REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Os astros não mentem jamais - Carlos Vogt
Reportagens
Instrumentos aproximam homem do cosmos
Luiz Paulo Juttel
Poesia, cultura e ciência no céu indígena
Susana Dias
Profissionais e amadores no universo da astronomia
Carolina Cantarino
Sob um céu de estrelas
Marta Kanashiro
Mudando as certezas
André Gardini
Galeria de Imagens
Jorge Hönel
Artigos
Perspectivas na área de astronomia
Jacques Lépine
Cosmologia: de Einstein à energia escura
Jaílson S. Alcaniz
A observação de eclipses totais do Sol no Brasil
Christina Helena Barboza
Estrelas, que formam metais, que formam planetas
Helio J. Rocha-Pinto
Desvelo do firmamento
Ana Carolina Pimentel
O rebaixamento de Plutão
Eder Martioli
Resenha
A harmonia do mundo
Rodrigo Cunha
Entrevista
Augusto Damineli Neto
Entrevistado por Por Victória Flório e Yurij Castelfranchi
Poema
Aniversário
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Entrevistas
Augusto Damineli Neto
O astrônomo Augusto Damineli fala de suas descobertas sobre a estrela mais brilhante da galáxia (a Eta Carinae), sobre divulgação científica, do status da pesquisa em astronomia no Brasil e da busca de vida em outros planetas
Por Victória Flório e Yurij Castelfranchi
09/08/2007
Nas palavras de Olavo Bilac: "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso”. Também usando versos do poeta, responderia um astrônomo, no entanto: "Amai para entendê-las: pois só quem ama pode ter ouvido capaz  de ouvir e de entender estrelas". Augusto Damineli Neto é um desses cientistas que se dedicam ao estudo e compreensão da “linguagem das estrelas”. Por sua corajosa empreitada de descobertas sobre a Eta Carinae, a estrela mais luminosa de nossa galáxia, pode-se dizer que ele realmente entende delas. O pesquisador, professor e atual chefe do Departamento de Astronomia do Instituto Astronômico e Geofísico (IAG) da USP entende que cada descoberta abre uma porta para novas pesquisas: “A ciência cria muito mais questões do que respostas, e isso não é diferente com a astronomia”. Especialista em estrelas massivas, Damineli, que é membro do Comitê Diretor do Projeto dos telescópios Gemini, autor de livros, diversos artigos e programas de TV na área de divulgação científica falou, em entrevista a ComCiência, sobre sua rotina de descobertas como astrônomo; o status da pesquisa em nosso país; vida em outros planetas e  popularização da ciência: “É chocante ver que as pessoas ainda usam uma representação mental de oposição entre Terra e céu, a despeito das descobertas feitas ao longo dos últimos cinco séculos”.
   
ComCiência - Como o senhor descreveria a vida de um astrônomo?
Damineli - A vida de um astrônomo é dedicada principalmente à pesquisa. Nas instituições de ensino, ele se dedica também a lecionar e formar outros profissionais. Alguns raros astrônomos também usam parte de seu tempo para divulgar a astronomia para um público mais amplo. A pesquisa é feita, em geral, ao computador, para cálculos teóricos ou análise de dados. A coleta de dados é feita em poucas noites por ano, sendo raras as visitas do astrônomo ao telescópio. Atualmente, na maior parte dos casos, os dados são coletados sem a presença física do astrônomo.  

ComCiência - Suas descobertas sobre a estrela Eta Carinae foram confirmadas há cerca de dez anos, tendo repercussão internacional. O que o senhor descobriu sobre essa estrela?
Damineli - Eta Carinae é uma estrela que se tornou famosa pelo brilho espetacular que atingiu em 1843. Isso ocorreu devido a um evento cataclísmico de grande magnitude, inexplicável. Para entender a natureza dessa estrela, iniciei um monitoramento de sua variabilidade no Observatório do Pico dos Dias, no Sul de Minas Gerais.  Meu interesse foi despertado não pelo evento de 1843, mas pelo fato de que era a estrela mais luminosa de nossa galáxia. Em junho de 1992 ela sofreu um apagão nos “canais” (tecnicamente: linhas espectrais) de alta energia. Olhando para observações feitas por outros autores ao longo de 50 anos, descobri que esses apagões eram periódicos.

.

ComCiência – Como foi sua trajetória de trabalhos com a Eta Carinae, da pesquisa ao reconhecimento? Qual a sensação de fazer uma descoberta importante como essa?
Damineli – Fiz uma previsão de que um novo apagão aconteceria em meados de dezembro de 1997. Embora tenha publicado os resultados numa das revistas mais importantes da área, eles foram contestados por pesquisadores importantes que seguiam essa estrela há décadas. Somente dois pesquisadores americanos, Peter Conti e Mike Corcoran, apostaram em mim. Meus inúmeros adversários diziam que eu tinha colocado uma corda no pescoço, pois Eta Carinae, como todas as outras estrelas gigantes, jamais poderia sofrer fenômenos periódicos. O bom de ter tido adversários poderosos foi que eles publicaram artigos em revistas de ampla circulação, mostrando a teoria deles sobre essa estrela e por que eu estaria errado. Isso me deixava meio encurralado porque eu ainda não tinha uma boa teoria para explicar minha descoberta, nem dados muito bons para sustentá-la. O evento de 1997 aconteceu como previsto e teve destaque mundial. Foi uma alegria muito grande, principalmente porque o sucesso me abriu caminho para diversos telescópios, incluindo o Hubble, e colaborações com meus ex-adversários e os alunos deles. Com mais dados, conseguimos mostrar que Eta Carinae é uma estrela dupla: uma com uma massa aproximadamente 100 vezes maior que a do Sol e uma outra estrela menor, com aproximadamente 30 massas solares. A órbita é excêntrica, de modo que a estrela menor e mais quente se aproxima e se afasta a cada cinco anos e meio da maior. Ao se aproximar dela, ela mergulha em seu vento denso, fica obscurecida, produzindo o apagão.
 
ComCiência - Na sua opinião, quais foram as contribuições científicas mais significativas de brasileiros  no campo da astronomia? Por quê?
Damineli - As mais significativas até hoje foram as do físico Mário Schemberg, que mostrou que as estrelas caminham para a morte quando queimam 10-15% de sua reserva de hidrogênio; as supernovas explodem quando os elétrons de seu caroço central reagem com os prótons, gerando nêutrons, o chamado efeito Urca. Em tempos modernos ocorreram diversas descobertas relevantes, sendo difícil listar todas. Eu destacaria a descoberta de Beatriz Barbuy (IAG) de que nossa galáxia foi enriquecida num primeiro estágio por oxigênio e só depois pelo ferro. Isso teve um papel fundamental para se entender a evolução química do universo.

ComCiência - Atualmente, o governo brasileiro aposta nos financiamentos em parcerias internacionais em telescópios como o Gemini e o Soar. Como o advento desses telescópios muda a pesquisa?
Damineli - Esses telescópios permitem observar astros muito mais fracos do que podíamos fazer com o telescópio do Pico dos Dias (1,6m de diâmetro). O Soar tem 4,1m de diâmetro, o que significa seis vezes mais capacidade de coletar luz que o do Pico dos Dias. Além disso, esse telescópio está localizado em Cerro Pachón, nos Andes Chilenos, onde o Brasil terá direito a fazer observações cem noites por ano. Somar qualidade das imagens ao fundo de céu escuro significa um poder de fogo cerca de 50 vezes maior que o atual. Eu usarei também o Gemini, mas por muito pouco tempo, pois o Brasil tem pouco tempo de acesso a esse telescópio. O projeto com ele será um mapa intengral da nebulosa , como fiz em 2003, quando em 1 hora de observação ele gerou 7 bilhões de medidas.  Com o Soar o projeto é observar uma hora por noite ao longo de 100 noites. 

ComCiência - Qual é sua avaliação para os avanços da pesquisa em astronomia nos próximos anos no país? O Brasil faz pesquisa de vanguarda?
Damineli - Os novos meios observacionais de que dispomos abrem oportunidades para os jovens astrônomos que estão se formando. A abundância de dados e uma formação de primeira linha, beneficiada por uma intensa colaboração internacional certamente gerarão belos frutos num futuro próximo. O Brasil estava na lanterninha da astronomia latino-americana há 30 anos atrás, hoje está na vanguarda. Nós produzimos resultados e formamos astrônomos de nível internacional. O volume da produção é ainda pequeno para garantir uma boa visibilidade mundial. Temos hoje cerca de 300 astrônomos ativos, com mais um pouco teremos poder de fogo suficiente para conquistar uma posição no mapa mundo da astronomia. Isso acontecerá nessa próxima geração de astrônomos.  

ComCiência - O senhor lançou um livro sobre o cientista Edwin Hubble entitulado: Hubble e a expansão do universo. Por que decidiu escrever sobre ele?
Damineli - Esse livro se destina a um público juvenil, mas pode ser lido por gente mais madura também. Eu pretendia mostrar como e porque a vanguarda da cosmologia mudou da Europa para os Estados Unidos nos anos 1900. Para isso usei a biografia de um dos protagonistas da cosmologia observacional, Edwin Hubble. A escolha desse personagem se deve por um lado a seu papel como astrônomo e, por outro, à sua personalidade politicamente nada correta. Isso desmistifica o cientista como necessariamente “sábio” e o coloca ao mesmo nível dos demais seres humanos.  

ComCiência - Como as descobertas de Hubble revolucionaram nossa compreensão a respeito do universo?
Damineli - Ele fez observações metódicas, delimitando claramente as incertezas observacionais. Usou as Cefeidas (estrelas pulsantes) para medir a distância da ”nebulosa” de Andrômeda, mostrando que se tratava de uma galáxia exterior à nossa. O universo a partir de então era composto por galáxias, ao invés de estrelas, como muitos ainda acreditavam. Descobriu a chamada “Lei de Hubble” segundo a qual a luz das galáxias se desloca para o vermelho proporcionalmente às suas distâncias de nós.  Os cosmólogos, incluindo Einstein, logo interpretaram a Lei de Hubble como devida à expansão uniforme do universo. O curioso é que Hubble nunca se rendeu a essa explicação, embora não tivesse outra para oferecer.

ComCiência - No papel de divulgador de ciência, como vê as implicações do conhecimento em astronomia na vida das pessoas?
Damineli - Nós e nosso planeta somos determinados por eventos cósmicos. Nossas raízes estão firmemente plantadas no céu. Temos uma intimidade com o cosmos que precisamos resgatar. É chocante ver que as pessoas ainda usam uma representação mental de oposição entre Terra e céu, a despeito das descobertas feitas ao longo dos últimos cinco séculos. Nossa própria sobrevivência depende de uma visão global de como funciona nosso planeta.  

ComCiência - A astronomia é rondada por problemas que ainda sem solução? As respostas para esses problemas poderiam alterar nossa concepção sobre a realidade?
Damineli - Embora o objetivo da ciência seja encontrar explicações, a cada problema resolvido se abrem inúmeras questões novas. A ciência cria muito mais questões do que respostas, e isso não é diferente com a astronomia. Hoje temos muito mais questões em aberto do que existiam no tempo de Galileu. Felizmente.  Isso nos mostra que a imagem que fazemos do mundo é ingênua e incompleta.  

ComCiência - Uma das questões que permeiam o imaginário popular é a da existência de vida em outros planetas. O astrônomo norte-americano Carl Sagan disse certa vez: “Se não existe vida fora da Terra, então o universo é um grande desperdício de espaço”. Seria plausível admitir a existência de vida em outros planetas? 
Damineli - A vida como a conhecemos na Terra demanda uma pequena quantidade de energia e usa os átomos mais encontradiços do universo: carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e um pouquinho de fósforo, enxofre, cálcio e ferro. Aliando isso ao fato de que a vida se estabeleceu rapidamente na Terra, seu surgimento em outros planetas parece ser uma simples conseqüência de leis químicas que unem esses átomos em macromoléculas. Não se fabricou vida em laboratório ainda, mas a formação de moléculas de DNA não parece requerer um milagre. Com o fato de que existem dezenas de trilhões de planetas só na Via Láctea e dentro do horizonte de visibilidade do universo existem centenas de bilhões de outras galáxias, é difícil imaginar que a vida tenha aparecido somente neste planeta. Outra coisa é detectar vida extraterrestre. Os grandes projetos do século XXI vão procurar sinais de contaminação biológica nas atmosferas de exoplanetas (planetas extra-solares). Olhando para a Terra, notamos que a vida microscópica é a mais abundante e que por mais tempo está por aqui. Assim, os ETs são micróbios para esses projetos.  Não que se descarte que possam existir seres multicelulares, mas a questão é de probabilidade e facilidade de detecção. Os microrganismos fotossintetizantes produziram na Terra a camada de ozônio. Não existe outro mecanismo conhecido para produzir uma camada de ozônio, de modo que um dos sinais de atividade biológica a ser procurado é o de ozônio. O metano também é produzido por microrganismos, mas essa substância também pode ser produzida abioticamente, de modo que só em casos especiais se pode afirmar que ela é um indicativo de vida. A astronomia promete esclarecer essa questão num prazo de uma a duas décadas.