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Reportagem
Entre semelhanças e diferenças
Por Luciana Palharini
10/02/2010

Descentralização do professor como sujeito do conhecimento, relação professor-aluno horizontalizada, trabalho em grupo, valorização da diferença, solidariedade na aquisição do conhecimento e o ensino e a aprendizagem por meio de problemas são alguns dos princípios anunciados pelos pesquisadores que descrevem a Problem-based Learning (PBL), ou Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). Uma proposta pedagógica cujos pressupostos filosóficos têm como raiz o construtivismo de John Dewey e outros autores, como o brasileiro Paulo Freire. Mas, esses mesmos princípios são também compartilhados, em maior ou menor grau, por uma gama de vertentes pedagógicas, como o próprio construtivismo, a pedagogia anarquista, os estudos culturais na educação, a transversalidade, a pesquisa-ação e muitas outras que poderiam ser citadas. Onde estaria, então, a inovação da PBL? O quê a diferenciaria de outras propostas educacionais?

Noção de problema e organização curricular

Seria a questão do aprender por meio de “problemas” a especificidade da PBL? Um artigo – com o título "A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos?" publicado na revista Interface: Comunicação, Saúde, Educação explora essa questão analisando comparativamente a PBL e a Metodologia da Problematização. A autora, Neusi Aparecida Navas Berbel, do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), após uma descrição detalhada de ambas as propostas pedagógicas, aponta que, embora a noção de problema seja chave para as duas vertentes, há uma diferença significativa entre elas.

Para Berbel, na PBL os problemas seriam elaborados visando a aprendizagem dos alunos sobre determinados temas escolhidos por uma comissão designada para compor o currículo. Já na Problematização, os problemas seriam definidos pelos alunos, por meio da observação da realidade, ou seja, “a realidade é problematizada pelos alunos”, afirma. A pesquisadora destaca ainda que a Problematização teria como objetivo a formação social, política e ética dos alunos, “que estudam cientificamente para agir politicamente”, visto que o ponto de chegada da metodologia seria a intervenção na realidade a partir das soluções encontradas pelos alunos sobre o problema em questão. Já a PBL, em sua opinião, visa somente a solução do problema para a aquisição de conteúdos cognitivos pelos alunos.

Além de diferenciar essas metodologias pela análise da noção de problema, Berbel ressalta uma distinção curricular entre as duas. Para ela, a Problematização nem sempre é apropriada para a aprendizagem de todos os conteúdos, funcionando como “uma metodologia utilizada para o ensino de determinados temas de uma disciplina” e, portanto, configurando-se como “uma opção do professor”. Em contrapartida, a PBL seria “uma opção de todo um corpo docente, administrativo e acadêmico, já que as consequências afetam a todos, durante todo o curso”, visto que a proposta direcionaria toda a organização curricular.

Estaria então a singularidade da PBL na proposta de uma organização curricular distinta? Para Moacélio Verânio da Silva, professor da Escola Politécnica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), é a proposta curricular que diferencia a PBL de outras tantas vertentes pedagógicas, visto que ela provoca uma “mudança radical no ensino”. O currículo baseado na PBL apresenta, segundo ele, uma questão inédita: as disciplinas, tal como as conhecemos nos currículos de quaisquer níveis escolares, desapareceriam por completo. “Se as disciplinas continuassem a compor o currículo, a Aprendizagem Baseada em Problemas seria mais uma entre muitas propostas pedagógicas que partem de problemas para criar situações de ensino-aprendizagem, mas não é o caso. Os professores não são donos de uma disciplina, mas orientadores de grupos de trabalho”. Os conteúdos “são visitados várias vezes e aprofundados conforme a necessidade para lidar com determinada situação problemática”, afirma o pesquisador da Fiocruz, e conclui: “A PBL é uma tecnologia, não é uma filosofia. Ela já está pronta e só aplicar e provoca uma mudança profunda. Ela é um currículo.

PBL na educação básica

A maior parte da bibliografia em português sobre PBL trata de ensino superior. Há uma escassez de literatura sobre a PBL no ensino fundamental e médio.  O boletim eletrônico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), publicou uma reportagem tratando do assunto, na qual aborda o trabalho de Moacélio Silva. O pesquisador, que conta com o apoio da fundação, está preparando uma publicação que deverá sair ainda em 2010 sobre a experiência de formação de professores em PBL, realizada por ele no município de Araruama, Rio de Janeiro.

Nos Estados Unidos, de acordo com Silva, existem mais de quatro mil escolas que adotam a PBL em todos os níveis. Não há disciplinas, não há cartilha, elas trabalham através de problemas desde a alfabetização. A mudança no currículo escolar teve início numa comunidade rural no Arizona e foi disseminada do meio rural para as grandes cidades. “Lá, no meio rural, eles perceberam que educar para a resolução de problemas é melhor até para o trabalho, pois lidam com o real o tempo todo”, argumenta Silva.

A dificuldade de inserir a PBL no ensino básico no Brasil, segundo Silva, está relacionada à legislação brasileira. “Estou passando um embaraço ao ouvir dos professores: ‘Olha, Moacélio, isso é muito bonito, mas não vai ser possível porque eu não tenho autoridade sobre a mudança escolar. Nem a minha diretora tem essa autoridade. Isso tem que vir, no mínimo, do governo do estado’”, relata.

No Brasil, diferente do que acontece em países como os Estados Unidos, quem decide os moldes da educação é o governo federal. Ainda que haja diálogos com as instâncias estaduais e municipais, elas estão submetidas às decisões da União e o currículo deve seguir as diretrizes dos “Parâmetros Curriculares Nacionais” (PCNs). O texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, mais conhecida como LDB – em seu Artigo 8º, § 1º – é clara: “Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais”.

Os PCNs sugerem a adequação do currículo conforme as necessidades locais e as diferenças culturais, mas não propõem o desaparecimento das disciplinas como a PBL. Ao contrário, um de seus princípios mais fortes é a interdisciplinaridade e sua proposta para se trabalhar com temas “mais problemáticos” e sociais é através da transversalização, que teria em vista, de acordo com a proposta, “contemplá-los em sua complexidade, sem limitá-los à abordagem de uma única área”. O que está em jogo, portanto, é a abordagem de um determinado problema a partir dos olhares de cada disciplina ou área de conhecimento.

PBL e PCNs

Na opinião de Silva, os PCNs estão longe de serem tão somente “parâmetros” e acabam por ditar um ensino normativo e uniforme para todo o país, ainda que seu texto sugira adequações regionais e culturais. Para ele, esse é o maior entrave para a autonomia curricular do ensino básico. “Nós ainda não temos a liberdade educacional como existe nos EUA, que dá o direito aos distritos. Existem muitos problemas lá, mas existem caminhos para se resolver os problemas porque o schoolboard tem poder de decisão sobre o currículo da escola. Já no Brasil é preciso ir a um monte de lugares: ao Congresso, à Assembleia, à Câmara Municipal. É preciso passar por cada um desses níveis de decisão política, até fazer com que o currículo mude”, comenta o pesquisador.

Embora existam críticas aos PCNs há, também, muitas adesões. Além disso, não há consenso sobre a ideia de que os PCNs e a LDB sejam entraves à participação dos professores e pesquisadores na invenção do currículo escolar. Maurício Compiani, do Instituto de Geociências (IG), da Unicamp, juntamente com outros pesquisadores do mesmo instituto, do Instituto de Biologia (IB) e do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), coordena um projeto de extensão que tem realizado uma parceria entre a universidade e a escola na proposição de diferenças no currículo com base nos PCNs. A proposta, segundo Fernanda Keila Marinho da Silva, uma das coordenadoras e pesquisadoras do projeto, nasceu a partir dos resultados do projeto multidisciplinar “Recuperação ambiental, participação e poder público: uma experiência em Campinas”, desenvolvido na bacia urbana do Ribeirão das Anhumas, iniciativa da Prefeitura Municipal de Campinas e do IAC, que realizou um diagnóstico socioambiental na região nos anos anteriores.

Para Fernanda Silva, o ponto forte do projeto é a possibilidade da produção de um currículo local, contextualizado a partir da realidade socioambiental dos próprios alunos: “Usamos muito o conhecimento dos alunos sobre o rio para criar o currículo em sala de aula”. Essa regionalização e flexibilização do currículo, segundo Fernanda Silva, está de acordo com as diretrizes dos PCNs. Outro foco da proposta está na formação dos professores. “A ideia é que cada professor desenvolva a sua pesquisa em sala de aula. O que tentamos mostrar com isso é que o professor é também um produtor de conhecimentos, e não, simplesmente, um transmissor de conhecimentos. Com base na realidade local, o professor produz um currículo e, por sua vez, produz conhecimento em sala de aula”. O projeto, que tem apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Petrobras Ambiental, teve início em 2007 com a formação de vinte professores de duas escolas públicas estaduais que fazem parte da bacia do Anhumas: a Escola Estadual (EE) Adalberto Nascimento e a EE Ana Rita Godinho Pousa.