Da moda
à reivindicação
“Está na moda falar sobre valores na educação. Em minha
opinião não é uma moda, é uma reivindicação, é o desejo de recuperar algo
essencial que temos abandonado: a função formativa da escola. Essencial porque
ninguém pode educar sem
valorar, porque todo o ensino é direcionado para determinados fins que
considera valiosos para o indivíduo e a sociedade” (Latapí, 2001:59).
Na realidade, está na moda falar de valores na
educação. Se revisarmos os documentos institucionais, as missões e visões da
maioria das escolas e universidades; se depositarmos atenção à publicidade das
instituições educativas e escutarmos os discursos dos professores, diretores e
funcionários do sistema educativo, encontraremos com muita frequência
afirmações que destacam a formação de valores dos estudantes e a preocupação e
orientação – real ou declarada – dos educadores e dos centros educativos por
essa dimensão da educação, que era ignorada, ou até rejeitada há alguns anos.
Uma análise da literatura na área de pesquisa em
educação, dos anos oitenta do século passado, daria conta da escassez de
estudos, teses, apresentações ou pesquisas científicas sobre o tema dos
valores. A tradição secular do sistema educativo mexicano impedia que esse tema
fundamental permeasse os currículos, as práticas educativas e as pesquisas
sobre o tema com o argumento de que educação com base em valores implicava
necessariamente uma relação com o ensino religioso.
Latapí descreve anedoticamente essa oposição ao
tema dos valores, na referida década, a partir de sua experiência como assessor
do secretário de Educação, Fernando Solana, ao registrar o ocorrido em uma
reunião na qual propôs o tema dos valores como central na agenda educativa e
foi refutado pela intervenção de outro assessor que afirmava que abordar o tema
dos valores era contrário ao artigo constitucional terceiro, e que isso poderia
“abrir as portas para os valores religiosos” na escola, apesar de que, como
assinalava Don Pablo nessa reunião, o artigo terceiro “abundava em valores”
como a dignidade da pessoa, a integridade da família, a democracia como forma
de vida etc. (2009:146).
Mas agora a situação é outra. A moda da educação em
valores invade o sistema educativo nacional, embora pelos fatos não tenhamos
muitas evidências de que essa tendência tenha resultados. O ressurgimento do
tema no cenário educativo se deve a muitos fatores, sobretudo aqueles
relacionados com a crise civilizatória que estamos padecendo e que tem
manifestações em todos os âmbitos de nossa vida. Sem dúvida, mas um dos motores
fundamentais para que “a moral retornasse à escola” no México foi a preocupação
e o trabalho sério e sistemático de pesquisa e difusão de um grupo de
acadêmicos que se conscientizaram sobre a relevância dessa dimensão da
educação. Entre esses pesquisadores pioneiros encontram-se pessoas de prestígio
como Sylvia Schmelkes (1995, 1996) e, claro, de maneira central, Pablo Latapí,
que fez da ética na educação um de seus temas centrais de estudo e reflexão
filosófica.
Sem dúvida, é cada vez mais necessário que passemos
da moda à resposta à reivindicação social que está pedindo de maneira urgente
que o sistema educacional ponha em foco de maneira séria, sistemática,
integral, transversal e eficiente a educação em valores para as novas gerações.
A violência que tem se apoderado de nossas ruas e
suas complexas raízes estruturais, mas acima de tudo a cultura distorcida na
qual se apoiam essas estruturas, estão nos dizendo que temos que fazer algo a
partir da educação que se oferece na família, na escola, na universidade e nos
meios de comunicação de massa, para responder a essa situação.
Isto porque ninguém pode educar sem valorar e,
hoje, a reivindicação que parecemos não escutar os educadores, nos diz que
estamos, coletivamente, valorizando, de maneira inadequada, que uma cultura que
põe acima do ser humano a economia, a política partidária, a riqueza, o poder,
a aparência e o conforto é uma cultura que requer uma radical reforma moral,
uma conversão ética que nos abra os olhos ao que verdadeiramente pode “salvar a
humanidade, realizando-a”, nesses tempos obscuros que vivemos, esta “era de
ferro planetária”, como a chama Morin (2003).
Por isso é necessário passar da moda à
reivindicação e da reivindicação à ação, recordando persistentemente esse
legado de Latapí porque, como dizia Rosario Castellanos:
“Me lembro, nos lembramos.
Esta é nossa maneira de ajudar a que amanheça
sobre tantas consciências manchadas
sobre um texto furioso, sobre uma grade aberta
sobre o rosto amparado por detrás da máscara.
Me lembro, nos lembramos.
Até que a justiça se sinta entre nós”.
(Rosario Castellanos, fragmento de Memorial de Tlatelolco)
O coração da
educação
“Em outro substrato da pessoa, mais misterioso e
esquivo, se desenvolvem forças e processos, amores, atrações, afinidades,
solidariedades, esperanças, e aí se abre a possibilidade – tênue, mas real – da
decisão livre e de ordem moral. Chamamos a esse substrato de pessoa, a falta de
termo melhor, o campo dos valores. É o coração da educação”. (Latapí, 2001:59).
O campo dos valores é o coração da educação porque
é aí, nesse substrato “misterioso e esquivo”, impossível de se estudar cem por
cento empiricamente, que se está jogando a possibilidade da liberdade humana
efetiva, ou seja, a capacidade real de autodeterminação dos sujeitos, dos
grupos e da sociedade como um todo, no meio dos múltiplos condicionamentos que
têm todo o humano. O espaço para o desenvolvimento da “autonomia dependente”,
cada vez mais autonomia e menos dependente, mas sempre sujeita a esses fatores
biológicos, psicológicos, sociológicos, econômicos, religiosos, etc, é o espaço
dos valores. É nessa pequena ou maior margem de manobra onde se define o que
somos, o drama da vida pessoal e o drama da humanidade como coletivo no
“instante de seu ser que é todo o tempo” (Lonergan, 1999).
Este terreno onde se desenvolvem multiplicidade de
forças e processos não está desligado, como foi levantado erroneamente em nossa
cultura ocidental e sua lógica simplificadora, do campo do conhecimento, e,
portanto, do currículo geral de formação em conteúdos, habilidades ou
competências teóricas e práticas nas distintas disciplinas. O juízo de valor
está intrinsecamente ligado ao juízo de fato e não separado dele, afirma Morin
(1999), porque o juízo de fato que surge do conhecimento é sempre “responsabilidade
de quem o afirma” (Lonergan, 1999) e todo conhecimento tem implicações éticas
para o indivíduo que conhece e para o contexto sócio-histórico no qual se
produz esse conhecimento.
De maneira que o coração não está dissociado do
centro do organismo, e muito menos do cérebro, pelo que quando Latapí fala dos
valores como o coração da educação não está falando de abandonar a educação em
conteúdos e competências disciplinares ou profissionais, e não está implicando,
tampouco, que basta que se façam adições aos planos de estudo para incluir
matérias de formação de valores para conseguir atender essa reivindicação
urgente; contudo, valorizava como positiva a inclusão do assunto da formação
cívica e ética no currículo oficial apesar dos erros que, em seu ponto de vista,
continha (Latapí, 1999).
Trata-se de considerar o campo dos valores como o
coração da educação, entendendo o coração como o órgão que processa,
redimensiona, “oxigena” e distribui as aprendizagens de todos os tipos feitos
na escola para dar-lhes um sentido na existência pessoal do educando e para
torná-los relevantes para a transformação da sociedade e para esse indivíduo
que se está educando.
Isto porque, como sujeitos
eco-ego-auto-exo-organizados (Morin, 2003), somos um todo inseparável em que a
dimensão do significado e o valor articula todo o aprendido. Porque como
sujeitos conscientes (Lonergan, 1988) temos estruturalmente a necessidade de
valorizar o que aprendemos e descobrir seu significado ou insignificância para
nosso projeto existencial e o projeto social do qual fazemos parte de maneira
inevitável.
Latapí concebe essa integralidade na qual escreve
acerca da educação em valores e, por isso mesmo, apela a uma busca de
conhecimento interdisciplinar (psico-sócio-filosófico-pedagógico) dessa dimensão
humana e das concepções teóricas que fundamentem a ação educativa nesse campo,
assim como das propostas metodológicas para tratar de fazê-lo operativo na aula
(2001).
A partir dessa visão integral do ser humano – e da
concepção da finalidade da educação como o esforço sistemático para “fazer
melhores os homens” (2001: 49) – é que o
tema da ética na educação e sua operacionalidade, o que chamamos de “educação
em valores” (na falta, como diz Latapí, de melhor termo), se converte em um
eixo central em sua obra. Essa visão surge da convicção, experimentada
pessoalmente, estudada teórica e filosoficamente e testemunhada por sua própria
vida, de que existe em todo ser humano este “substrato misterioso e esquivo”
que faz com que surja a decisão livre; que essa decisão livre se converta
inclusive em uma luta por construir, preservar, aumentar, estender ou recuperar
a liberdade que para muitos é negada no
mundo atual, e que haja vidas que gritem o que poeticamente expressa Miguel
Hernández:
“Para a liberdade, sangro, luto, sobrevivo.
Para a liberdade, meus olhos e minhas mãos,
como uma árvore caudal, generosa e cativa,
dou aos cirurgiões...
...
Porque onde umas bacias vazias amanheçam
ela colocará duas pedras em vista futura
e fará que novos braços e novas pernas cresçam
na carne talhada...”
(Miguel Hernández, fragmento de Para la libertad)
Sabemos pouco
“Falemos com franqueza: se o essencial de nossa
tarefa de educadores é tratar de fazer melhores os homens, devemos confessar
com honestidade que pouco sabemos de como fazê-lo...”(Latapí, 2001:59).
Sabemos pouco acerca de como “fazer melhores os
homens”, dizia Latapí em sua conferência da cátedra “Fim de milênio”, na
Universidade Autônoma de Novo León. Sabemos pouco sobre a ética na educação e
de como tornar operacional uma ética determinada através de abordagens
metodológicas para educar em valores.
Algo se tem avançado nesses anos a partir do
retorno da preocupação moral para a escola. No México e em todo o mundo se tem
experimentado avanços no que sabemos em teoria e no que fazemos na prática. No
campo teórico, além das correntes que podemos considerar clássicas – das que
percebe Escámez em sua obra já clássica O
ensino das atitudes e valores (s/f) (informação ou ensino de valores, a
clareza de valores e o razoamento moral de Kohlberg) –, tem se desenvolvido
alguns modelos pedagógicos relativamente novos e com intenção de oferecer maior
integralidade, como aqueles que destaca Payá (2000) (projeto de vida e
desenvolvimento da personalidade moral), que têm gerado tentativas de
instrumentação didática como a “serviço de aprendizagem” (Puig e Palos, 2006)
ou o desenvolvimento do autoconhecimento dos educandos e sua visão de futuro
através de planos de vida (Payá, 1992).
Estes últimos enfoques postulam a necessidade de
uma maior integralidade da formação de valores, superando a visão
predominantemente racional do enfoque de Kohlberg e tratando de considerar o
educando e sua dimensão de valores em sua dimensão afetiva e na visão reflexiva
sobre sua própria existência, mais que no esclarecimento dos valores abstratos
ou princípios éticos universais, no caso de Payá, e de sua inserção em uma
comunidade humana concreta para melhorar suas condições de vida, no caso de
Puig e Palos.
Contudo, essas intenções de construção teórico-prática
de enfoques de educação em valores mais adequados ao novo conhecimento sobre a
aprendizagem dos estudantes, e as novas concepções dos valores na educação em
sociedades abertas, plurais e democráticas, não têm sido suficientemente
trabalhados no México, onde os programas e textos de formação em valores de uso
cotidiano têm, todavia, muito do enfoque de ensino de valores, embora este
ensino ou informação se proponha através de meios dialógicos, ativos e
participativos.
Pouco sabemos ainda sobre como educar em valores e,
infelizmente, os trabalhos na área de educação e valores (área 6 do Comie –
Conselho Mexicano de Pesquisa Educativa) mostram o predomínio de pesquisas
empíricas sobre os valores declarados por estudantes professores em diversos níveis
, ou sobre os valores a ensinar nos planos de estudo, assim como acerca das
leis e políticas sobre educação em valores em nosso sistema educativo.¹
Na realidade, se bem que o relatório parcial do estado do conhecimento
2002-2011 dessa área temática, apresentado no XI Congresso Nacional de Pesquisa
Educativa, mostra que o número de trabalhos – apresentações, artigos, livros,
capítulos de livros e teses – tem crescido consideravelmente a respeito do
estado do conhecimento anterior (o número de trabalhos tem crescido
exponencialmente até chegar a mais de 900 na década passada, principalmente
artigos em revistas arbitradas e em apresentações ou livros coletivos, embora
haja um bom número de reflexões que não são nem de pesquisa empírica nem
construção do conhecimento teórico), esses trabalhos seguem sendo, em alta
porcentagem, indagações sobre os valores que se ensinam, os valores que se
pretendem inculcar nos estudantes por parte dos docentes, currículos
institucionais e documentos normativos.
A esse respeito, se bem que a maioria dos trabalhos
segue movendo o campo das visões ontológicas ou metafísicas dos valores e nos
enfoques didáticos de convencimento ou ensino, se destacam algumas exceções,
como o caso da pesquisa de Fierro y Carbajal (2003), que parte de um marco
teórico sustentado em abordagens filosóficas e psicológicas do tema e constrói
uma maneira nova de indagar a oferta de valores dos docentes de primeira ordem
no estado de Guanajuato. Ou um par de teses de doutorado que exploram
respectivamente o enfoque da sociologia fenomenológica de Schutz (Benítez,
2011). Para cercar-se da compreensão da forma com que os universitários
constituem-se como sujeitos morais; e o enfoque de autoapropriação de Bernard
Lonergan (Martínez, 2009) como perspectiva teórica para descobrir perfis de
tomada de decisões também para estudantes universitários, e apontar para uma
“pedagogia das decisões”.
No nível de educação superior regular, Ramírez
Hernandez (2011), em uma tese de doutorado em processo, se propõe a construir e
validar um instrumento para medir o grau de desenvolvimento de um raciocínio
moral em bacharéis do estado de Aguascalientes com o método de equações
estruturais. É outra tentativa interessante que trata de sair do enfoque de
imprimir valores e parte de outra visão ética, fundamentando-se na perspectiva
de raciocínio moral de Kohlberg, se aproxima de uma maneira totalmente
quantitativa à dimensão moral dos estudantes, embora coincida com os trabalhos
anteriormente citados em colocar o problema dos valores a partir da tomada de
decisões.
No nível da educação básica, mas estudando um
público muito específico – filhos de trabalhadores migrantes – Bustos (2011),
em outra tese de doutorado da Universidade Autônoma de Morelos constrói um
trabalho que estuda a moral a partir do ângulo emergente no México nesse
período (2002-2011) de “formação para a cidadania”. Esta é outra perspectiva
teórica e pedagógica que está começando a ser usada e a tomar força na
investigação do tema moral, mas ainda falta explicitar de maneira mais clara
sua vinculação com o tema da educação em valores para superar a ambiguidade que
destaca Latapí na conferência citada de 2001, na qual ele aponta, com acerto,
que educação cívica não é sinônimo de educação em valores. Essa tese
apresenta também uma contribuição relevante que é o olhar a partir da
interculturalidade. Se queremos saber mais sobre o tema dos valores em
educação, é indispensável compreender adequadamente o conceito de cultura
expandido como propõe Lonergan (1988), como o conjunto complexo de significados
e valores que determinam os modos concretos em que um grupo social vive.
Estas poucas teses, e alguns estudos teóricos,
todavia muito escassos, que levam a repensar os fundamentos éticos a partir dos
quais se está olhando a educação em valores (introduzindo autores com visões
mais acordadas a este mundo global, marcado pela incerteza e pela pluralidade,
como Edgar Morin y Bernard Lonergan) (Lopez-Calva, 2009), embora parecem
confirmar a ideia de que sabemos pouco sobre o porquê e como a educação em
valores, mesmo que pareça pressagiar um horizonte de busca cada vez mais
concorrida e focalizada no tema.
Sabemos pouco, e o pouco que sabemos não chega a
ser conhecido pelos atores da educação. Os docentes e diretores escolares falam
do tema da educação em valores muitas vezes sem haver estudado as abordagens
existentes e os trabalhos que se produzem em nível nacional ou internacional
para instrumentar essa dimensão e a da educação, e muito menos tomando uma
postura clara sobre o tema.
Mas o problema de fundo é mais grave ainda, e aqui
volta a surgir com urgência a obra de Latapí e suas entradas para a educação
mexicana: o problema fundamental é que a preocupação dos docentes, diretores,
funcionários e, ainda, desenhadores curriculares e autores de textos sobre o
tema, é exclusivamente prática e reduzidamente prática. Parece que o problema é
encontrar um método, à maneira de receita infalível, para a formação de
valores, e que esse método seja acompanhado de materiais, técnicas e instrumentos
que resolvam o problema sem a necessidade de aportar nada por parte dos
educadores.
Neste cenário, vive-se uma autêntica confusão e se
cai em um ecletismo na formação dos valores porque não se está dando à
filosofia, e à ética entendida como filosofia moral, o papel que lhe
corresponde para sustentar todas as mediações e aplicações didáticas que possam
ir se criando. A preocupação de Latapí em todos os temas educativos, como
pioneiro da pesquisa em educação no país, foi sempre a de estudar o fenômeno educativo
em toda a sua complexidade, o que implica em trabalhar de maneira
interdisciplinar. No campo dos valores seria necessária, então, uma
investigação que considere a entrada da psicologia, da sociologia, da
pedagogia, da didática, da teoria curricular e, de maneira muito relevante, da
filosofia.
Colocar em diálogo essas disciplinas e não
negligenciar a contribuição da filosofia – que infelizmente segue
considerando-se como alheio à pesquisa (investiga-se somente se for um estudo
empírico) – é essencial para continuar com o exemplo que o mesmo Latapí nos
fornece com seu trabalho. Faltam filósofos da educação que se dediquem a
pesquisar novas abordagens éticas que possam responder aos tempos atuais e
derivar em propostas de instrumentação didática para uma educação em valores à
altura dos tempos que se vive.
Isto porque, o mistério se mantém vivo e as
perguntas seguem sendo atuais. Como afirma José Emilio Pacheco:
“O mistério que tu eras para mim
E eu sou para ti
E todos somos para todos...
Por que atuamos assim?
Por que chegamos
A este momento inexplicável
(que é hoje e sempre)
Supera-se quem você é e quem sou.
Saiba porque você é e porque sou,
A vida perderia sua intensidade lacerante.
Deixaria de ser o que é de verdade:
O enigma sem fundo.”
(José Emilio Pacheco, fragmento de Enigma)
Da lei ao
espírito
“Como se formam valores? Sabemos muito pouco... não
se faz ensinando mandamentos e convencendo a cumprir a lei eu diria exatamente
o contrário: é ensinar a ver além da lei... A moral é ensinar às crianças e
aos jovens a viver pelo espírito e não pela lei...” (Latapí, 2001:63).
Um aspecto que parece claro, hoje em
dia, para a grande maioria dos atores da educação e para amplos setores da
sociedade, é que se não sabemos muito sobre como se forma em valores, sabemos
que não se educa moralmente mediante o ensinamento de mandamentos ou o
convencimento de cumprir a lei. Como afirmava Latapí, hoje é claro que a
educação moral tem que ser direcionada para que os jovens aprendam a viver
“pelo espírito e não pela lei”. Passar da “ética da lei para a ética da
humanização” (Lonergan, 1999), ou da “moralização” à ética da compreensão
humana (Morin, 2005), é fundamental para uma educação em valores que esteja à
altura dos nossos tempos.
Esta clareza da maioria dos teóricos
da educação e de muitos educadores – docentes, diretores, funcionários, pais
etc – tem que seguir trabalhando até que se converta em uma convicção social
efetiva em todas as famílias, escolas e universidades do país. Contudo, existe
e se dá nos fatos o risco de interpretar mal essa “educação para viver pelo
espírito” ou essa “ética da humanização”. Esse erro de interpretação, próprio
dos “tempos líquidos” que vivemos (Bauman, 2007), leva ao efeito pendular da
educação dogmática à educação relativista, incluindo também a baseada em
valores.
Educar para a humanização ou para
transcender o cumprimento da lei não significa educar para que cada criança ou
jovem tenha o que, de maneira meramente subjetiva, lhe pareça adequado, ou
inclusive pragmaticamente útil para a sua vida. Formar para “viver pelo
espírito” implica um esforço sistemático, comprometido e eficaz pela educação
da liberdade dos estudantes (López-Calva, 2007). Porque como todos os
dinamismos humanos, a liberdade também é educável. Todos os seres humanos
nascem essencialmente livres, mas não nascemos nem necessariamente vivemos como
seres efetivamente livres, ou seja, como seres capacitados pessoalmente e
habilitados socialmente para nos autodeterminarmos entre os condicionamentos de
todo tipo que existem na vida de todo ser humano.
A liberdade efetiva, ou seja, a
autonomia dependente (Morin, 2005) ou a capacidade real de autodeterminação
(Lonergan, 1988) é algo dinâmico que se constrói, se amplia ou diminui
dependendo das decisões que se vão sendo tomadas na vida, das circunstâncias e
estruturas socioeconômicas, políticas e culturais em que se vivam, inclusive de
fatores aleatórios ou inesperados.
A capacidade de ser livre efetivamente
é algo que se constrói no nível pessoal e social. Tornamos-nos livres a nós
mesmos dependendo da maturidade e autenticidade com que vamos tomando nossas
decisões, e contribuímos para fazer livres os demais na medida em que somos
capazes de contribuir com a construção de uma autêntica “questão de ordem”
social que respeite a dignidade de todos (López-Calva, 2009).
De modo que educar para a compreensão
humana, para “viver pelo espírito” transcendendo o mero cumprimento da lei, é
um trabalho que requer da construção progressista de uma “pedagogia das
decisões” (Martinez, 2009) que se tenha educandos cada vez mais atentos,
inteligentes, razoáveis e responsáveis no que escolhem, porque ao escolher
estão escolhendo a si mesmos e estão escolhendo o tipo de sociedade e de
humanidade em que querem viver (Savater, 1997).
A visão de educação em valores como
educação da liberdade é uma contribuição que poderia nos levar a uma melhor
compreensão da ética na educação a partir de uma visão humanista completa
(López-Calva, 2009) e a instrumentar criativamente, sem pretender buscar receitas,
mas com a possibilidade de ter a clareza em relação às linhas estratégicas
comuns para uma educação moral apropriada para a sociedade, marcada pela
pluralidade e a incerteza em vivemos, que é uma das dificuldades estruturais
que destaca Latapí.
Educar para a liberdade implica uma
busca constante de autenticidade humana e de consistência entre as opções que
se tomam e as consequências dessas opções nos aspectos pessoal, familiar e
social. Implica em formar pessoas capazes de viver a partir de suas próprias
convicções, como o fez Heberto Padilla em sua vida e que diz em sua poesia:
“Diga a verdade.
Diga ao menos, tua verdade.
E depois, deixa que qualquer coisa ocorra:
que te rompam a página querida,
que te tombem a pedradas a porta,
que a gente se amontoe diante de teu corpo
como se fosse um prodígio ou um morto.”
(Heberto Padilla, fragmento de Poética)
A educação do coração
“...haveria que começar desde o
princípio: com a formação em valores dos professores. Se eles não realizam um
exercício de introspecção sobre seus valores mais fundamentais, começando por
sua autoestima, sua ação educativa com os alunos nesses aspectos serão
meramente formais...” (Latapí, 2009:148).
Se os valores são o coração da
educação, a educação do coração tem que ser o eixo sobre o qual se articule a
formação integral das crianças e jovens, a saber, a linha de sustentação sobre
a que se armem os planos de estudo e se definam as competências a desenvolver,
os conhecimentos a explorar, as perguntas a realizar, as atividades curriculares
e extracurriculares a propor no sistema educativo.
Porque a apreensão do valor é algo que
ocorre em um tecido afetivo das pessoas e não em sua razão racionalmente?.
Como afirma Vertin (1995): “o insight deliberativo é um ato de cognição
afetiva...”, e nesse sentido a educação em valores – entendida como aqui se
propõe: como educação da liberdade – é uma educação do coração, a saber, uma
educação do dinamismo consciente humano, que leve os educandos a uma tomada de
decisão que, a partir de sua experiência vital e de sua compreensão inteligente
e crítica das realidades em que vive, se guie por essa apreensão do valor, que
ocorre nos sentimentos.
A realização da formação para “viver
pelo espírito” se dará quando aprendermos como promover probabilidades reais de
emergência desses “atos de cognição afetiva”, dessas experiências de apreensão
de valor que fazem com que a vida se oriente para o que realmente vale a pena
para cada um de nós e para todos.
Esta é uma abordagem pouco conhecida e
explorada no âmbito da educação no México e no mundo, que requer esforços
coletivos de investigação filosófica e empírica no campo educativo e um diálogo
entre a filosofia da educação e as ciências da educação (desde a investigação
em neurociências até a contribuição da antropologia da educação, a sociologia
da educação, a psicologia educativa e inclusive a economia da educação) para
saber cada vez mais sobre a formação dessa dimensão misteriosa e nunca
alcançável do todo que é a liberdade humana, e seu uso mais ou menos responsável
no nível individual e coletivo.
É necessário primeiro ter em conta que
a educação em valores é uma educação do coração, entendida no sentido complexo
e amplo como uma educação para a diferenciação, integração e apropriação da
estrutura consciente humana por parte de cada educando a partir, não de teorias
ou ensino de normas ou respostas morais – porque no âmbito dos valores, como
afirmou Melchin (1993), podemos “viver com as respostas corretas, mas as
perguntas erradas...” – mas do exercício constante de introspecção individual e
grupal sobre como e em que condições se tomam decisões realmente livre e
responsáveis em cada âmbito da vida humana, e como podemos voltar nossos
sentimentos cada vez mais inteligentes, razoáveis e responsáveis para tornar cada
vez mais autêntica essa tomada de decisões (López-Calva, 2006).
Este exercício constante de
introspecção dos estudantes somente será possível se começarmos com a educação
do coração, com a educação para a liberdade dos docentes, a saber, se se
promove neles de maneira eficaz, esse hábito de introspecção profunda sem a
qual a formação em valores de seus alunos será um exercício meramente formal,
como afirma Latapí.
Porque o coração aprende e se
desenvolve até voltar-se cada vez mais atento, inteligente, razoável e
responsável em sua tomada de decisões. De modo que, como afirma Sabines em seu
poema “Uno es el hombre” (Uno é o homem), o importante é ser consciente do rumo
que está tomando o coração e fazer com que esse rumo decida de maneira autônoma
por cada sujeito e por cada comunidade humana:
“Não me digam vocês onde estão meus olhos,
perguntem até onde vai meu coração.
Eu lhes deixarei uma coisa no último dia,
a coisa mais inútil e mais amada por mim,
a que sou eu e se move, imóvel para então,
definitivamente quebrada.
Mas lhes deixarei também uma palavra,
a que eu disse aqui, inútil, amada.”
(Jaime Sabines, fragmento de El llanto fracasado)
Educar em valores para um mundo melhor
“Embora saibamos muito pouco sobre
isto, embora andemos no escuro – o que nos ajuda a abordar este tema com
humildade, reconhecendo que estamos margeando o mistério que somos – é
importante realizar o esforço coletivo de refletir sobre a função formativa da
escola. Assim avançaremos no conhecimento de como fazer melhor os homens”
(Latapí, 2001:69).
Embora saibamos muito pouco sobre o
tema da educação em valores, embora seja, todavia, e talvez sempre, um campo
por conhecer o da educação do coração humano – a educação da liberdade humana,
que é fundamentalmente educação emocional –, é importante, diria Latapí, é
urgente, diríamos hoje, diante do cenário da profunda crise social nacional,
realizar esse esforço coletivo para abordarmos teórica – a partir da filosofia
da educação em diálogo com as ciências da educação – e praticamente – a partir
do desenho curricular e dos métodos didáticos – o tema da educação em valores
além do modismo, que pode ser um obstáculo.
Embora andemos no escuro e
reconhecendo com humildade que estamos diante do mistério do que somos como
humanos, é necessário que os docentes, a partir de uma prática refletida; os
pesquisadores, a partir de uma investigação criativa e interdisciplinar; os
filósofos, a partir de uma reflexão adequada à complexidade da mudança de
época; os diretores e funcionários, a partir da abertura para incorporar os
conhecimentos que se geram transformando-os em políticas públicas eficazes e
avaliáveis; e os pais, a partir do testemunho e diálogo com a escola,
empreendamos esta tarefa fundamental se queremos reverter o “longo ciclo de decadência”
(Lonergan, 1999) em que se encontra nosso modelo civilizatório atual.
Avançar no conhecimento e aplicação
prática e progressiva da educação do coração humano colocando os valores como o
eixo de sustentação de nosso sistema educativo, nos faria avançar no
conhecimento de como tornar melhores os homens, mas também no conhecimento e na
ação de como tornar melhor o mundo.
Porque “a renúncia ao melhor dos
mundos (as utopias) não implica a renúncia a um mundo melhor” (Morin, 2001); é
preciso construir redes de busca no campo da educação em valores e um guia
muito relevante é o legado de Pablo Latapí Sarre neste tema, tanto em seu
conteúdo como em seu testemunho como uma pessoa que encarnava muitos dos
valores que hoje necessitamos para fazer com que a educação seja um pouco
melhor, e que contribua com que o mundo o seja.
A obra de Latapí no tema da educação
em valores leva ao convite e ao desafio de, como profissão de fé, a educação
assuma o compromisso de fazer com que existam condições para que se chegue ao
futuro.
“...
Lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem
já está quase chegando
com sua melhor notícia
com punhos com olheiras
com noites e com dias
lento mas vem
o futuro real
o mesmo que inventamos
nós e o azar
cada vez mais nós
e menos o azar.”
(Mario Benedetti, fragmento de Lento pero viene)
Juan
Martín López Calva é doutor em educação pela Universidad Autónoma de Tlaxcala e
coordenador do doutorado interinstitucional em educação da Universidad
Iberoamericana Puebla. CE: martin.lopez@iberopuebla.edu.mx
Este artigo foi originalmente publicado em espanhol, no periódico Perfiles
Educativos, vol. 24, n. 135, Instituto de
Investigaciones sobre la
Universidad y la
Educación, Universidad Autónoma de México, 2012.
Referências
Bauman,
Z. Miedo líquido. La sociedad
contemporánea y sus temores, México, Paidós, 2007.
Bustos,
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¹ Cfr. Estados do conhecimento da área temática 6: educação e valores (em processo, no prelo). ² Este texto é uma versão revisada e ampliada da participação do autor no painel “Os valores e a educação na obra de Pablo Latapí Sarre”, na Cátedra Pablo Latapí Sarre do Sistema Universitário Jesuíta (Universidad Iberoamericana Puebla, agosto de 2011).
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