O estado de necessidade ambiental reclama aos juristas e não juristas as soluções para os problemas metajurídicos e intergeracionais. A aprovação do projeto de transposição do rio São Francisco requer a consideração dos interesses coletivos e difusos, mas impõe desafios ao direito, à política e à economia na medida das incertezas científicas e do risco integral de empreendimentos que, direta ou transversalmente, envolvem o meio ambiente. Na doutrina da professora catedrática da Universidade Clássica de Lisboa, Maria da Glória Gárcia, “a ignorância cognitiva não está só do lado de quem é analfabeto ou, mais amplamente, do homem comum, daquele que não é cientista. A ignorância atinge todos, cientistas e não cientistas. Ninguém lhe pode fugir. A sociedade da incerteza é também a sociedade da ignorância”.
No cenário de incertezas se constata o iminente risco de escassez da água, recurso natural considerado bem de interesse público que ocupa um papel de extrema relevância nas políticas econômicas. No ano de 1847, apresentou-se ao imperador Pedro II o plano de transposição para resolver os problemas gerados pela seca do Nordeste e nada se fez. Em 1983, o então ministro Mário Andreazza ressuscita o assunto, mas nada de prático foi feito. A transposição tem por escopo resolver o problema da escassez de água na zona semiárida nordestina, mas o projeto suscita controvérsias quanto aos méritos de sustentabilidade e de uma transposição socialmente responsável e administrativamente proba.
Debatida há mais de um século, a transposição das águas do rio São Francisco é discutida e ainda aponta controvérsias, notadamente quando constatamos a ineficiência administrativa na execução e fiscalização do projeto. A polêmica não está restrita somente aos meios políticos, mas acadêmicos, econômicos, sociológicos e ambientalistas. Argumentos favoráveis ao projeto apontam que a principal motivação para a transferência de água entre as bacias nas regiões áridas e semiáridas é a chamada segurança hídrica, cujo objetivo básico é aumentar o nível de garantia de suprimento de água para as atividades a que se destina.
Empreendimentos desse porte devem obedecer a alguns preceitos essenciais, como: a) a região receptora deve comprovar a escassez de água para o atendimento das suas necessidades; b) os recursos hídricos da região de origem devem ser suficientes para satisfazer a demanda da transferência sem acarretar impedimento ao desenvolvimento futuro dessa região; c) os impactos ambientais ocasionados pela transferência de água devem ser mínimos para ambas as regiões, de destino e de origem; d) os benefícios sociais para a região de destino devem ser compatíveis com o porte do empreendimento; e) os impactos positivos gerados devem ser compartilhados razoavelmente entre as regiões de origem e de destino.
O rio São Francisco, conhecido também como rio da integração nacional, possui um cunho eminentemente importante no cenário político, social e econômico para o Brasil. Considerado o terceiro maior rio do país, com vazão média de aproximadamente 2.850 m³/s, abrange regiões com condições naturais das mais diversas, com um grande potencial agrícola, especialmente para a agricultura irrigada.
O projeto de transposição do rio São Francisco foi aprovado sob o argumento do Estado de necessidade ambiental de algumas regiões do Nordeste. Pretende integrar as bacias do rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional envolvendo os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e parte de Pernambuco, através de sistemas de bombeamento via canais artificiais de água, objetivando promover o uso sustentável dos recursos hídricos na medida em que o semiárido setentrional é uma região de elevado déficit hídrico, pois mesmo sendo uma área com relativa precipitação pluviométrica, possui um solo que não favorece a retenção de águas por força das rochas cristalinas, o que dificulta a formação de mananciais.
A pós a análise do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (Epia), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu ao Ministério da Integração Nacional licença prévia para o projeto. A Agência Nacional das Águas (ANA), em consonância com a Resolução nº 029/2005, que dispõe sobre a outorga preventiva que reserva 26,4 metros cúbicos por segundo de vazão firme, é responsável pela emissão do Certificado de Avaliação da Sustentabilidade da Obra e a outorga de direitos de uso de recursos hídricos.
Na fase de execução do projeto, deverão ser exigidos a apresentação de prognósticos da qualidade da água nos futuros reservatórios; o mapeamento e zoneamento da área de 2,5 km nas margens dos canais, indicando as áreas apropriadas para reassentamento e reforma agrária; e o detalhamento da proposta de construção de passagens de pedestre e veículos. Contudo, a falta de sintonia e diálogo entre os órgãos ambientais provoca uma letargia na execução e fiscalização do projeto de transposição de águas.
Argumentos contrários à aprovação do projeto têm fundamento no impacto ambiental e nos consequentes danos aos interesses difusos e ao direito a um futuro com qualidade de vida e bem-estar. No entanto, há indícios de que a própria população local é responsável pela contaminação das águas do rio. A transferência de água entre bacias pode apresentar problemas que diferem de magnitude de um projeto para outro. Porém, em linhas gerais, é preciso considerar alguns aspectos, como
1- sistema físico: a) quantidade de água – nível; descarga; velocidade; águas subterrâneas; perdas. b) qualidade de água – sedimentos; nutrientes; turbidez; salinidade e alcalinidade; temperatura; substâncias químicas tóxicas. c) implicações sobre os solos – erosão; sedimentação; salinidade; alcalinidade; mudanças em padrões de uso de terra; mudanças da caracterização mineral e conteúdo de nutrientes no solo; indução a terremotos; outros fatores relativos à hidrogeologia. d) atmosfera – temperatura; evapotranspiração; mudanças microclimáticas; mudanças macroclimáticas;
2- sistema biológico: a) ambiente aquático – fitoplânctons; peixes e vertebrados aquáticos; plantas; vetores de doença. b) biodiversidade em geral – animais; vegetação; perda de habitat; encarecimento de habitat;
3- sistema humano: a) produção – agricultura; aquicultura; geração de energia; transporte (navegação); indústrias; recreação; mineração; b) sociocultura – custos sociais, inclusive reassentamento das pessoas; desenvolvimento de infraestrutura complementar; efeitos antropológicos; implicações políticas (Biswas, Asik K. History of hidrology. North-Holland Publishing Co., Amsterdam, 1970, p. 336).
Existe toda uma complexidade de fatores que reclamam uma análise detalhada de cada projeto de transposição, respeitando as comunidades locais, o volume de água dos rios, a biodiversidade da região, a qualidade da água transposta, a economia das regiões envolvidas. Toda e qualquer transposição significará “perdas” para a região doadora e “ganhos” para a região receptora, motivando um natural conflito de interesses. Preliminarmente, deve ser feita a revitalização do rio, o que envolve um conjunto de ações que visam garantir a sustentabilidade desenvolvida na bacia hidrográfica. Tais feitos devem programar o aumento da quantidade e qualidade da água, a recuperação e preservação do meio ambiente, a conscientização e participação de usuários no processo de revitalização e proteção ambiental, a geração de empregos, ocupações de renda, reflorestamento de nascentes, matas ciliares e de galerias, além de tratamento de lixos e esgotos.
A tecnologia de integração de bacias hidrográficas não é uma experiência nova, pois foi utilizada nos Estados Unidos, no Canadá, Líbia, Espanha, África do Sul, Egito, Equador, Peru, China, com o objetivo de interligar bacias superavitárias às bacias deficitárias. Os pioneiros nessa experiência foram os chineses. Milênios antes de Cristo, eles realizaram obras no rio Amarelo. Na Mesopotâmia e no Egito antigo, foram realizadas transposições para levar água dos rios Tigre, Eufrates e Nilo para regiões desérticas vizinhas. É uma prática adotada em inúmeros países como África do Sul, Egito, Equador, Peru, China, Espanha, México, Estados Unidos, Canadá, Líbia, Índia, Argentina, Paquistão, dentre outros, interligando bacias superavitárias às bacias deficitárias. A integração de bacias hidrográficas é hoje uma possibilidade à altura de qualquer país com razoável grau de desenvolvimento.
Semelhante ao atual projeto de transposição do rio São Francisco, o aqueduto Tejo-Segura, na Espanha, transpõe água da bacia do rio Tejo na região centro sul para o rio Segura na região de Murcia, situada no sul da Espanha. Nessa seara, as experiências no Brasil não caracterizam megaprojetos, são ainda incipientes, transformando em polêmica uma solução que poderia resultar no desenvolvimento sustentável do Nordeste. As pressões da sociedade com relação ao problema da água impulsionam os vultosos investimentos nos mais diversos continentes, dada a sua relevância para o desenvolvimento econômico e social. No entanto, nem sempre os bons exemplos são aplicados no Brasil. Do ponto de vista jurídico, o caput do artigo 43 da Constituição Federal de 1988 versa que “para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais”. O parágrafo 2º, inciso IV do mesmo artigo aponta “a prioridade para o desenvolvimento econômico e social dos rios e das massas de água represadas ou represáveis nas regiões de baixa renda, sujeitas a secas periódicas”.
A migração involuntária por força da falta de condições de vida digna no semiárido deve ser mitigada. Esse é um dos objetivos pretendidos pelo Projeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco com as bacias dos rios intermitentes, que envolve o agreste e o sertão de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. No entanto, a eficiência política-econômica-ambiental é condição indispensável para que os resultados sejam venturosos.
Há o argumento de que a transposição do rio São Francisco deve ser realizada para atrair também recursos financeiros como atrativos que visem contribuir para a renda dos estados beneficiados. Em contraposição, há o argumento de que empreendimentos dessa magnitude, envolvendo aspectos sociais, políticos, econômicos e ambientais, sinalizam a necessidade de ações mais integradas e abrangentes que possam realmente levar ao desenvolvimento regional. A água, por si só, não gera desenvolvimento. É necessário produzir racionalmente, implantar sistemas de escoamento da produção, capacitar e educar as pessoas, dentre várias outras ações.
A participação dos atores sociais é indispensável para a aceitabilidade do projeto de transposição, sobretudo pela necessidade de acompanhamento e de fiscalização e do exercício de cidadania por meio dos instrumentos de tutela ambiental como a ação popular, o mandado de segurança coletivo e a ação civil pública.
É indiscutível a iminente necessidade de buscar soluções técnicas para dizimar os efeitos das secas periódicas na região Nordeste, mas é preciso uma certeza de que a transposição seja a melhor, a mais eficaz e a mais segura medida pois, pela teoria do risco integral, o Estado pode ser responsabilizado objetivamente. Os custos do projeto de transposição são elevados, mas os governos têm gastos contínuos com a seca. No entanto, a corrupção e a falta de planejamento estratégico, logístico e financeiro são os grandes vilões do insucesso de alguns empreendimentos públicos no Brasil. A lei de improbidade administrativa e o princípio da legalidade não conseguem intimidar a prática lesiva aos cofres públicos. Dados divulgados na imprensa nacional, em maio de 2013, revelam que algumas etapas da obra da transposição estão abandonadas e que ela extrapolou o planejamento orçamentário. Essa revelação demonstra a total imoralidade administrativa e a violação dos princípios constitucionais que regem a administração pública federal, estadual e municipal e reclama a responsabilização pela ação ou omissão. Os atores sociais, protagonistas dos seus direitos e deveres, assumem a responsabilidade compartilhada com o Ministério Público no dever de fiscalizar a violação dos interesses coletivos e difusos e mitigar a lacuna entre a legalidade e a realidade pois, na visão de Flávio Galdino, “direitos não nascem em árvores”.
Bleine Queiroz Caúla é doutoranda em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; advogada e pedagoga; assessora do projeto Cidadania Ativa (2005-2008) agraciada com o V Prêmio Innovare 2008 na categoria advocacia; presidente da Comissão de Educação da OAB–CE; professora do curso de direito da Universidade de Fortaleza; pesquisadora do Núcleo de Estudos Internacionais da Universidade de Fortaleza.
Graziella Batista de Moura possui graduação em administração de empresas, especialização em marketing e mestrado em administração pela Universidade de Fortaleza; atualmente faz parte da coordenação administrativa do Núcleo de Educação a Distância e exerce também a função docente na Universidade de Fortaleza, com experiência na área de educação, com ênfase em educação a distância e administração.
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