Nascida como resposta à Revolução Verde, que
instaurou o modelo agrícola dominante desde o século passado, a agroecologia
vem progressivamente se consolidando como ciência capaz de atuar na produção
sustentável de alimentos com alta qualidade, mantendo a produtividade da terra,
ampliando a diversidade de produtos, valorizando o produtor rural e
beneficiando a população.
Apesar de ser líder mundial em produção
agrícola em diversos segmentos, o Brasil não consegue estender a toda população
os benefícios dessa condição. O que acaba sendo distribuído são os impactos
ambientais e problemas sociais causados, aprofundados ou, no mínimo,
negligenciados pelo agronegócio. Nesse cenário, a agroecologia emerge como uma
ciência que busca corrigir os erros históricos do sistema convencional,
atribuindo pesos equivalentes aos aspectos econômicos, sociais e ambientais do
processo produtivo. Mas não é tão simples defini-la. “É um conceito em
disputa”, diz Carlos Armênio Khatounian, professor de agroecologia da Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo
(Esalq-USP). Com o atual apelo à sustentabilidade, distintos grupos sociais com
distintas perspectivas empregam o termo.
Segundo Khatounian, no Brasil, podemos
identificar pelo menos duas abordagens distintas de agroecologia. A primeira é
a científica, onde são utilizados conceitos e métodos da ecologia (mutualismo,
simbiose, ciclagem de nutrientes, relação predador x presa e sucessão
ecológica, por exemplo) aplicados a contextos de produção agrícola. A segunda
abordagem se dá “no contexto dos movimentos sociais, onde a agroecologia é uma
nova utopia que busca uma convivência harmônica com o meio ambiente,
socialmente adequada”, explica Khatounian.
Uma definição que busca conciliar ambas as
abordagens é dada por Lin Chau Ming, professor da Faculdade de Ciências
Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu:
“Agroecologia é uma ciência que junta as características, tecnologias e atores
que fazem a relação entre as pessoas e o sistema agrícola e ambiental. Não
contém apenas os componentes ambiental e agrícola, mas também o componente
humano. É uma interação entre vários grupos e diversos enfoques em nível
mundial”.
A Embrapa lançou em 2006 o Marco Referencial
de Agroecologia, onde se conceitua agroecologia como abordagem científica e
social. De acordo com o documento, agroecologia é uma ciência influenciada
pelas ciências sociais, agrárias e naturais. Além disso, baseia-se na relação
sinérgica entre o conhecimento científico e o saber popular. “A agroecologia é
um campo de conhecimento transdisciplinar que contém os princípios teóricos e
metodológicos básicos para possibilitar o desenho e o manejo de
agroecossistemas sustentáveis e, além disso, contribuir para a conservação da
agrobiodiversidade e da biodiversidade em geral, assim como dos demais recursos
naturais e meios de vida”, diz o texto.
Na contramão desse esforço de conceituação,
muitas peças publicitárias ou mesmo veículos informativos distorcem os termos.
“Orgânicos”, “sustentáveis”, “agroecológicos”, “naturais” – a confusão não é
pequena. Apesar de ser de base ecológica, a agricultura orgânica é apenas um
dos tipos de agricultura pautados pelos princípios da agroecologia. Também é o
caso das agriculturas natural, biodinâmica, sintrópica e permacultural, assim
como os sistemas agroflorestais, que se baseiam em grande medida em sistemas
indígenas de produção.
O movimento ambiental na agricultura
desenvolveu, ao longo do tempo, diferentes tendências ou escolas. A agricultura
orgânica é uma delas. “O fator em comum é o respeito à natureza e a produção
saudável de alimentos”, ressalta Ming. Ainda que cada tendência ou escola de
agricultura de base ecológica tenha seus próprios preceitos técnicos e
filosóficos, a parceria entre elas, diz o professor da Unesp, é fundamental
para contrapor-se ao outro lado – o do agronegócio –, que é gigante.
Em alguns casos, a produção orgânica
comporta-se como um modelo de agronegócio, ainda que atue baseada numa
perspectiva mais responsável social e ambientalmente. Um exemplo é a indústria
sucroalcooleira, hoje com extensas plantações de cana orgânica – e totalmente
inserida no agronegócio brasileiro. “Acredito que a agroecologia não deveria se
misturar com a visão do agronegócio. É importante que todas as áreas que
compõem a agroecologia - ambiental, social e econômica - sejam manifestas, e não
somente a questão econômica”, ressalta Ming.
Os orgânicos são ainda produtos de luxo por
causa do alto preço, o que limita seu consumo. No entanto, segundo Khatounian,
da Esalq, “o preço tem sofrido muitas alterações, especialmente ligadas à via
como o produto é escoado; em sistemas mais ‘curtos’, em que o consumidor está
mais próximo do produtor, o preço é mais acessível”. A iniciativa “community supported agriculture” (CSA),
que nasceu nos EUA e chegou ao Brasil com o nome “comunidade que sustenta a agricultura”,
ensina pessoas a formar grupos de consumo e estabelecer relações próximas com
os agricultores. O sistema se baseia, essencialmente, em vínculos de confiança.
Outro projeto bastante promissor, na visão do
professor da Esalq, é o Instituto Chão. Com atuação inicial na cidade de São
Paulo, propõe comercializar produtos orgânicos pelo mesmo preço que o
agricultor recebe, cobrando à parte os custos relativos à logística e aos
custos operacionais. “O processo é feito de forma transparente, onde você
sabe o quanto paga além do produto”, diz Khatounian. Com o tempo, o aumento do
número de consumidores vem permitindo uma maior escala de atuação, e o instituto
consegue reduzir os custos logístico-operacionais, o que impacta no preço
final.
Finalmente, as feiras de produtos orgânicos
são uma alternativa bastante viável para obtenção de alimentos diretamente do
produtor e a um custo bem mais baixo que nas redes de supermercados.
Praticamente todas as capitais do Brasil têm ao menos uma feira de produtos
orgânicos. O Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) realiza o monitoramento e
a compilação das feiras a nível nacional e divulga a relação em seu site.
Para o fortalecimento da produção
agroecológica de base familiar e do pequeno produtor é indispensável a
cooperação dos consumidores e sua disposição em buscar adquirir produtos
alimentícios (e agrícolas em geral) produzidos sob a ótica da sustentabilidade
ambiental e social. “No Brasil, a população urbana, e mesmo boa parte dos
produtores rurais, ainda não está consciente disso tudo. Uma das grandes
barreiras é justamente a questão da conscientização”, reforça Ming.
Expansão e limites
Segundo Khatounian, enquanto abordagem
científica, a agroecologia tem se ampliado bastante dentro das escolas de ciências
agrárias. Houve uma expansão da área em termos de professores e grupos de
pesquisa. Passaram a existir, inclusive, cursos específicos para formar
agroecólogos. “Quase todas as faculdades de agronomia têm ao menos um docente
voltado à agroecologia e à produção ecológica, o que se deve, em grande medida,
à demanda de mercado por produtos orgânicos”, afirma.
No entanto, embora essa ciência esteja em
expansão, no geral os cursos de ciências agrárias ainda são muito voltados às
questões do agronegócio. As alunas Nara Lopes, do 4º ano de engenharia florestal,
e Mariana Nunes Cabral, do 2º ano de engenharia agronômica, ambas da Unesp,
dizem que os cursos que realizam são muito restritos a aplicações industriais.
“A agroecologia dificilmente é tratada em sala de aula. Há poucos professores
que lecionam algo na área. A referência maior é o agronegócio”, diz Mariana.
Como uma das possibilidades para abordar o
tema, em 1998, a partir do interesse de estudantes da universidade, nasceu o
Grupo de Agroecologia Timbó, que passou a contar com a coordenação e entusiasmo
do professor Ming. O projeto de extensão universitária possui uma área
experimental de 60.000m², onde há experimentos em sistemas agroflorestais,
bioconstrução, horta orgânica e plantas medicinais.
O grupo, atualmente composto por cerca de 20
estudantes – dos cursos de engenharia florestal, engenharia agronômica, biologia
e zootecnia – mantém parcerias que incluem organizações não governamentais
(ONGs). “É um grupo independente, que oferece um espaço de resistência, onde se
podem discutir questões diversas às abordadas em salas de aula. Democrático e
cíclico, ajuda a construir alternativas de trabalho que envolvam a agroecologia,
capacitando alunos e profissionais na área”, informa Ming.
Incipiente, a Política Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo) foi instituída em 2012. Contando com a
participação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA, extinto neste ano).
“A Pnapo é um movimento que tem que ser apoiado, porque contempla itens que
tentam garantir a continuidade do grande contingente de agricultura familiar
que temos no Brasil”, diz Ming. Na opinião do professor, políticas públicas são
fundamentais para que pequenos agricultores se consolidem.
Agronegócio, bomba-relógio
“O agronegócio consegue alimentar o mundo a
um custo que precisa ser questionado: energético, ambiental, social,
econômico”, afirma Ming. Com relação aos recursos naturais utilizados na
produção agrícola, por exemplo, Khatounian explica que a água disponível para a
agricultura é a que se infiltra no solo e é liberada aos poucos aos cursos d’água. Quando o solo está impermeabilizado, a água
causa enchente quando chove e seca depois. Com a conversão de mais e mais áreas
em produção agrícola e o tipo de tecnologia utilizada, diminui a infiltração e
perde-se a capacidade dos sistemas de armazenar água. “Vários rios do cerrado
de tamanho médio, que se mantinham com a água que infiltrava, estão minguando
ou secaram. A baía do rio São Francisco é uma das mais afetadas”. Ele cita
também o solo: “Nós perdemos solo junto com a água, como quando há a
desertificação ou a salinização, que é quando a água de irrigação vem com sais
que se acumulam no solo”.
O fornecimento de recursos para a
fertilização é outro problema. “Um material muito utilizado são os fosfatos; as
nossas reservas conhecidas são limitadas e finitas. É um drama bem sério. Outro
drama são os adubos de nitrogênio que gastam muita energia para serem
produzidos, e estão ligados a refinarias de petróleo”, analisa o professor da
Esalq. Ou seja: se houver crise energética haverá crise de fertilizantes
também. Também é notória a questão dos pesticidas. Estes seguem o fluxo da água
e acabam atingindo todos os ambientes do mundo. “Hoje tem um problema no Ártico
de perda de fertilidade de ursos polares, associada a pesticidas e poluentes
industriais que se concentram em peixes e depois focas, chegando aos ursos”.
Também ocorre isso com os inuítes, que se alimentam de focas.
“A agricultura convencional anda numa rota de
colisão em que os efeitos são menos visíveis em áreas de melhor dotação
natural, solo de melhor qualidade e chuva melhor, onde se sente menos o
problema”, diz Khatounian. No entanto, nas áreas marginais – menos dotadas de
recursos naturais – o problema é mais percebido. “Não temos como manter esse
sistema por muito tempo.”
Outro problema está relacionado aos hábitos
de consumo. Antigamente, não era comum comer carne todo dia – consumia-se
poucos produtos de origem animal (POAs), principalmente em virtude do preço e
dificuldade de acesso. Com o aumento do poder aquisitivo, mais pessoas passaram
a comprar POAs, como marcadamente ocorreu em países como China e Índia. “Como o aumento da renda na China,
aumentou-se muito a produção de animais (porco e frango) em sistemas
intensivos, abastecendo-os com ração produzida em outros países. A expansão da
soja no cerrado é o que propicia o aumento do consumo de POAs na China”, diz Khatounian.
“Quando se olha tudo isso, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
a Agricultura (FAO) estima que cerca de metade dos grãos produzidos no planeta
vai para a alimentação animal. O planeta não tem condição de bancar – nem com
transgênicos, nem com orgânicos, convencional, nem nada – um consumo crescente
de POAs. Esse é o drama mais sério”, avalia.
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