“A
fome sempre foi um convite para mudar o mundo e continua assim”. Paul Roberts (2009)
A agricultura não teria tido tanto
sucesso se os ancestrais humanos nômades não tivessem aprendido e transmitido
aos seus descendentes o conhecimento fundamental da natureza, que permitiu o
cuidado com o manejo das plantas. Durante milhares de anos de coletas, o
caminhar incessante dos antepassados humanos pelos territórios do mundo se
transformou em aprendizado sobre os ciclos de vida das plantas, as fases da
Lua, o poder das chuvas sobre a vida, a gestação das plantas, o milagre de uma
semente, as transformações de biomassa e todos os fenômenos que existem devido
à ação da energia solar transformadora e mantenedora da vida na Terra.
O surgimento da agricultura nos lembra
que existe um profundo pacto da humanidade com a Terra, um pacto de vida. Porém,
a agricultura logo se tornou uma fonte de poder, e o equilíbrio desse pacto foi
afetado. É possível que a primeira riqueza acumulada tenha sido originada pelos
excedentes das plantações de trigo no Egito por volta de 3.500 a.C. Os
excedentes da agricultura, além de garantirem a segurança alimentar, também originaram
um bem que poderia ser trocado, originando a base do comércio. A riqueza
acumulada da agricultura transformou a sociedade, impulsionando a urbanização,
especializando a economia e gerando desigualdade social.
Revoluções científicas e tecnológicas no
campo da agricultura permitiram elevar a produção de biomassa por unidade de
área, principalmente através do controle da influência dos fenômenos naturais
nos ciclos produtivos. Os modos de produção fomentados pela Revolução Verde, orientados
para o mercado, passaram a determinar o que, onde e quanto plantar. O mercado formatou
o sistema agroalimentar global dos dias atuais e os ciclos econômicos passaram
a determinar a produção de alimentos, entrando em conflito com os ciclos da
natureza. Ao priorizar o mercado, e não o indivíduo e suas necessidades de alimentação,
a sociedade moderna se afasta cada vez mais da função original da agricultura, que
era a segurança alimentar.
Uma das consequências mais diretas e fatais
do sistema agroalimentar moderno é a fome de milhares de seres humanos. Os
dados da FAO (Sofi, 2015) mostram que a fome é ainda um desafio diário para 795
milhões de pessoas que habitam, em sua maioria, os países em desenvolvimento. As
metas para reduzir a proporção da fome mundial em 50% até o ano de 2015, de
acordo com os objetivos de desenvolvimento do milênio, não foram alcançadas. A fome é uma das dimensões
negativas mais evidentes e contraditórias do atual sistema alimentar, que causa
também danos ambientais irreparáveis, causadores de grande sofrimento humano no
presente (Schmidhuber e Tubiello,
2007; Galloway et al 2008; Uzogara 2000;
Hanjra e Qureshi, 2010).
Modos de
produção agroecológicos e territórios planejados para garantir segurança e
soberania alimentar
O relatório publicado pelo Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas (Schutter, 2011) identifica a agroecologia
como uma forma de desenvolvimento da agricultura que não somente demonstra
conexões conceituais com o direito humano à alimentação, como também tem
mostrado resultados para um progresso rápido na concretização desse direito
para muitos grupos vulneráveis em diversos países, além de contribuir
fortemente para um amplo desenvolvimento econômico. O mesmo relatório indica
que a agroecologia contribui para a disponibilidade de alimentos, elevando a
produção no campo; reduz a pobreza rural, aumentando o acesso por alimentos de
alta qualidade; contribui para as adaptações em face das mudanças climáticas e
permite a participação dos produtores de base familiar nos processos de
produção e disseminação tecnológica.
A crescente preocupação do uso dos territórios por
modos sustentáveis de produção de alimentos, incluindo os agroecológicos, reaproxima
a humanidade dos primórdios da agricultura, em muitos aspectos, e evidencia a
disseminação de um desejo coletivo por uma vida firmada sobre novos paradigmas
de produção e consumo de alimentos. Enquanto o sistema agroalimentar global
expande suas fronteiras através de transnacionais que fortalecem o agronegócio,
a agroecologia também expande suas fronteiras através de movimentos camponeses
organizados, como é o caso da Via Campesina, uma aliança global de organizações
de camponeses, produtores rurais de base familiar, indígenas, camponeses sem
terra, entre outros atores que representam pelo menos 200 milhões de famílias
espalhadas pelo mundo (Rosset e Martinez-Torres, 2013).
Diferente da compreensão comum, construída
com forte influência da mídia hegemônica, existe uma compreensão por parte dos
movimentos camponeses que uma revolução efetiva do atual paradigma de produção
e consumo de alimentos e a ocupação dos territórios por modos de produção mais
sustentáveis, não consiste apenas na substituição de insumos e adoção de novas
tecnologias, mas sim no desenvolvimento de novas formas de pensar e vivenciar a
alimentação e a produção de alimentos. Através desse entendimento, os
movimentos camponeses constroem as suas ações e se posicionam frente ao nosso
tempo de uma forma revolucionária. O trecho a seguir, extraído de Rosset e Martinez-Torres (2013) nos oferece uma descrição interessante
sobre a definição de “agricultura sustentável camponesa” segundo a Via
Campesina:
“We can find examples of sustainable peasant and
family farm agriculture all over the planet, though the names we use vary greatly
from one place to another, whether agroecology, organic farming, natural
farming, low external input sustainable agriculture, or others. In La Via
Campesina we do not want to say that one name is better than another, but
rather we want to specify the key principles that we defend. Truly sustainable
peasant agriculture comes from a combination of the recovery and revalorization
of traditional peasant farming methods, and the innovation of new ecological
practices… We do not believe that the mere substitution of 'bad' inputs for
'good' ones, without touching the structure of monoculture, is sustainable… The
application of these principles in the complex and diverse realities of peasant
agriculture requires the active appropriation of farming systems by peasants
ourselves, using our local knowledge, ingenuity, and ability to innovate. We
are talking about relatively small farms managed by peasant families and
communities. Small farms permit the development of functional biodiversity with
diversified production and the integration of crops, trees and livestock. In
this type of agriculture, there is less or no need for external inputs, as
everything can be produced on the farm itself (LVC 2010a:2-3)”.
Os princípios da agroecologia integrados ao
planejamento territorial podem ampliar as estratégias de soberania alimentar e redução
dos níveis de pobreza. Tais princípios são especialmente importantes em
territórios onde os impactos socioambientais negativos do agronegócio podem
prejudicar diretamente a vida das comunidades tradicionais e a biodiversidade
local. O camarão marinho da espécie Penaeus
vannamei, por exemplo, é considerado uma commodity alimentícia amplamente
comercializada no mundo, e a expansão de seu cultivo nas regiões costeiras
tropicais tem causado debates e questionamentos sobre a sua sustentabilidade.
Os manguezais, localizados nas regiões tropicais e
subtropicais da Terra, podem ser definidos como uma zona úmida sujeita ao
regime das marés. É um território de transição entre o ambiente terrestre e o
aquático, entre o rio e mar. No Brasil, devido à sua grande relevância
socioambiental, os mangues são considerados áreas de preservação permanente. Existe
uma conexão cósmica de grande beleza entre todas as formas de vida que
aprenderam a sobreviver juntas nos manguezais.
Influenciados pelas fases da Lua e pelo constante movimento vital das
marés, os manguezais do estado de Sergipe garantem a segurança alimentar de um
número expressivo de populações humanas que vivem das atividades extrativistas.
Nos mangues do estado de Sergipe, os princípios da
agroecologia atravessam as propriedades dos camponeses da água que praticam a aquicultura
estuarina (cultivo de organismos aquáticos estuarinos) e nos ensinam lições
importantes sobre as implicações dos modos de produção de alimentos na
soberania alimentar de um território. Estudos multidisciplinares da
Universidade Federal de Sergipe (UFS) no estuário do rio Vaza-Barris, em
Sergipe, mostram que os modos de produção de organismos aquáticos determinam as
interações sociais, a disponibilidade de alimento e as interações dos sistemas
produtivos com o ecossistema estuarino adjacente.
A
aquicultura estuarina desempenha importante papel socioeconômico para as
famílias do estuário do rio Vaza-Barris, SE. Foi observado que a aquicultura no
Município de São Cristóvão é uma prática histórica que antecede o período
salineiro quando era baseada em cultivos extrativistas de espécies nativas de
peixes. Trata-se de uma prática de baixo impacto ambiental e socialmente
inclusiva, que existe desde os tempos coloniais. Há cerca de 100 anos o
território local era dominado por manguezais e estruturas escavadas em terra,
chamadas de viveiros, voltadas para a extração de sal e cultivo
extensivo-extrativista de peixes estuarinos. Após a crise do sal, diversas áreas
de salinas foram vendidas ou doadas para famílias locais de baixa renda e
passaram a ser utilizadas exclusivamente para o cultivo de peixes. Ao final da
década de 1990, os cultivos de camarão marinho da espécie Penaeus vannamei se espalharam pela costa sergipana, ocupando os
espaços antes utilizados para a criação de peixes e convertendo áreas de
manguezal em viveiros de criação de camarão.
A
introdução da espécie de camarão Penaeus
vannamei nos estuários sergipanos instaurou uma nova forma de utilizar o
território pelo agronegócio, associada a impactos socioambientais negativos em
várias regiões do mundo. Os estudos da UFS identificaram uma forte pressão para
o uso do território estuarino para o agronegócio do camarão marinho,
caracterizado pela monocultura e uso socialmente excludente do território, uso
intensivo de insumos e energia além da emissão de nutrientes e matéria orgânica
no ecossistema durante os ciclos produtivos. Tal modelo de produção, conhecido
como método convencional de cultivo, é utilizado em outras regiões costeiras do
nordeste do Brasil. Apesar da forte pressão do agronegócio, também são
praticados no estuário do rio Vaza-Barris modelos alternativos de produção com
impactos positivos sobre a vida das pessoas e sobre a biodiversidade local.
Uma das conclusões dos estudos realizados pela UFS foi
que existem dois modelos distintos de uso do território para a criação de camarões
no estuário do rio Vaza-Barris. O primeiro modo de produção a ser discutido é
praticado por camponeses da água que cultivam o camarão junto com espécies
aquáticas estuarinas de importância regional. Esses camponeses da água são
muitas vezes conectados historicamente e culturalmente ao território e, por isso,
integram redes locais de trocas e consumo de organismos aquáticos originários
dos viveiros, fato que gera benefícios diretos para a segurança alimentar das
populações locais. Os viveiros são manejados de forma a manter uma rica
biodiversidade, logo, esse modo de produção não é focado no monocultivo do
camarão P. vannamei. A elevada
biodiversidade dos viveiros garante uma maior produção de biomassa
diversificada voltada à alimentação humana. A existência dessa rica
biodiversidade é atribuída às práticas sustentáveis de produção que incluem o
uso mínimo (ou o não uso) de insumos, além do povoamento de camarões nos viveiros
ser de baixa densidade. Os estudos mostraram que essa biodiversidade dos
viveiros é fundamental para segurança alimentar das populações locais, e os
viveiros se tornaram refúgios de espécies estuarinas, como o peixe milongo (Gobionellus oceanicus) ou espécies
variadas de mugilídeos (como a curimã).
Competindo cada vez mais por espaço no território
do estuário do rio Vaza-Barris, foi identificado um outro modo de produção de
organismos aquáticos que é estimulado pelo agronegócio e focado na monocultura
do camarão P. vannamei. Este modo de
produção utiliza densidades de povoamento mais elevadas e maiores quantidades
de insumos. O manejo utilizado reduz significativamente a biodiversidade dentro
dos viveiros, diminuindo ou praticamente anulando o desenvolvimento de outras
espécies aquáticas dentro dos viveiros. A comercialização do camarão produzido por
esse modo de produção é realizada principalmente nos grandes centros urbanos,
evidenciando a falta de vínculos do empreendimento com a população local e
indicando que os recursos naturais locais utilizados para a produção do camarão
são deslocados de sua origem, não contribuindo para a alimentação das
populações locais. Esse modo de produção
tem maior potencial para emissão de nutrientes e matéria orgânica no
ecossistema adjacente aos viveiros de produção, causando poluição.
O vínculo cultural e histórico com o ecossistema
local, observado em alguns camponeses da água que vivem no estuário do rio
Vaza-Barris e que praticam modos de produção que propiciam sistemas ricos em
biodiversidade, tem uma função relevante na preservação ambiental dos mangues. Apesar
de não serem devidamente valorizados pelas políticas públicas de proteção ambiental,
tais vínculos são importantes para a preservação do ecossistema estuarino e favorecem
a ampliação das estratégias de proteção ambiental. A identificação dos camponeses da água com o
ecossistema local é expressa no conhecimento do funcionamento do ecossistema,
que foi adquirido ao longo de gerações, no reconhecimento da importância do
manguezal para a vida das pessoas e, em alguns casos, em ações espontâneas de
reflorestamento dos manguezais adjacentes aos viveiros.
Os depoimentos que seguem exemplificam essa
realidade. “Toda uma vida existiu o manguezal, toda uma vida, do
começo do mundo. Pelo o que eu vejo falar mesmo é do começo do mundo, é do
começo do mundo mesmo, que meus avós, de muitos anos...eu tive uma avó que
morreu com 115 anos e já vivia na maré há muitos anos, que era camboeiro,
pescava de camboa na maré, 115 anos...é muitos anos”, comentou um camponês do rio Vaza-Barris
sobre o tempo da existência do mangue. Sobre
a importância do manguezal para a segurança alimentar, ele afirma: “Manguezal é uma coisa de...o manguezal é uma
coisa do futuro da gente, tirar nosso sustento, é uma coisa de muita
autoridade, muita atividade, assim...de muito prestígio da vida da gente,
porque é o que acontece mais da gente aqui, é a sobrevivência de muita gente, a
sobrevivência mais é do manguezal, e...tem muito prestígio mesmo o manguezal”.
A importância do mangue para o município
de São Cristóvão, localizado no estuário do rio Vaza-Barris, é também atestada
pelo camponês: “Sem o mangue aqui em São
Cristóvão é ruim, é ruim, porque sobrevive muita gente da maré, muita gente.
São...aqui os pessoal da maré, eles são pessoal que...é quem ‘guenta’ São
Cristóvão, é quem vive da maré, é quem faz feira, mas melhor aqui é os quem
vive da maré e é onde ‘guenta’ São Cristóvão é o manguezal, é a maré, é a maré.
Mais da metade do povo de São Cristóvão é a maré, sem a maré...o povo tá tudo
derrotado, muita gente tá derrotado aqui em São Cristóvão.”
Pesquisas
em andamento na Universidade Federal de Sergipe pretendem gerar informações
para ampliar a ocupação do território do estuário do rio Vaza-Barris por
sistemas agroecológicos de produção de organismos aquáticos adaptados à
realidade local. Os estuários são áreas de grande importância ecológica e os
princípios da agroecologia são bastante adequados às necessidades de
preservação desses ecossistemas. É importante lembrar que a ocupação dos territórios
pelo agronegócio, no estuário do rio Vaza-Barris, ou em outros locais, não foi
um processo fortuito e inevitável. O mercado determinou os modos de ocupação do
território alheio às externalidades perversas geradas pela apropriação do
território pelo agronegócio. Uma forma de mudar essa realidade é agir
localmente, através da agroecologia sustentada por camponeses e consumidores
engajados na construção de territórios e vidas mais saudáveis.
Juliana
Schober Gonçalves Lima é professora adjunta da Universidade
Federal de Sergipe. jsglima@gmail.com
Referências
Sofo,
2015. FAO, IFAD and WFP. 2015. The state of food insecurity in the world 2015. Meeting the 2015
international hunger targets: taking stock of uneven progress. Rome, FAO.
Schmidhuber, J.; Tubiello, N.
F. 2007. “Global
food security under climate change”. Proceedings
of the National Academy of Sciences of the United States of America. 104
(50). 19703–19708.
Galloway, J.N.; Townsend, A.R.; Erisman, J.W.; Bekunda, M.; Cai, Z.; Freney,
J.R.; Martinelli, L.A.; Seitzinger, S.P.; Sutton M.A. 2008. “Transformation of the
nitrogen cycle: recent trends, questions, and potential solutions”. Science. 320 (5878). 889-892.
Uzogara, S.R. 2000. “The impact of genetic
modification of human foods in the 21st century: A review”. Biotechnology advances. 18(3). 179-206.
Munir, A.; Hanjra,
M.A.; Qureshi, E. 2010. “Global water crisis and future food security in an era
of climate change”. Food Policy. 35
(5). 365-377.
Rosset, P.; Martinez-Torres,
M. E. 2013. “Rural social movements and diálogo de saberes:
territories, food sovereighnty, and agroecology”. International Conference Yale University. Food sovereignty: a critical dialogue.
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