidos, por exemplo; lá, na verdade, há mais
filmes de qualquer tema.
Segundo o levantamento que realizamos em mais de 5.000 longas-metragens
brasileiros, entre 219 que de alguma forma representam o esporte, mais
de 120 trazem algo relacionado ao futebol. Obviamente que esse grau de
presença é muito variável, havendo desde breves
citações (por exemplo, em Ópera do malandro, 1985,
de Ruy Guerra, há uma cena em um estádio); algum
personagem da trama que é jogador (como no caso de Bossa nova,
2000, de Bruno Barreto; ou O casamento de Louise, 2001, de Betse
Paula); passando por aqueles em que ocupa um espaço de relativa
importância (como em Rio 40 graus, 1955, de Nélson Pereira
dos Santos), até aqueles em que é assunto central .
Entre esses últimos, vários são os assuntos
abordados: clubes de futebol (caso de Flamengo paixão, 1980,
David Neves), copas do mundo (por exemplo, Brasil bom de bola, 1971,
Carlos Niemeyer), jogadores de futebol (Garrincha, alegria do povo,
1963, Joaquim Pedro de Andrade), questões de gênero (Onda
nova, 1983, José Antônio Garcia), dificuldades da carreira
de jogador (Asa Branca, sonho brasileiro, 1981, Djalma Limongi
Batista), relações com a política (Prá
frente Brasil, 1982, Roberto Farias), entre muitos outros 1.
Há ainda duas facetas menos conhecidas do grande público
que devem ser citadas quando falamos da presença do futebol nas
telas nacionais. Uma delas é o grande número de imagens
documentais que podemos encontrar nos cinejornais, programas que
antigamente eram exibidos antes do filme principal, cujo principal
destaque é o Canal 100. A segunda, os muitos curtas-metragens,
cujo número tem sido crescente nos últimos anos. Como
destaque, citamos Uma história de futebol (1998, de Paulo
Macline), que disputou o Oscar de melhor curta.
Tratemos por fim de um assunto de grande importância: o cinema
(ou a imagem em um sentido mais amplo) teria influenciado na
própria dinâmica do futebol? Desde o início o fato
concreto é que as relações entre a arte
cinematográfica e o esporte tiveram uma dupla dimensão:
contribuíram para ampliar o alcance dos espetáculos
(tanto esporte quanto cinema) e para aumentar a objetividade na
análise dos resultados das competições, já
que supostamente bastaria filmar as provas e partidas para que qualquer
dúvida fosse sanada.
Há duas questões que precisam ser encaradas. O uso de
imagens é isento de dúvida? Certamente que não e
as polêmicas permanecem. Na Copa do Mundo de Futebol de 2002, por
exemplo, ficou famoso o episódio em que praticamente todos os
jornalistas do mundo afirmaram que o árbitro errara em uma
situação polêmica de jogo, fazendo uso para tal de
diversas fotografias e takes tomados aproximadamente do mesmo ponto de
vista. Até que surge uma foto tirada de outro ângulo, de
outro plano, demonstrando que a decisão do árbitro era
perfeita. O uso das imagens para melhor observância das regras do
espetáculo futebol é algo que desencadeia
profícuos debates por todo o mundo.
A segunda questão é que certamente a
utilização de imagens, no decorrer do tempo,
também trouxe modificações na postura do
observador da prática esportiva. Se antes o torcedor dependia
basicamente dele mesmo para tomar posicionamentos perante o que estava
sendo assistido, a atual utilização de imagens nos
espetáculos esportivos acaba por, de alguma forma, retirar um
pouco de seu papel definidor, diminuir um pouco o seu papel ativo. O
recurso do vídeo-tape e seus desdobramentos (tira-teimas,
programas que calculam “exatamente” o que ocorreu) acabam por ser
apresentados como a “verdade”, o objetivo, o “científico”,
deixando a opinião do torcedor para o campo da “doxa”.
Não estou afirmando que o uso de imagens “estragou” a
prática esportiva, mas a chamar a atenção para as
mudanças que foram ocasionadas. Mudanças paulatinas,
multifacetadas e cada vez maiores.
Existe um número enorme de imagens e programas esportivos nas
televisões de todo o mundo. O esporte é levado para
dentro dos lares. Todos têm acesso a um discurso aproximado
acerca da prática, mesmo que persistam as polêmicas. Os
torcedores são sim ativos, mas lidam com estruturas bastante
fortes de convencimento, simultaneamente e em diferentes graus
rechaçadas e incorporadas.
O importante é entender que a possibilidade de difusão
rompeu o limite claro entre o público e o privado, envolveu
ainda mais mulheres, famílias, filhos (algo que já era
observável anteriormente nas instalações
esportivas), mas estabeleceu um acesso mediado pelos “especialistas” a
partir de uma idéia de objetividade.
Enfim, como um caminho de via dupla, cinema e
futebol se interinfluenciaram e dialogaram constantemente. E esse
percurso nos permite vislumbrar uma possibilidade de compreender os
discursos acerca da sociedade, determinadas
representações, certos mitos. Estar atento a isso, como
recurso de investigação, como possibilidade
pedagógica ou como maneira de ampliar nosso prazer, é uma
necessidade e um desafio para todos nós, pesquisadores,
estudiosos, interessados ou fãs do esporte.
Victor Andrade de Melo é professor do Programa de
Pós-Graduação em História
Comparada/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro; professor da Escola de
Educação Física e Desportos; pesquisador do
Programa Avançado de Cultura Contemporânea; pesquisador do
Laboratório do Tempo Presente; coordenador do Grupo de Pesquisa
“Anima”: Lazer, Animação Cultural e Estudos Culturais.
Nota
1 Uma lista completa de todos os filmes brasileiros que
tematizam o esporte, bem como dos específicos de futebol, pode ser
encontrada em: www.lazer.eefd.ufrj.br/esportearte.
|
|
|