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Artigo
O coração da educação e a educação do coração
Por Por Juan Martín López Calva / Tradução Simone Pallone e Milagros Varguez
10/02/2012

Da moda à reivindicação

“Está na moda falar sobre valores na educação. Em minha opinião não é uma moda, é uma reivindicação, é o desejo de recuperar algo essencial que temos abandonado: a função formativa da escola. Essencial porque ninguém pode educar sem valorar, porque todo o ensino é direcionado para determinados fins que considera valiosos para o indivíduo e a sociedade” (Latapí, 2001:59).

Na realidade, está na moda falar de valores na educação. Se revisarmos os documentos institucionais, as missões e visões da maioria das escolas e universidades; se depositarmos atenção à publicidade das instituições educativas e escutarmos os discursos dos professores, diretores e funcionários do sistema educativo, encontraremos com muita frequência afirmações que destacam a formação de valores dos estudantes e a preocupação e orientação – real ou declarada – dos educadores e dos centros educativos por essa dimensão da educação, que era ignorada, ou até rejeitada há alguns anos.

Uma análise da literatura na área de pesquisa em educação, dos anos oitenta do século passado, daria conta da escassez de estudos, teses, apresentações ou pesquisas científicas sobre o tema dos valores. A tradição secular do sistema educativo mexicano impedia que esse tema fundamental permeasse os currículos, as práticas educativas e as pesquisas sobre o tema com o argumento de que educação com base em valores implicava necessariamente uma relação com o ensino religioso.

Latapí descreve anedoticamente essa oposição ao tema dos valores, na referida década, a partir de sua experiência como assessor do secretário de Educação, Fernando Solana, ao registrar o ocorrido em uma reunião na qual propôs o tema dos valores como central na agenda educativa e foi refutado pela intervenção de outro assessor que afirmava que abordar o tema dos valores era contrário ao artigo constitucional terceiro, e que isso poderia “abrir as portas para os valores religiosos” na escola, apesar de que, como assinalava Don Pablo nessa reunião, o artigo terceiro “abundava em valores” como a dignidade da pessoa, a integridade da família, a democracia como forma de vida etc. (2009:146).

Mas agora a situação é outra. A moda da educação em valores invade o sistema educativo nacional, embora pelos fatos não tenhamos muitas evidências de que essa tendência tenha resultados. O ressurgimento do tema no cenário educativo se deve a muitos fatores, sobretudo aqueles relacionados com a crise civilizatória que estamos padecendo e que tem manifestações em todos os âmbitos de nossa vida. Sem dúvida, mas um dos motores fundamentais para que “a moral retornasse à escola” no México foi a preocupação e o trabalho sério e sistemático de pesquisa e difusão de um grupo de acadêmicos que se conscientizaram sobre a relevância dessa dimensão da educação. Entre esses pesquisadores pioneiros encontram-se pessoas de prestígio como Sylvia Schmelkes (1995, 1996) e, claro, de maneira central, Pablo Latapí, que fez da ética na educação um de seus temas centrais de estudo e reflexão filosófica.

Sem dúvida, é cada vez mais necessário que passemos da moda à resposta à reivindicação social que está pedindo de maneira urgente que o sistema educacional ponha em foco de maneira séria, sistemática, integral, transversal e eficiente a educação em valores para as novas gerações.

A violência que tem se apoderado de nossas ruas e suas complexas raízes estruturais, mas acima de tudo a cultura distorcida na qual se apoiam essas estruturas, estão nos dizendo que temos que fazer algo a partir da educação que se oferece na família, na escola, na universidade e nos meios de comunicação de massa, para responder a essa situação.

Isto porque ninguém pode educar sem valorar e, hoje, a reivindicação que parecemos não escutar os educadores, nos diz que estamos, coletivamente, valorizando, de maneira inadequada, que uma cultura que põe acima do ser humano a economia, a política partidária, a riqueza, o poder, a aparência e o conforto é uma cultura que requer uma radical reforma moral, uma conversão ética que nos abra os olhos ao que verdadeiramente pode “salvar a humanidade, realizando-a”, nesses tempos obscuros que vivemos, esta “era de ferro planetária”, como a chama Morin (2003).

Por isso é necessário passar da moda à reivindicação e da reivindicação à ação, recordando persistentemente esse legado de Latapí porque, como dizia Rosario Castellanos:

“Me lembro, nos lembramos.

Esta é nossa maneira de ajudar a que amanheça

sobre tantas consciências manchadas

sobre um texto furioso, sobre uma grade aberta

sobre o rosto amparado por detrás da máscara.

Me lembro, nos lembramos.

Até que a justiça se sinta entre nós”.

(Rosario Castellanos, fragmento de Memorial de Tlatelolco)

O coração da educação

“Em outro substrato da pessoa, mais misterioso e esquivo, se desenvolvem forças e processos, amores, atrações, afinidades, solidariedades, esperanças, e aí se abre a possibilidade – tênue, mas real – da decisão livre e de ordem moral. Chamamos a esse substrato de pessoa, a falta de termo melhor, o campo dos valores. É o coração da educação”. (Latapí, 2001:59).

O campo dos valores é o coração da educação porque é aí, nesse substrato “misterioso e esquivo”, impossível de se estudar cem por cento empiricamente, que se está jogando a possibilidade da liberdade humana efetiva, ou seja, a capacidade real de autodeterminação dos sujeitos, dos grupos e da sociedade como um todo, no meio dos múltiplos condicionamentos que têm todo o humano. O espaço para o desenvolvimento da “autonomia dependente”, cada vez mais autonomia e menos dependente, mas sempre sujeita a esses fatores biológicos, psicológicos, sociológicos, econômicos, religiosos, etc, é o espaço dos valores. É nessa pequena ou maior margem de manobra onde se define o que somos, o drama da vida pessoal e o drama da humanidade como coletivo no “instante de seu ser que é todo o tempo” (Lonergan, 1999).

Este terreno onde se desenvolvem multiplicidade de forças e processos não está desligado, como foi levantado erroneamente em nossa cultura ocidental e sua lógica simplificadora, do campo do conhecimento, e, portanto, do currículo geral de formação em conteúdos, habilidades ou competências teóricas e práticas nas distintas disciplinas. O juízo de valor está intrinsecamente ligado ao juízo de fato e não separado dele, afirma Morin (1999), porque o juízo de fato que surge do conhecimento é sempre “responsabilidade de quem o afirma” (Lonergan, 1999) e todo conhecimento tem implicações éticas para o indivíduo que conhece e para o contexto sócio-histórico no qual se produz esse conhecimento.

De maneira que o coração não está dissociado do centro do organismo, e muito menos do cérebro, pelo que quando Latapí fala dos valores como o coração da educação não está falando de abandonar a educação em conteúdos e competências disciplinares ou profissionais, e não está implicando, tampouco, que basta que se façam adições aos planos de estudo para incluir matérias de formação de valores para conseguir atender essa reivindicação urgente; contudo, valorizava como positiva a inclusão do assunto da formação cívica e ética no currículo oficial apesar dos erros que, em seu ponto de vista, continha (Latapí, 1999).

Trata-se de considerar o campo dos valores como o coração da educação, entendendo o coração como o órgão que processa, redimensiona, “oxigena” e distribui as aprendizagens de todos os tipos feitos na escola para dar-lhes um sentido na existência pessoal do educando e para torná-los relevantes para a transformação da sociedade e para esse indivíduo que se está educando.

Isto porque, como sujeitos eco-ego-auto-exo-organizados (Morin, 2003), somos um todo inseparável em que a dimensão do significado e o valor articula todo o aprendido. Porque como sujeitos conscientes (Lonergan, 1988) temos estruturalmente a necessidade de valorizar o que aprendemos e descobrir seu significado ou insignificância para nosso projeto existencial e o projeto social do qual fazemos parte de maneira inevitável.

Latapí concebe essa integralidade na qual escreve acerca da educação em valores e, por isso mesmo, apela a uma busca de conhecimento interdisciplinar (psico-sócio-filosófico-pedagógico) dessa dimensão humana e das concepções teóricas que fundamentem a ação educativa nesse campo, assim como das propostas metodológicas para tratar de fazê-lo operativo na aula (2001).

A partir dessa visão integral do ser humano – e da concepção da finalidade da educação como o esforço sistemático para “fazer melhores os homens” (2001: 49) – é que o tema da ética na educação e sua operacionalidade, o que chamamos de “educação em valores” (na falta, como diz Latapí, de melhor termo), se converte em um eixo central em sua obra. Essa visão surge da convicção, experimentada pessoalmente, estudada teórica e filosoficamente e testemunhada por sua própria vida, de que existe em todo ser humano este “substrato misterioso e esquivo” que faz com que surja a decisão livre; que essa decisão livre se converta inclusive em uma luta por construir, preservar, aumentar, estender ou recuperar a liberdade que para muitos é negada no mundo atual, e que haja vidas que gritem o que poeticamente expressa Miguel Hernández:

“Para a liberdade, sangro, luto, sobrevivo.

Para a liberdade, meus olhos e minhas mãos,

como uma árvore caudal, generosa e cativa,

dou aos cirurgiões...

...

Porque onde umas bacias vazias amanheçam

ela colocará duas pedras em vista futura

e fará que novos braços e novas pernas cresçam

na carne talhada...”

(Miguel Hernández, fragmento de Para la libertad)

Sabemos pouco

“Falemos com franqueza: se o essencial de nossa tarefa de educadores é tratar de fazer melhores os homens, devemos confessar com honestidade que pouco sabemos de como fazê-lo...”(Latapí, 2001:59).

Sabemos pouco acerca de como “fazer melhores os homens”, dizia Latapí em sua conferência da cátedra “Fim de milênio”, na Universidade Autônoma de Novo León. Sabemos pouco sobre a ética na educação e de como tornar operacional uma ética determinada através de abordagens metodológicas para educar em valores.

Algo se tem avançado nesses anos a partir do retorno da preocupação moral para a escola. No México e em todo o mundo se tem experimentado avanços no que sabemos em teoria e no que fazemos na prática. No campo teórico, além das correntes que podemos considerar clássicas – das que percebe Escámez em sua obra já clássica O ensino das atitudes e valores (s/f) (informação ou ensino de valores, a clareza de valores e o razoamento moral de Kohlberg) –, tem se desenvolvido alguns modelos pedagógicos relativamente novos e com intenção de oferecer maior integralidade, como aqueles que destaca Payá (2000) (projeto de vida e desenvolvimento da personalidade moral), que têm gerado tentativas de instrumentação didática como a “serviço de aprendizagem” (Puig e Palos, 2006) ou o desenvolvimento do autoconhecimento dos educandos e sua visão de futuro através de planos de vida (Payá, 1992).

Estes últimos enfoques postulam a necessidade de uma maior integralidade da formação de valores, superando a visão predominantemente racional do enfoque de Kohlberg e tratando de considerar o educando e sua dimensão de valores em sua dimensão afetiva e na visão reflexiva sobre sua própria existência, mais que no esclarecimento dos valores abstratos ou princípios éticos universais, no caso de Payá, e de sua inserção em uma comunidade humana concreta para melhorar suas condições de vida, no caso de Puig e Palos.

Contudo, essas intenções de construção teórico-prática de enfoques de educação em valores mais adequados ao novo conhecimento sobre a aprendizagem dos estudantes, e as novas concepções dos valores na educação em sociedades abertas, plurais e democráticas, não têm sido suficientemente trabalhados no México, onde os programas e textos de formação em valores de uso cotidiano têm, todavia, muito do enfoque de ensino de valores, embora este ensino ou informação se proponha através de meios dialógicos, ativos e participativos.

Pouco sabemos ainda sobre como educar em valores e, infelizmente, os trabalhos na área de educação e valores (área 6 do Comie – Conselho Mexicano de Pesquisa Educativa) mostram o predomínio de pesquisas empíricas sobre os valores declarados por estudantes professores em diversos níveis , ou sobre os valores a ensinar nos planos de estudo, assim como acerca das leis e políticas sobre educação em valores em nosso sistema educativo.¹ Na realidade, se bem que o relatório parcial do estado do conhecimento 2002-2011 dessa área temática, apresentado no XI Congresso Nacional de Pesquisa Educativa, mostra que o número de trabalhos – apresentações, artigos, livros, capítulos de livros e teses – tem crescido consideravelmente a respeito do estado do conhecimento anterior (o número de trabalhos tem crescido exponencialmente até chegar a mais de 900 na década passada, principalmente artigos em revistas arbitradas e em apresentações ou livros coletivos, embora haja um bom número de reflexões que não são nem de pesquisa empírica nem construção do conhecimento teórico), esses trabalhos seguem sendo, em alta porcentagem, indagações sobre os valores que se ensinam, os valores que se pretendem inculcar nos estudantes por parte dos docentes, currículos institucionais e documentos normativos.

A esse respeito, se bem que a maioria dos trabalhos segue movendo o campo das visões ontológicas ou metafísicas dos valores e nos enfoques didáticos de convencimento ou ensino, se destacam algumas exceções, como o caso da pesquisa de Fierro y Carbajal (2003), que parte de um marco teórico sustentado em abordagens filosóficas e psicológicas do tema e constrói uma maneira nova de indagar a oferta de valores dos docentes de primeira ordem no estado de Guanajuato. Ou um par de teses de doutorado que exploram respectivamente o enfoque da sociologia fenomenológica de Schutz (Benítez, 2011). Para cercar-se da compreensão da forma com que os universitários constituem-se como sujeitos morais; e o enfoque de autoapropriação de Bernard Lonergan (Martínez, 2009) como perspectiva teórica para descobrir perfis de tomada de decisões também para estudantes universitários, e apontar para uma “pedagogia das decisões”.

No nível de educação superior regular, Ramírez Hernandez (2011), em uma tese de doutorado em processo, se propõe a construir e validar um instrumento para medir o grau de desenvolvimento de um raciocínio moral em bacharéis do estado de Aguascalientes com o método de equações estruturais. É outra tentativa interessante que trata de sair do enfoque de imprimir valores e parte de outra visão ética, fundamentando-se na perspectiva de raciocínio moral de Kohlberg, se aproxima de uma maneira totalmente quantitativa à dimensão moral dos estudantes, embora coincida com os trabalhos anteriormente citados em colocar o problema dos valores a partir da tomada de decisões.

No nível da educação básica, mas estudando um público muito específico – filhos de trabalhadores migrantes – Bustos (2011), em outra tese de doutorado da Universidade Autônoma de Morelos constrói um trabalho que estuda a moral a partir do ângulo emergente no México nesse período (2002-2011) de “formação para a cidadania”. Esta é outra perspectiva teórica e pedagógica que está começando a ser usada e a tomar força na investigação do tema moral, mas ainda falta explicitar de maneira mais clara sua vinculação com o tema da educação em valores para superar a ambiguidade que destaca Latapí na conferência citada de 2001, na qual ele aponta, com acerto, que educação cívica não é sinônimo de educação em valores. Essa tese apresenta também uma contribuição relevante que é o olhar a partir da interculturalidade. Se queremos saber mais sobre o tema dos valores em educação, é indispensável compreender adequadamente o conceito de cultura expandido como propõe Lonergan (1988), como o conjunto complexo de significados e valores que determinam os modos concretos em que um grupo social vive.

Estas poucas teses, e alguns estudos teóricos, todavia muito escassos, que levam a repensar os fundamentos éticos a partir dos quais se está olhando a educação em valores (introduzindo autores com visões mais acordadas a este mundo global, marcado pela incerteza e pela pluralidade, como Edgar Morin y Bernard Lonergan) (Lopez-Calva, 2009), embora parecem confirmar a ideia de que sabemos pouco sobre o porquê e como a educação em valores, mesmo que pareça pressagiar um horizonte de busca cada vez mais concorrida e focalizada no tema.

Sabemos pouco, e o pouco que sabemos não chega a ser conhecido pelos atores da educação. Os docentes e diretores escolares falam do tema da educação em valores muitas vezes sem haver estudado as abordagens existentes e os trabalhos que se produzem em nível nacional ou internacional para instrumentar essa dimensão e a da educação, e muito menos tomando uma postura clara sobre o tema.

Mas o problema de fundo é mais grave ainda, e aqui volta a surgir com urgência a obra de Latapí e suas entradas para a educação mexicana: o problema fundamental é que a preocupação dos docentes, diretores, funcionários e, ainda, desenhadores curriculares e autores de textos sobre o tema, é exclusivamente prática e reduzidamente prática. Parece que o problema é encontrar um método, à maneira de receita infalível, para a formação de valores, e que esse método seja acompanhado de materiais, técnicas e instrumentos que resolvam o problema sem a necessidade de aportar nada por parte dos educadores.

Neste cenário, vive-se uma autêntica confusão e se cai em um ecletismo na formação dos valores porque não se está dando à filosofia, e à ética entendida como filosofia moral, o papel que lhe corresponde para sustentar todas as mediações e aplicações didáticas que possam ir se criando. A preocupação de Latapí em todos os temas educativos, como pioneiro da pesquisa em educação no país, foi sempre a de estudar o fenômeno educativo em toda a sua complexidade, o que implica em trabalhar de maneira interdisciplinar. No campo dos valores seria necessária, então, uma investigação que considere a entrada da psicologia, da sociologia, da pedagogia, da didática, da teoria curricular e, de maneira muito relevante, da filosofia.

Colocar em diálogo essas disciplinas e não negligenciar a contribuição da filosofia – que infelizmente segue considerando-se como alheio à pesquisa (investiga-se somente se for um estudo empírico) – é essencial para continuar com o exemplo que o mesmo Latapí nos fornece com seu trabalho. Faltam filósofos da educação que se dediquem a pesquisar novas abordagens éticas que possam responder aos tempos atuais e derivar em propostas de instrumentação didática para uma educação em valores à altura dos tempos que se vive.

Isto porque, o mistério se mantém vivo e as perguntas seguem sendo atuais. Como afirma José Emilio Pacheco:

“O mistério que tu eras para mim

E eu sou para ti

E todos somos para todos...

Por que atuamos assim?

Por que chegamos

A este momento inexplicável

(que é hoje e sempre)

Supera-se quem você é e quem sou.

Saiba porque você é e porque sou,

A vida perderia sua intensidade lacerante.

Deixaria de ser o que é de verdade:

O enigma sem fundo.”

(José Emilio Pacheco, fragmento de Enigma)

Da lei ao espírito

“Como se formam valores? Sabemos muito pouco... não se faz ensinando mandamentos e convencendo a cumprir a lei eu diria exatamente o contrário: é ensinar a ver além da lei... A moral é ensinar às crianças e aos jovens a viver pelo espírito e não pela lei...” (Latapí, 2001:63).

Um aspecto que parece claro, hoje em dia, para a grande maioria dos atores da educação e para amplos setores da sociedade, é que se não sabemos muito sobre como se forma em valores, sabemos que não se educa moralmente mediante o ensinamento de mandamentos ou o convencimento de cumprir a lei. Como afirmava Latapí, hoje é claro que a educação moral tem que ser direcionada para que os jovens aprendam a viver “pelo espírito e não pela lei”. Passar da “ética da lei para a ética da humanização” (Lonergan, 1999), ou da “moralização” à ética da compreensão humana (Morin, 2005), é fundamental para uma educação em valores que esteja à altura dos nossos tempos.

Esta clareza da maioria dos teóricos da educação e de muitos educadores – docentes, diretores, funcionários, pais etc – tem que seguir trabalhando até que se converta em uma convicção social efetiva em todas as famílias, escolas e universidades do país. Contudo, existe e se dá nos fatos o risco de interpretar mal essa “educação para viver pelo espírito” ou essa “ética da humanização”. Esse erro de interpretação, próprio dos “tempos líquidos” que vivemos (Bauman, 2007), leva ao efeito pendular da educação dogmática à educação relativista, incluindo também a baseada em valores.

Educar para a humanização ou para transcender o cumprimento da lei não significa educar para que cada criança ou jovem tenha o que, de maneira meramente subjetiva, lhe pareça adequado, ou inclusive pragmaticamente útil para a sua vida. Formar para “viver pelo espírito” implica um esforço sistemático, comprometido e eficaz pela educação da liberdade dos estudantes (López-Calva, 2007). Porque como todos os dinamismos humanos, a liberdade também é educável. Todos os seres humanos nascem essencialmente livres, mas não nascemos nem necessariamente vivemos como seres efetivamente livres, ou seja, como seres capacitados pessoalmente e habilitados socialmente para nos autodeterminarmos entre os condicionamentos de todo tipo que existem na vida de todo ser humano.

A liberdade efetiva, ou seja, a autonomia dependente (Morin, 2005) ou a capacidade real de autodeterminação (Lonergan, 1988) é algo dinâmico que se constrói, se amplia ou diminui dependendo das decisões que se vão sendo tomadas na vida, das circunstâncias e estruturas socioeconômicas, políticas e culturais em que se vivam, inclusive de fatores aleatórios ou inesperados.

A capacidade de ser livre efetivamente é algo que se constrói no nível pessoal e social. Tornamos-nos livres a nós mesmos dependendo da maturidade e autenticidade com que vamos tomando nossas decisões, e contribuímos para fazer livres os demais na medida em que somos capazes de contribuir com a construção de uma autêntica “questão de ordem” social que respeite a dignidade de todos (López-Calva, 2009).

De modo que educar para a compreensão humana, para “viver pelo espírito” transcendendo o mero cumprimento da lei, é um trabalho que requer da construção progressista de uma “pedagogia das decisões” (Martinez, 2009) que se tenha educandos cada vez mais atentos, inteligentes, razoáveis e responsáveis no que escolhem, porque ao escolher estão escolhendo a si mesmos e estão escolhendo o tipo de sociedade e de humanidade em que querem viver (Savater, 1997).

A visão de educação em valores como educação da liberdade é uma contribuição que poderia nos levar a uma melhor compreensão da ética na educação a partir de uma visão humanista completa (López-Calva, 2009) e a instrumentar criativamente, sem pretender buscar receitas, mas com a possibilidade de ter a clareza em relação às linhas estratégicas comuns para uma educação moral apropriada para a sociedade, marcada pela pluralidade e a incerteza em vivemos, que é uma das dificuldades estruturais que destaca Latapí.

Educar para a liberdade implica uma busca constante de autenticidade humana e de consistência entre as opções que se tomam e as consequências dessas opções nos aspectos pessoal, familiar e social. Implica em formar pessoas capazes de viver a partir de suas próprias convicções, como o fez Heberto Padilla em sua vida e que diz em sua poesia:

“Diga a verdade.

Diga ao menos, tua verdade.

E depois, deixa que qualquer coisa ocorra:

que te rompam a página querida,

que te tombem a pedradas a porta,

que a gente se amontoe diante de teu corpo

como se fosse um prodígio ou um morto.”

(Heberto Padilla, fragmento de Poética)

A educação do coração

“...haveria que começar desde o princípio: com a formação em valores dos professores. Se eles não realizam um exercício de introspecção sobre seus valores mais fundamentais, começando por sua autoestima, sua ação educativa com os alunos nesses aspectos serão meramente formais...” (Latapí, 2009:148).

Se os valores são o coração da educação, a educação do coração tem que ser o eixo sobre o qual se articule a formação integral das crianças e jovens, a saber, a linha de sustentação sobre a que se armem os planos de estudo e se definam as competências a desenvolver, os conhecimentos a explorar, as perguntas a realizar, as atividades curriculares e extracurriculares a propor no sistema educativo.

Porque a apreensão do valor é algo que ocorre em um tecido afetivo das pessoas e não em sua razão racionalmente?. Como afirma Vertin (1995): “o insight deliberativo é um ato de cognição afetiva...”, e nesse sentido a educação em valores – entendida como aqui se propõe: como educação da liberdade – é uma educação do coração, a saber, uma educação do dinamismo consciente humano, que leve os educandos a uma tomada de decisão que, a partir de sua experiência vital e de sua compreensão inteligente e crítica das realidades em que vive, se guie por essa apreensão do valor, que ocorre nos sentimentos.

A realização da formação para “viver pelo espírito” se dará quando aprendermos como promover probabilidades reais de emergência desses “atos de cognição afetiva”, dessas experiências de apreensão de valor que fazem com que a vida se oriente para o que realmente vale a pena para cada um de nós e para todos.

Esta é uma abordagem pouco conhecida e explorada no âmbito da educação no México e no mundo, que requer esforços coletivos de investigação filosófica e empírica no campo educativo e um diálogo entre a filosofia da educação e as ciências da educação (desde a investigação em neurociências até a contribuição da antropologia da educação, a sociologia da educação, a psicologia educativa e inclusive a economia da educação) para saber cada vez mais sobre a formação dessa dimensão misteriosa e nunca alcançável do todo que é a liberdade humana, e seu uso mais ou menos responsável no nível individual e coletivo.

É necessário primeiro ter em conta que a educação em valores é uma educação do coração, entendida no sentido complexo e amplo como uma educação para a diferenciação, integração e apropriação da estrutura consciente humana por parte de cada educando a partir, não de teorias ou ensino de normas ou respostas morais – porque no âmbito dos valores, como afirmou Melchin (1993), podemos “viver com as respostas corretas, mas as perguntas erradas...” – mas do exercício constante de introspecção individual e grupal sobre como e em que condições se tomam decisões realmente livre e responsáveis em cada âmbito da vida humana, e como podemos voltar nossos sentimentos cada vez mais inteligentes, razoáveis e responsáveis para tornar cada vez mais autêntica essa tomada de decisões (López-Calva, 2006).

Este exercício constante de introspecção dos estudantes somente será possível se começarmos com a educação do coração, com a educação para a liberdade dos docentes, a saber, se se promove neles de maneira eficaz, esse hábito de introspecção profunda sem a qual a formação em valores de seus alunos será um exercício meramente formal, como afirma Latapí.

Porque o coração aprende e se desenvolve até voltar-se cada vez mais atento, inteligente, razoável e responsável em sua tomada de decisões. De modo que, como afirma Sabines em seu poema “Uno es el hombre” (Uno é o homem), o importante é ser consciente do rumo que está tomando o coração e fazer com que esse rumo decida de maneira autônoma por cada sujeito e por cada comunidade humana:

“Não me digam vocês onde estão meus olhos,

perguntem até onde vai meu coração.

Eu lhes deixarei uma coisa no último dia,

a coisa mais inútil e mais amada por mim,

a que sou eu e se move, imóvel para então,

definitivamente quebrada.

Mas lhes deixarei também uma palavra,

a que eu disse aqui, inútil, amada.”

(Jaime Sabines, fragmento de El llanto fracasado)

Educar em valores para um mundo melhor

“Embora saibamos muito pouco sobre isto, embora andemos no escuro – o que nos ajuda a abordar este tema com humildade, reconhecendo que estamos margeando o mistério que somos – é importante realizar o esforço coletivo de refletir sobre a função formativa da escola. Assim avançaremos no conhecimento de como fazer melhor os homens” (Latapí, 2001:69).

Embora saibamos muito pouco sobre o tema da educação em valores, embora seja, todavia, e talvez sempre, um campo por conhecer o da educação do coração humano – a educação da liberdade humana, que é fundamentalmente educação emocional –, é importante, diria Latapí, é urgente, diríamos hoje, diante do cenário da profunda crise social nacional, realizar esse esforço coletivo para abordarmos teórica – a partir da filosofia da educação em diálogo com as ciências da educação – e praticamente – a partir do desenho curricular e dos métodos didáticos – o tema da educação em valores além do modismo, que pode ser um obstáculo.

Embora andemos no escuro e reconhecendo com humildade que estamos diante do mistério do que somos como humanos, é necessário que os docentes, a partir de uma prática refletida; os pesquisadores, a partir de uma investigação criativa e interdisciplinar; os filósofos, a partir de uma reflexão adequada à complexidade da mudança de época; os diretores e funcionários, a partir da abertura para incorporar os conhecimentos que se geram transformando-os em políticas públicas eficazes e avaliáveis; e os pais, a partir do testemunho e diálogo com a escola, empreendamos esta tarefa fundamental se queremos reverter o “longo ciclo de decadência” (Lonergan, 1999) em que se encontra nosso modelo civilizatório atual.

Avançar no conhecimento e aplicação prática e progressiva da educação do coração humano colocando os valores como o eixo de sustentação de nosso sistema educativo, nos faria avançar no conhecimento de como tornar melhores os homens, mas também no conhecimento e na ação de como tornar melhor o mundo.

Porque “a renúncia ao melhor dos mundos (as utopias) não implica a renúncia a um mundo melhor” (Morin, 2001); é preciso construir redes de busca no campo da educação em valores e um guia muito relevante é o legado de Pablo Latapí Sarre neste tema, tanto em seu conteúdo como em seu testemunho como uma pessoa que encarnava muitos dos valores que hoje necessitamos para fazer com que a educação seja um pouco melhor, e que contribua com que o mundo o seja.

A obra de Latapí no tema da educação em valores leva ao convite e ao desafio de, como profissão de fé, a educação assuma o compromisso de fazer com que existam condições para que se chegue ao futuro.

“...

Lento mas vem

o futuro se aproxima

devagar

mas vem

já está quase chegando

com sua melhor notícia

com punhos com olheiras

com noites e com dias

lento mas vem

o futuro real

o mesmo que inventamos

nós e o azar

cada vez mais nós

e menos o azar.”

(Mario Benedetti, fragmento de Lento pero viene)


Juan Martín López Calva é doutor em educação pela Universidad Autónoma de Tlaxcala e coordenador do doutorado interinstitucional em educação da Universidad Iberoamericana Puebla. CE: martin.lopez@iberopuebla.edu.mx


Este artigo foi originalmente publicado em espanhol, no periódico
Perfiles Educativos, vol. 24, n. 135, Instituto de Investigaciones sobre la Universidad y la Educación, Universidad Autónoma de México, 2012.

Referências

Bauman, Z. Miedo líquido. La sociedad contemporánea y sus temores, México, Paidós, 2007.

Bustos, R. “La formación para la ciudadanía en contextos de diversidad. Estudio en casos de niños indígenas migrantes en el estado de Morelos”. Tesis de doctorado. Cuernavaca: Uaem, 2011.

Escámez, J. La enseñanza de actitudes y valores. Barcelona, Ed. Nau llibres, (s/f).

Fierro, C.;P. Carbajal, Mirar la práctica docente desde los valores. México: Gedisa, 2003.

Latapí, P. La moral regresa a la escuela, México, Unam-IISUE/Plaza y Valdés, 1999.

Latapí, P. “Valores y educación”. Ingenierías, vol. IV, n. 11, en: www.ingenierias.uanl. mx/11/.../11_Pablo_Latapi_Valores_y_educacion.pdf (consulta: 20 de agosto de 2011).

Latapí, P. Finale prestissimo. Pensamientos, vivencias y testimonios, México, Fondo de Cultura Económica, 2009.

Lonergan, B. Método en teología, Salamanca, Ed. Sígueme, 1988.

Lonergan, B. Insight. Estudio sobre la comprensión humana. Salamanca: Ed. Sígueme/Universidad Iberoamericana, 1999.

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¹ Cfr. Estados do conhecimento da área temática 6: educação e valores (em processo, no prelo).
² Este texto é uma versão revisada e ampliada da participação do autor no painel “Os valores e a educação na obra de Pablo Latapí Sarre”, na Cátedra Pablo Latapí Sarre do Sistema Universitário Jesuíta (Universidad Iberoamericana Puebla, agosto de 2011).