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Reportagem
E o mundo (ainda) não se acabou
Por Flavia Natércia
10/12/2008

Em 1930, Sigmund Freud escreveu, em O mal-estar na civilização, que o homem estava se tornando um deus-prótese, com todas as extensões (“órgãos auxiliares”) criadas – e por criar – pela cultura e pela ciência, sem com isso se sentir mais feliz. Naquela mesma década, Adolf Hitler se tornava uma ameaça mundial, um cometa se chocaria contra a Terra, Orson Welles radiodifundia A guerra dos mundos, de H.G. Wells, e um samba-choro de Assis Valente, lançado em 1938 na voz de Carmem Miranda, ironizava o apocalipse não-concretizado: “Anunciaram e garantiram/ que o mundo ia se acabar/ Por causa disso/ Minha gente lá de casa/ Começou a rezar”.

O mais recente anúncio de mega empreendimento da ciência foi feito quando o supercolisor de hádrons entre a França e a Suíça ia entrar em funcionamento. O medo de que ele pudesse criar um buraco negro que engoliria o planeta levou ao menos uma adolescente indiana a cometer suicídio e muitos ativistas a tentativas de sabotagem. Mais uma vez, a mão descontrolada do “Dr. Fantástico” ameaçava a espécie com a autodestruição. Quando o filme de Stanley Kubrick com esse personagem-título foi lançado, em 1964, a tensão da guerra fria, da “destruição mutuamente assegurada”, do “alerta vermelho” atingira fazia pouco tempo um de seus momentos de clímax, com a crise dos mísseis soviéticos em Cuba (1962). Pairavam no ar o temor e a tentação de que a brilhante “energia que alimenta as estrelas” – segundo o físico Freeman Dyson – fosse liberada.

Em 1972, o Clube de Roma, grupo do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), dos Estados Unidos, formado em 1968, divulgou um relatório intitulado “Os limites do crescimento”. Naquele mesmo ano, a Conferência de Estocolmo pôs em evidência a necessidade de corrigir os rumos do desenvolvimento, até então sinônimo de destruição, problemas ecológicos e desigualdade social. Em 1973, a crise do petróleo parecia confirmar as previsões pessimistas do relatório. Nesse mesmo ano, a primeira bactéria transgênica ( Escherichia coli ) era criada por Stanley Cohen e Herbert Boyer nos Estados Unidos, gerando apreensão.

Ainda no contexto da Guerra Fria, em 1979, o filósofo Hans Jonas perguntava em O princípio da responsabilidade : “Que força deve representar o futuro no presente?” Essa força estaria nos direitos subjetivos das gerações futuras, que implicam embutir uma dimensão de cautela nas ações presentes. O poder dos físicos de manipular o coração mesmo dos átomos colocava o próprio futuro em risco. Antes da física nuclear, porém, coube à química deflagrar temores quanto ao potencial destrutivo da ciência e da tecnologia. O homem se descobria “aprendiz de feiticeiro”.

Veneno no front

Os conhecimentos teóricos e práticos acumulados em química foram percebidos como fontes potenciais de inovação e lucro por capitalistas da Alemanha já na segunda metade do século XIX. Frutos da chamada Segunda Revolução Industrial, quando a ciência foi incorporada como capital pela indústria e surgiram os laboratórios de pesquisa e desenvolvimento nas fábricas, a Bayer e a Hoechst foram fundadas em 1863, a Basf em 1865. No entanto, além de se prestar à fabricação de corantes e outras substâncias úteis, os químicos também não tardaram a desenvolver explosivos e outros agentes, como gases, com potencial para deter, ferir ou matar inimigos.

Pouco mais de trinta anos depois do surgimento das primeiras fábricas químicas, Nicolau II, czar da Rússia, instou 27 nações, na Conferência Internacional de Haia, na Holanda, a procurarem resoluções pacíficas para seus conflitos. Além de estabelecer normas para guerras em terra, proibir bombardeios aéreos e adaptar os princípios da Convenção de Genebra (1864) aos conflitos marítimos, a conferência elaborou uma convenção sobre o uso de armas químicas. O texto diz que os governos signatários se abstêm de usar projéteis cujo objetivo seja disseminar gases asfixiantes ou deletérios. Instruído a preservar a “inventividade” de seu país nessa área, o representante norte-americano foi a única voz dissonante, argumentando ser ilógico banir esse recurso quando outros com potencial semelhante ou maior de destruição seriam permitidos.

Mas a convenção logo foi desrespeitada. A Primeira Guerra Mundial ficou conhecida também como a “a guerra dos químicos”. O potencial de mais de 3 mil substâncias foi testado por pesquisadores de lados opostos; 13 chegaram a ser utilizados e 12 surtiram os efeitos desejados. Mas o agente que mais causou indignação foi o gás mostarda, lançado pela primeira vez contra os aliados em Ypres, na França, em 1917. Com o armistício, em 1918, as vítimas não cessaram de denunciar os horrores a que foram submetidas. Depois da guerra, os químicos tiveram de fazer uma verdadeira campanha para limpar a própria imagem. Na década de 1960, porém, voltaram a suscitar controvérsias.

A química foi parte inextricável da Revolução Verde, que aumentou a produtividade agrícola pelo mundo com base no trinômio adubo-pesticidas-sementes melhoradas. Em 1962, dados sobre os efeitos nocivos do pesticida DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano) foram reunidos e tornados públicos por Rachel Carson em seu livro A primavera silenciosa. O napalm, líquido inflamável desenvolvido pelos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial, e o agente laranja, mistura de dois herbicidas usados na agricultura, que se tornou arma química na Guerra no Vietnã, causaram novamente destruição e horror.

Mal-estar no século XX

Na Segunda Guerra Mundial, foi a vez de a física conhecer o pecado. Resultado do primeiro projeto de big science, a bomba atômica só foi usada em guerra uma vez na história, nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Testes, no entanto, continuaram sendo realizados em diversos lugares do mundo, gerando protestos e debates públicos. O “relógio do juízo final”, estampado na capa do Boletim dos Cientistas Atômicos por mais de 50 anos, desde 1947, representa a proximidade da guerra nuclear. Meia-noite seria o início da guerra. No começo do século XXI, os ponteiros marcavam 23:51. Com a produção de armas nucleares pelo Paquistão, pela Índia, por algumas ex-repúblicas soviéticas e pela Coréia do Norte – e, mais recentemente, com o enriquecimento de urânio pelo Irã –, o pesadelo persiste: o mundo ainda pode se acabar.

Enquanto alguns físicos, como Werner Heisenberg, tentaram se eximir da responsabilidade pela bomba atômica – se não fizessem, outros a teriam feito de qualquer maneira –, Pierre Auger, Albert Einstein, Robert Oppenheimer tomaram iniciativas em prol da paz mundial e da discussão de questões morais pelos cientistas, como o movimento Pugwash. De acordo com o filósofo francês Michel Foucault, o poder nuclear é paradoxal: tão grande, que não pode ser usado. O que não impediu de se gerar uma corrida armamentista que rendeu a Hollywood centenas de roteiros para filmes de todos os tipos sobre ameaças nucleares. Mas o verdadeiro perigo, segundo Foucault, estaria na forma como a biologia se prestaria à gestão da vida. Aldous Huxley concordaria: a física poderia explodir o mundo, mas não revolucionar a vida, tarefa que caberia às ciências biológicas.

Nos anos 1970, o poder de manipulação da vida deu um salto. Fazia pouco mais de 20 anos que James Watson e Francis Crick haviam elucidado a estrutura em dupla hélice da macromolécula de DNA e cientistas já podiam “bricolar” genes entre espécies evolutivamente distantes. Com tesoura e cola especiais, chamadas de enzimas de restrição, os biólogos moleculares puderam misturar propriedades ou características de seres vivos cujos caminhos evolutivos divergiram há muito tempo, como aconteceu entre bactérias, plantas e animais.

O alerta quanto à segurança daqueles experimentos não tardou a soar entre os próprios cientistas em 1972. Pesquisas que envolviam a modificação genética de vírus geravam questionamentos: poderiam criar um novo e mortífero patógeno, como um novo agente causador de tumores? Qual seria o risco para quem trabalhava nos laboratórios? O que aconteceria se fossem liberados no ambiente? Em 1973, no Gordon Conference on Nucleic Acids, a maioria dos pesquisadores da nova área concordou em estabelecer uma moratória para os experimentos cuja segurança ainda não pudesse ser atestada. Em 1974, uma carta de vários pesquisadores encabeçada pelo bioquímico Paul Berg foi publicada na revista Science. Foi então que a imprensa descobriu a discussão sobre a segurança da tecnologia do DNA recombinante, que deixou o foro privilegiado dos pesquisadores para despertar fascínio e temores no público em geral.

Feiticeiro poderoso, aprendiz intimidado

Ao lado de modificações úteis de organismos como plantas e animais domesticados, desfilaram pelo imaginário e pela mídia aplicações temerárias, como a criação de supervírus ou superbactérias para exterminar populações inteiras nas mãos de bioterroristas. Para outros, tratava-se simplesmente de uma transgressão às leis da natureza, em que bactérias e plantas, por exemplo, não cruzam entre si. O debate foi intenso e levou os cientistas a organizarem a Conferência de Asilomar, em 1975, na qual reservaram uma sessão para a imprensa se familiarizar com as novidades. Mas a conferência não sustou a polêmica.

Governos locais, como o de Cambridge, no estado norte-americano de Massachusetts, promoveram audiências públicas sobre o tema ou foram pressionados a agir, como o de Ann Arbor, em Michigan. Em nível federal, 12 leis foram esboçadas nos Estados Unidos, mas nenhuma acabou sancionada. Com as diretrizes estabelecidas pelos institutos nacionais de saúde, a auto-regulamentação da atividade prevaleceu sobre qualquer controle externo. Divulgadas inicialmente em junho de 1976, as diretrizes foram revistas em 1979, quando as exigências para conter a a manipulação da bactéria E. coli pareceram excessivas. Nenhum dos acidentes anunciados se concretizou e novas revisões das diretrizes se seguiram. A partir dos anos 1990, com a sua comercialização, as plantas transgênicas também passaram a suscitar debates, protestos, campanhas de mobilização de consumidores, destruição de lavouras e atentados a laboratórios. A controvérsia se estendeu a todos os produtos das biotecnologias que surgiram desde então: reprodução assistida; medicamentos ou substâncias úteis fabricados a partir de bactérias, plantas ou animais transgênicos; clones, quimeras e clones transgênicos; órgãos para xenotransplante.

Em seu balanço do “breve século XX”, o historiador Eric Hobsbawm diz que não houve século tão penetrado pelas ciências e que tenha ao mesmo tempo se sentido tão pouco à vontade com elas desde a retratação de Galileu. Não houve avanço técnico nesse campo que não fosse acompanhado de uma pincelada pessimista e sombria sobre o futuro. Agora, o futuro se faz presente nas aplicações mais recentes do conhecimento científico, como a biologia sintética e as nanotecnologias, bem como no debate sobre o aquecimento global. Como disse Auger, em relação à física, o feiticeiro poderoso parece fadado a não passar de um aprendiz intimidado diante das consequências de seus atos. O mundo pode ainda não ter acabado, mas, quanto mais conhecimento a humanidade acumula, mais claro fica quanto é delicado o balanço entre a criação e a destruição.