O 10 de fevereiro é uma data histórica para a aviação comercial
brasileira. Nesse dia, em 1965, as concessões de linhas aéreas da
Panair do Brasil S.A. foram abruptamente cassadas, por meio de despacho
assinado pelo então presidente da República, marechal Castello Branco,
e pelo ministro da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes, que se
basearam em Exposição de Motivos apresentada pelo brigadeiro Clóvis
Travassos, ex-diretor da antiga Diretoria da Aeronáutica Civil. A
determinação, recebida via telegrama, foi anunciada apenas cinco horas
antes da decolagem de um vôo internacional programado com destino a
Frankfurt, Alemanha.
Um
sentimento de incredulidade imediatamente tomou conta de todos.
Primeiro, porque a Panair, concessionária das rotas para a Europa,
África e Oriente Médio, era a mais respeitada e prestigiosa empresa de
aviação do país. Com 35 anos de atividades, significava pioneirismo e
qualidade, funcionava informalmente como consulado brasileiro em quatro
continentes e representava, aos estrangeiros, o domínio e a capacidade
técnica do país no setor aéreo.
Depois,
porque o ato, baixado sem qualquer aviso prévio, deixou a diretoria e
os clientes sem saber o que fazer com os bilhetes já emitidos. Mas a
surpresa maior viria à noite: como soubesse da resolução governamental
com antecedência, a Varig, então operadora de linhas para os Estados
Unidos e Japão, tripulou de imediato um Boeing 707 para realizar, sem
solução de continuidade, o vôo da concorrente cassada. E o avião
decolou, ainda que com pequeno atraso, rumo a países para os quais os
pilotos em tese nunca haviam voado, numa demonstração sem precedentes
de eficiência na aviação comercial.
Tinha
início o caso mais rumoroso do direito empresarial no Brasil. Sacudidos
pela brusquidão da medida, os diretores da Panair se reuniriam com
advogados em sessões permanentes, para tentar tornar sem efeito a
cassação, a qual, segundo eles, contrariava as cláusulas do contrato de
concessão de linhas aéreas celebrado com o Ministério da Aeronáutica,
órgão que regulava o setor da aviação no país. Isso porque em momento
algum antes da intervenção a empresa fora interpelada sobre possíveis
irregularidades em suas operações, passara por perícia ou processo
administrativo regular, ou fora cientificada das intenções das
autoridades de cassá-la. Baseados nesses argumentos, os executivos
decidiram impetrar um mandado de segurança ao Supremo Tribunal Federal,
reivindicando a restituição do direito de operar, e entrar com uma ação
por perdas e danos. Com sua principal fonte de receita parada e o STF
em recesso, a companhia entrou também com um pedido de concordata
preventiva na 6a Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
uma tentativa de resguardar intacto o patrimônio até que o mandado
fosse julgado.
Nesse
meio tempo, 5.000 funcionários, espalhados de Lima a Beirute, haviam
instantaneamente perdido seu meio de subsistência e estavam em
desespero. Acionistas e diretores cobravam respostas, eram ouvidos
pelos jornais e amparados pela população. As autoridades, por conta
disso, sentiram-se pressionadas a vir a público para justificar a
decisão. Alegavam que há algum tempo vinham acompanhando a situação
financeira da empresa, que rapidamente se deteriorava. Segundo eles, a
crise era tão grave e acelerada, que o colapso da Panair, iminente, não
poderia ser evitado mesmo se todo o pesado auxílio econômico destinado
à indústria do transporte aéreo, previsto no orçamento do governo,
fosse dado à empresa. E acrescentavam: irrecuperável, no futuro a
Panair viria a ter problemas para realizar a manutenção em seus aviões,
enfrentaria dificuldades em comprar peças de reposição e, por fim,
provavelmente provocaria acidentes aéreos fatais.
Paulo
de Oliveira Sampaio – que durante 16 anos administrou a companhia como
diretor-presidente, transformando-a de subsidiária integral da Pan
American World Airways em empresa de bandeira do Brasil completamente
nacional – refutou as acusações. Dizia que além de todos os
compromissos estarem em dia ou negociados, incluindo a folha de
pagamento dos funcionários, os débitos reclamados pela União,
contraídos com o Banco do Brasil, não eram exclusividade da
concessionária cassada. De acordo com o diretor, as dívidas das quatro
grandes empresas nacionais eram de 23 bilhões e 892 milhões de
cruzeiros, dos quais 4 bilhões e 400 milhões correspondiam à Panair.
As
origens desse débito remontavam a 1961, quando o Congresso aprovou um
projeto de lei que fixava a subvenção para reequipamento em 3 bilhões e
200 milhões de cruzeiros (10 milhões de dólares, a uma taxa de câmbio
de 320 cruzeiros por dólar). Na época, a aviação comercial era
subvencionada no Brasil com base na quilometragem voada. A medida,
inicialmente, deu fôlego às companhias. Contudo, por conta da crise
político-econômica que se instalou no país, o dólar subiu até alcançar
a taxa de câmbio de Cr$ 1.850, em que se encontrava em fevereiro de
1965. A desvalorização cambial, somada à estagnação do valor das
subvenções, terminou por reduzir o pacote a um milhão e meio de
dólares, aproximando o setor do caos. Nem financiamentos especiais pela
Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, autorizados pelo governo,
continham os gastos das aéreas. E, como não havia meios de atualizar os
valores subvencionados, decidiu-se, de comum acordo, em 1963, que o BB
não exigiria o resgate dos débitos até que uma outra resolução fosse
encontrada.
Isso
era de amplo conhecimento das autoridades, mas nenhuma explicação foi
suficiente. Em 15 de fevereiro de 1965, apenas três dias após o pedido
de concordata preventiva ser impetrado, o juiz de plantão, Mário
Rebello de Mendonça Filho, indeferiu, alegando em seu despacho apenas
que, sem as linhas, a Panair do Brasil não teria meios de solver
compromissos futuros e, eventualmente, iria à falência. Portanto, que
estava desde já falida. Uma eutanásia jurídica. A decisão do
magistrado, baseada em vaga exposição de motivos fornecida pela
aeronáutica, liquidou a segunda maior empresa privada do país sem que
houvesse qualquer dívida vencida exigível, títulos levados a protesto
por parte de credores estatais e privados, ou ações trabalhistas na
Justiça. A União, a seguir, entrou em cena mais uma vez. Na sentença
que decretou a falência, o Banco do Brasil resolveu contrariar o acordo
de moratória e, sem prestar explicações, protestou exclusivamente os
títulos da companhia, mantendo intacta a situação das concorrentes –
algumas das quais, devedoras de quantias superiores.
Hoje em dia, empresas aéreas, de maior ou menor porte, quebram a toda
hora. Mas, na ocasião, o fechamento da Panair foi um evento tão
inusitado e grandioso, que repercutiu por todo o mundo como escândalo.
Estranhava-se a ausência, por parte do juiz, de diligência para
averiguar se a empresa dispunha de outras fontes de renda. E elas eram
várias. O grupo controlava a Companhia Eletromecânica Celma, que era –
e ainda é – o mais avançado parque de revisão de motores a pistão e a
jato do Hemisfério Sul, contratado não só pela maior parte das empresas
aéreas nacionais, mas por 12 congêneres estrangeiras de peso e, até
mesmo, pela Força Aérea Brasileira, que revisava ali seus motores. A
Panair obtinha receita também de seu Departamento de Comunicação e
Proteção ao Vôo, única infra-estrutura de telecomunicações aeronáuticas
do país, responsável pela segurança e cobertura de vôo de toda
aeronave, de qualquer nacionalidade, que sobrevoasse o Atlântico Sul.
Nos hangares da companhia, serviços de manutenção garantiam renda
adicional significativa.
Além
disso, os donos da Panair, Mário Wallace Simonsen e Celso da Rocha
Miranda, eram ricos, tinham boas relações com instituições financeiras
e gozavam de grande prestígio e influência. O paulista Simonsen
comandava mais de 40 empresas poderosas, entre elas a Comal e a Wasin
S.A., que compravam e exportavam café para o mundo todo numa época em
que o grão ainda correspondia a dois terços da pauta brasileira. Tinha
capital majoritário na influente TV Excelsior, um dos canais de
televisão mais promissores da época. O sócio, Celso da Rocha Miranda,
do Rio de Janeiro, atuava principalmente no ramo de seguros, com firmas
como a Companhia Internacional de Seguros e a Ajax Nacional de Seguros,
as maiores do setor, que atendiam clientes como o Banco do Brasil e as
Docas de Santos. Também trabalhava com aerolevantamento, prospecção e
com a indústria imobiliária.
Era
estranho que, com esse grupo forte por trás, a Panair subitamente tinha
ido à bancarrota. Mas justamente aí estava a raiz do problema. Esses
homens eram muito próximos ao ex-presidente Juscelino Kubitschek e
pretendiam financiar sua candidatura nas eleições seguintes.
Legalistas, tinham ficado marcados pelos militares por causa do apoio à
posse de João Goulart três anos antes. Uma a uma, suas empresas
passaram a sofrer intervenções ou sérias restrições de crédito.
Na
Panair, o desemprego em massa resultou em graves problemas sociais.
Seus funcionários representavam, na economia dos anos 1960, cerca de
0,2% da força de trabalho qualificada do Brasil. Sem salário, tentaram
de todas as formas sobreviver, inclusive recebendo doações de
mantimentos em hangares fechados. Com poucas perspectivas de
recolocação no mercado a curto prazo, havia uma única esperança para a
maioria deles: as indenizações. Nos termos do Art. 486 da Consolidação
das Leis do Trabalho, o pagamento ficava a cargo da União, já que a
cessação das atividades da concessionária ocorreu por ato do poder
público concedente. O governo, no entanto, nunca pagou. Quem assumiu os
créditos foi a empresa falida, que, sem nenhuma obrigação de fazê-lo,
pagou a todos, em dobro e com seu próprio caixa em apenas dois anos –
outro recorde digno de nota na história falimentar do Brasil.
O
processo de falência foi desastroso. Mesmo respaldados por
jurisprudência, os representantes da empresa viam-se sempre
imobilizados em todas as tentativas de se defender e ao patrimônio das
intervenções do governo militar. Enquanto sofriam perseguições que
incluíam acusações fabricadas – posteriormente, repelidas pela Justiça
–, laudos periciais adulterados e desentranhamentos de promoções nos
autos que os eximiam de culpa, o Banco do Brasil, por meio de seus
representantes, dilapidou quase inteiramente os bens da Panair – em
especial, a sua rede de agências e representações no exterior. Um
determinado preposto da instituição, além de deixar de prestar contas
das operações, transferiu para a Varig, gratuitamente, a maior parte
dos contratos de aluguéis das lojas da ex-concorrente, com os bens
móveis incluídos.
Paralelamente,
por meio de decretos, a União desapropriou, a preços fantasiosos, a
Celma e o Departamento de Comunicações, suas ações e equipamentos. Os
aviões DC-8 e Caravelle foram, por pressão, arrendados à Varig e
Cruzeiro do Sul, respectivamente, também a preços abaixo da realidade
do mercado internacional. E quando os advogados da massa falida
decidiram solicitar a atualização dos valores, tiveram como resposta a
edição, a toque de caixa, do Decreto-lei n° 496, de março de 1969, que
desapropriou as aeronaves, peças e sobressalentes.
O
disparo de leis extravagantes tornou-se a principal arma da União para
legitimar o extermínio da tradicional empresa de aviação, já que,
técnica e financeiramente, os autos comprovavam na ponta do lápis a
inexistência de justificativas. Com o tempo, também essa estratégia
falhou. Isso porque, ao confiscar os aviões, os militares, na verdade,
automaticamente levantaram a falência imposta. O governo dizia-se
credor de NCr$ 70.931.960,41 (cruzeiros novos, moeda da época). Com os
bens desapropriados orçados em NCr$ 79.684.892,43, o juízo falimentar
reconheceu a dívida como paga e excluiu o Estado do rol de credores.
A
Panair do Brasil, no chão havia quatro anos, surpreendentemente ainda
dispunha de dinheiro para pagar, integralmente e à vista, o restante
dos créditos. Assim, no dia 2 de junho de 1969 entrou com um pedido
irrecusável de transformação da falência em concordata suspensiva, numa
nova tentativa de retornar às atividades. Irrecusável, pois, nos termos
da lei, o pleito era deferido caso o falido se propusesse a pagar 35%
dos débitos à vista ou 50% no prazo máximo de dois anos. Em resposta, a
Procuradoria Geral da União ajuizou – um dia antes da audiência que
decidiria sobre o deferimento da concordata – um executivo fiscal
instruído com uma nova certidão de inscrição de dívida ativa, para
cobrar da empresa outros NCr$ 112.547.499,95 sobre o crédito que já
havia sido extinto por decisão passada. No dia 3 de julho, o governo
baixou o Decreto-lei n° 669, que retirava especificamente das empresas
de transporte aéreo o benefício da concordata. A única aérea na
situação era a Panair.
Essa
nova peça de legislação, promulgada depois da impetração do pedido e
antes do julgamento, foi veiculada pela imprensa como notícia antes
mesmo da oficialização no Diário Oficial e utilizada pelo juiz da 6a
Vara Cível para denegar o pleito. Por conseguinte, a falência foi
mantida e os bens remanescentes postos a leilão no prazo recorde de 90
dias. O produto da venda, pago ao Estado como cobertura da nova dívida.
Durante
15 anos, a falida e a União brigaram nos tribunais por essa questão.
Por fim, em dezembro de 1984, o Supremo deu ganho de causa à Panair do
Brasil e condenou o governo a acertar as contas. Era a abertura
política assegurando a independência da Justiça. Mas, àquela altura,
havia pouco a comemorar. A antiga empresa estava sepultada, seu
prestígio consumido e seus feitos esquecidos ou usurpados. De toda
forma, sem a perseguição implacável do Estado, a Panair conseguiu
levantar a falência em maio de 1995 e, desde então, luta por uma
reparação moral e material por meio de uma série de ações judiciais.
Algo ainda sobrevive. O ronco de seus motores se faz ouvir, seja na
revogação do Decreto-lei 669 em fevereiro de 2005, seja na
confraternização que os antigos funcionários realizam, todo ano, na
data de aniversário da empresa para homenageá-la. Como um comandante
certa vez disse, "a Panair era do Brasil no nome e dos brasileiros no
coração".
Daniel Leb Sasaki é jornalista da IstoÉ Dinheiro e autor do livro Pouso forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar (Editora Record), obra finalista do Prêmio Jabuti 2006.
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