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Os limites das metas de inflação
Por Luiz Gonzaga Belluzzo
10/05/2011

Há alguns anos, o pensamento compacto e invulnerável a contraditório conferia conforto às certezas a respeito das políticas “corretas”. Hoje há quase unanimidade no repúdio à ideia de que bastava, em um ambiente de desregulamentação financeira, assegurar a estabilidade monetária, mediante a utilização de um regime de metas de inflação.

Depois da crise financeira, os economistas mais respeitáveis passaram a admitir que as certezas das políticas de metas de inflação abriram as portas para os descuidos com a supervisão das instituições e ao descaso com a utilização de outros instrumentos – hoje ditos macroprudenciais – já utilizados amplamente em outros tempos.

Os pais dessas certezas, Walras, Wicksell, Hayek e Milton Friedman e o indefectível Robert Lucas formularam teorias distintas a respeito da moeda e de suas articulações com a economia, mas todas elas acolheram a hipótese da separação entre os “fatores reais” e os “fatores monetários”. Na contramão da visão dicotômica das economias de mercado – fatores monetários de um lado e fatores reais de outro – Keynes se dispôs a investigar as propriedades da Economia Monetária da Produção. Nela, imperam a divisão do trabalho, a propriedade privada das empresas, o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e a moeda de crédito administrada pelos bancos.

Sem a criação de meios de pagamento e o provimento de liquidez pelo sistema bancário, os empresários encontrariam dificuldades para comprar de meios de produção e pagar os salários aos trabalhadores. Nos mercados desenvolvidos, relações de crédito-débito geram um estoque de valores – direitos à renda e à riqueza – “precificados” e negociados diariamente. Na hipótese keynesiana, a taxa de juro é formada pelas expectativas dos protagonistas quanto à conveniência de manter sua riqueza sob a forma líquida ou adquirir um ativo (novo ou já existente).

Para Keynes, a importância do dinheiro decorre de sua natureza essencial como forma geral da riqueza, ponto de chegada inexorável de todas as mercadorias e dos demais ativos, reais ou financeiros. Ao contrário do que pretendiam os partidários da dicotomia clássica, Keynes rejeitava a hipótese da determinação da taxa de juro pela interação entre a demanda de empréstimos pelos “investidores” e oferta de fundos “reais” pelos poupadores. A economia monetária da produção não pode ser concebida sem a expansão das relações de débito e crédito, fundamentais para acelerar a acumulação produtiva e o progresso tecnológico.

O economista Cláudio Borio, do Bank of International Settlements, discute em artigo recente as consequências da maior interdependência dos mercados financeiros “liberalizados”. A dita globalização, diz ele, acentuou o caráter pró-cíclico dos sistemas financeiros e impulsionou a criação de desequilíbrios cumulativos entre credores e devedores – famílias, empresas e países – com sérias consequências para a eficácia das políticas monetárias nacionais.

Na opinião do economista do Bank of International Settlements, a questão central reside nas limitações da política monetária, enclausurada nas metas de inflação, diante da inclinação dos sistemas financeiros em desatar movimentos pró-cíclicos. “Enquanto o sucesso da luta contra a inflação foi extraordinário, o mesmo não pode ser dito da estabilidade financeira. Desde a liberalização do início dos anos 1980, observamos flutuações cada vez maiores na expansão do crédito e no preço dos ativos. Esses fenômenos desencadearam crises financeiras com consequências materiais para a economia real”.

Borio suspeita que as regras impostas às instituições pelos acordos da Basileia I e II tiveram pouca eficácia para conter a sistemática subestimação dos riscos suscitada pelas articulações entre crédito farto e a valorização dos ativos. Borio chama a atenção para o caráter sistêmico, ou seja, macroeconômico dos processos de “euforia e desilusão”. Ele admite que, em seu movimento de expansão, a economia monetária da produção produz endogenamente as situações de fragilidade financeira que culminam na crise e na destruição de valor da riqueza acumulada, com danos à economia real.

O desenvolvimento da fragilidade financeira não decorre do comportamento irracional dos agentes, mas sim do peculiar sistema de relações que se estabelece entre os possuidores de riqueza. As condições de liquidez dos mercados financeiros se alteram endogenamente ao longo do ciclo: primeiro abundante, depois eufórica, para finalmente desaparecer diante da demanda desesperada dos que carregam ativos cujas receitas tornaram-se inferiores aos pagamentos contratuais decorrentes da dívida assumida.

Não por acaso, Borio propõe a adoção, ao longo do ciclo, de medidas discricionárias – tais como requerimentos de margem mais rigorosos e restrições quantitativas aos empréstimos, atuando em conjugação com os instrumentos preventivos já existentes – para impedir a alavancagem excessiva e imprudente.

Este artigo foi originalmente publicado na revista Carta Capital em 22 de março de 2011.

Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor do Instituto de Economia da Unicamp e consultor editorial de Carta Capital.