Há alguns anos,
o pensamento compacto e invulnerável a contraditório conferia conforto às
certezas a respeito das políticas “corretas”. Hoje há quase unanimidade no
repúdio à ideia de que bastava, em um ambiente de desregulamentação financeira,
assegurar a estabilidade monetária, mediante a utilização de um regime de metas
de inflação.
Depois da crise
financeira, os economistas mais respeitáveis passaram a admitir que as certezas
das políticas de metas de inflação abriram as portas para os descuidos com a
supervisão das instituições e ao descaso com a utilização de outros
instrumentos – hoje ditos macroprudenciais – já utilizados amplamente em outros
tempos.
Os pais dessas
certezas, Walras, Wicksell, Hayek e Milton Friedman e o indefectível Robert
Lucas formularam teorias distintas a respeito da moeda e de suas articulações
com a economia, mas todas elas acolheram a hipótese da separação entre os
“fatores reais” e os “fatores monetários”. Na contramão da visão dicotômica das
economias de mercado – fatores monetários de um lado e fatores reais de outro –
Keynes se dispôs a investigar as propriedades da Economia Monetária da
Produção. Nela, imperam a divisão do trabalho, a propriedade privada das empresas,
o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e a moeda de crédito
administrada pelos bancos.
Sem a criação de
meios de pagamento e o provimento de liquidez pelo sistema bancário, os
empresários encontrariam dificuldades para comprar de meios de produção e pagar
os salários aos trabalhadores. Nos mercados desenvolvidos, relações de
crédito-débito geram um estoque de valores – direitos à renda e à riqueza –
“precificados” e negociados diariamente. Na hipótese keynesiana, a taxa de juro
é formada pelas expectativas dos protagonistas quanto à conveniência de manter
sua riqueza sob a forma líquida ou adquirir um ativo (novo ou já existente).
Para Keynes, a
importância do dinheiro decorre de sua natureza essencial como forma geral da
riqueza, ponto de chegada inexorável de todas as mercadorias e dos demais
ativos, reais ou financeiros. Ao contrário do que pretendiam os partidários da
dicotomia clássica, Keynes rejeitava a hipótese da determinação da taxa de juro
pela interação entre a demanda de empréstimos pelos “investidores” e oferta de
fundos “reais” pelos poupadores. A economia monetária da produção não pode ser
concebida sem a expansão das relações de débito e crédito, fundamentais para
acelerar a acumulação produtiva e o progresso tecnológico.
O economista
Cláudio Borio, do Bank of International Settlements, discute em artigo recente
as consequências da maior interdependência dos mercados financeiros
“liberalizados”. A dita globalização, diz ele, acentuou o caráter pró-cíclico
dos sistemas financeiros e impulsionou a criação de desequilíbrios cumulativos
entre credores e devedores – famílias, empresas e países – com sérias
consequências para a eficácia das políticas monetárias nacionais.
Na opinião do
economista do Bank of International Settlements, a questão central reside nas
limitações da política monetária, enclausurada nas metas de inflação, diante da
inclinação dos sistemas financeiros em desatar movimentos pró-cíclicos.
“Enquanto o sucesso da luta contra a inflação foi extraordinário, o mesmo não
pode ser dito da estabilidade financeira. Desde a liberalização do início dos
anos 1980, observamos flutuações cada vez maiores na expansão do crédito e no
preço dos ativos. Esses fenômenos desencadearam crises financeiras com
consequências materiais para a economia real”.
Borio suspeita
que as regras impostas às instituições pelos acordos da Basileia I e II tiveram
pouca eficácia para conter a sistemática subestimação dos riscos suscitada
pelas articulações entre crédito farto e a valorização dos ativos. Borio chama
a atenção para o caráter sistêmico, ou seja, macroeconômico dos processos de
“euforia e desilusão”. Ele admite que, em seu movimento de expansão, a economia
monetária da produção produz endogenamente as situações de fragilidade financeira
que culminam na crise e na destruição de valor da riqueza acumulada, com danos
à economia real.
O
desenvolvimento da fragilidade financeira não decorre do comportamento
irracional dos agentes, mas sim do peculiar sistema de relações que se
estabelece entre os possuidores de riqueza. As condições de liquidez dos
mercados financeiros se alteram endogenamente ao longo do ciclo: primeiro
abundante, depois eufórica, para finalmente desaparecer diante da demanda
desesperada dos que carregam ativos cujas receitas tornaram-se inferiores aos
pagamentos contratuais decorrentes da dívida assumida.
Não por acaso,
Borio propõe a adoção, ao longo do ciclo, de medidas discricionárias – tais
como requerimentos de margem mais rigorosos e restrições quantitativas aos empréstimos,
atuando em conjugação com os instrumentos preventivos já existentes – para
impedir a alavancagem excessiva e imprudente.
Este artigo foi
originalmente publicado na revista Carta
Capital em 22 de março de 2011.
Luiz Gonzaga Belluzzo é economista,
professor do Instituto de Economia da Unicamp e consultor editorial de Carta
Capital.
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