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Reportagem
Controvérsias em torno das vacinas
Por Roberto Takata e Alice Giraldi
10/10/2014
Agosto de 2014. Na cidade de El Carmen de Bolívar, na Colômbia, 276 garotas adolescentes de um mesmo colégio tomam a vacina contra o vírus da papilomatose humana (HPV), principal causa do câncer de colo de útero, e passam mal. Algumas desmaiam, outras têm dor de cabeça e tonturas, além de formigamento e dormência em várias partes do corpo. Levadas para o hospital, as meninas passam por exames, mas não é encontrada nenhuma causa clínica que justifique os sintomas. Em vista do quadro, as autoridades de saúde colombianas emitem um diagnóstico: o que acometeu as garotas foi uma reação psicogênica em massa, distúrbio psicológico em que membros de um grupo apresentam os mesmos sintomas simultaneamente e que costuma afetar crianças e adolescentes sob estresse físico e emocional.

Bertioga, litoral de São Paulo, setembro de 2014. Onze garotas de uma mesma escola recebem a segunda dose da vacina HPV e sentem-se mal. Dentre elas, três apresentam insensibilidade nas pernas e são internadas. Mas, como seus exames não revelam a presença de problemas neurológicos e elas se recuperam bem, recebem alta. Não se sabe se essas reações podem ou não ser atribuídas à vacina. As autoridades sanitárias do estado de São Paulo trabalham com a hipótese de reação psicogênica e não suspendem o uso do lote de vacinas.

Eventos que envolvem possíveis reações adversas às vacinas, como os que protagonizaram as meninas de El Carmen de Bolívar e de Bertioga, despertam desconfiança e são as principais fontes de controvérsias em torno dos programas de imunização. O temor que episódios dessa natureza fazem surgir é a ideia de que as vacinas, ao invés de cumprir a sua função original de fortalecer o sistema imune e prevenir doenças, sejam capazes de produzir sérios danos à saúde. A vacinação contra o HPV tem se revelado um desses casos. Desde a sua introdução no Programa Nacional de Imunizações, em março de 2014, vem se tornando uma área polêmica. À parte motivações religiosas com preocupações sobre a sexualidade das mulheres, em particular dentro de algumas correntes cristãs evangélicas, e movimentos antivacinistas (motivados principalmente pelas chamadas “teorias da conspiração”) mais organizados, mas ainda de baixa penetração no país – a julgar pela boa cobertura vacinal dentre as do calendário básico (em 2012, ano dos dados mais recentes disponíveis no Ministério da Saúde/DataSUS, 93,81% da população alvo foi vacinada com a tetravalente bacteriana; 96,55%, contra a polio; 105,69%, com a BCG; 96,67%, contra a hepatite B; 99,5%, com a tríplice viral) –, o investimento de R$ 1,1 bilhão em 5 anos na compra de 36 milhões de doses da vacina contra o HPV tem provocado alguma polêmica de cunho técnico-científico.

Dados do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde mostram que entre 145 mil meninas de 11 a 13 anos vacinadas no Rio Grande do Sul, houve apenas seis casos registrados de reações adversas, sendo cinco em Porto Alegre, com mal-estar, dor muscular, dor de cabeça e enjoo, e um, em Veranópolis, com convulsão (não se sabendo se essa reação pode ou não ser atribuída à vacina). Todas receberam vacinas do mesmo lote, cujo uso foi preventivamente suspenso. Dores musculares, cefaleia e náusea são sintomas relativamente comuns de reações adversas à vacinação – é esperada uma ocorrência de 1% ou mais na quadrivalente.

De acordo com artigo de Nicola Klein, médico pesquisador do Kaiser Permanente Vaccine Study Center, e colaboradores, a vacina quadrivalente eleva a possibilidade de desmaios no mesmo dia da vacinação (23 casos entre 189.629 mulheres de 9 a 26 anos na Califórnia, nos Estados Unidos) e de infecção de pele durante duas semanas pós-vacinação (24 casos), sendo, de resto, segura, não estando associada a nenhuma outra condição médica, nem mesmo a episódios epilépticos e convulsões.

Ceticismo

Um grupo, minoritário, de profissionais da saúde considera que a relação custo-benefício não compensa – que haveria ganho maior se o aporte da quantia utilizada na aquisição e aplicação das vacinas contra o HPV fosse usado em outras estratégias, como o fortalecimento da oferta do exame Papanicolau. Para Gustavo Gusso, doutor em clínica médica pela USP e professor de clínica geral na mesma universidade, “o principal problema é de fato a utilização de desfechos substitutos e a falta de beneficios consistentes para os desfechos mais relevantes”. Em matéria de 2 de fevereiro deste ano, na Folha de S. Paulo, Gusso apontou seu ceticismo diante da eficiência da vacina: “O câncer de colo (de útero) mata, mas a vacina não demonstrou até o momento que evitará essas mortes. Ela previne as verrugas e lesões no colo do útero, que não matam. A maioria absoluta delas regride.” A vacina quadrivalente (contra os subtipos 6, 11, 16 e 18 – não confundir com a vacina tetravalente bacteriana, usada na prevenção contra difteria, tétano, coqueluche e meningite bacteriana) foi licenciada apenas em 2006 e a bivalente (contra os subtipos 16 e 18), em 2007. Mas o ciclo de desenvolvimento entre a infecção pelo HPV e a transformação das células epiteliais em tumor pode levar mais de 20 anos; no entanto, ao longo de cerca de 10 anos de acompanhamento, as vacinas têm se mostrado eficientes em impedir o desenvolvimento de lesões pré-cancerosas associadas ao HPV, o que levou a OMS a recomendar a vacinação nos casos em que o câncer do colo de útero seja uma prioridade em saúde pública, haja factibilidade técnica e econômica no país para a oferta das vacinas e que a relação custo-benefício tenha sido adequadamente considerada.

Em artigo de revisão da literatura científica sobre vacinas contra o HPV, Alessandra Borsatto, enfermeira do Instituto Nacional de Câncer (Inca), e colaboradores consideram que ainda há lacunas a serem esclarecidas antes da adoção da vacinação em larga escala, como um estudo mais detalhado sobre a prevalência dos sorotipos no Brasil. Porém, para uma análise do custo-efetividade, os autores adotaram o valor da dose de US$ 100, cobrados em clínicas particulares –na compra governamental, o preço inicial foi de cerca de R$ 30 a dose (cerca de US$ 13).

Na avaliação da OMS, a qualidade geral das evidências científicas em apoio à eficácia das vacinas contra HPV aplicadas em garotas adolescentes na prevenção do desenvolvimento posterior do câncer de colo é considerada moderada, isto é, novas pesquisas provavelmente terão impacto importante no grau de confiança da estimativa do efeito e pode alterar essa estimativa.

Rejeição histórica

As controvérsias em torno das vacinas são tão antigas quanto a sua própria criação. No Ocidente, as manifestações contrárias à ideia de se inocular um agente infeccioso num organismo saudável estão presentes nos registros históricos desde o fim do século XVIII, quando a primeira vacina,

criada pelo médico Edward Jenner, começou a ser utilizada amplamente na Inglaterra para prevenir a varíola. As críticas vinham de diversos setores da sociedade. Enquanto os pais repeliam a proposta de usar a linfa infectada pela versão bovina do vírus da varíola para tentar proteger a saúde dos filhos, a Igreja afirmava que, devido à origem animal, a vacina de Jenner “não era cristã”. Mas o foco da tensão social que o tema já então despertava era a obrigatoriedade da vacinação, que atentava contra as liberdades individuais, segundo os cidadãos ingleses da época.

Com as tensões ganhando força e o advento de leis (em 1853 e em 1857) que determinaram a obrigatoriedade de se vacinar as crianças, prevendo punições para os pais que não o fizessem, logo surgiram na Inglaterra as ligas antivacinação. O debate sobre as vacinas ficou tão acirrado que, em 1885, entre 80 mil a 100 mil pessoas saíram em marcha contra a vacinação pelas ruas da cidade de Leicester, carregando um caixão de criança e um retrato de Jenner. As manifestações levaram as autoridades inglesas a recuar, retirando as penalidades previstas na lei de vacinação e instituindo a possibilidade de isenção para pais que não quisessem vacinar os filhos.

Nos Estados Unidos, no início do século XX, as campanhas de vacinação contra a varíola também geraram descontentamento, que resultou na fundação de três ligas antivacinas. Nesse período, muitos cidadãos americanos chegaram a mover, individualmente, processos judiciais contra o Estado, na tentativa de fazer valer o direito de não se vacinar. “Nos países em que a autonomia individual é mais respeitada e acatada, a rejeição natural e universal à vacinação surgiu com mais força”, afirma o médico Paulo Roberto Vanconcellos-Silva, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor de bioética da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Até mesmo no Brasil – onde, de acordo com o pesquisador, ainda hoje prevalece uma “cultura de subserviência em relação às ações sanitárias do Estado” –, no início do século XX, a população se organizou para criar uma liga antivacinas. E, em 1904, chegou a pegar em armas para lutar contra a obrigatoriedade da vacinação. O conflito, que deixou um saldo de 945 detidos – dos quais 461 foram deportados para o Acre, para trabalhar na extração da borracha – 110 feridos e 30 mortos em menos de duas semanas, teve como pano de fundo tensões sociais e políticas e ficou conhecido como a “Revolta da Vacina”.

A polêmica do autismo

Em décadas mais recentes, as controvérsias se focalizaram em eventos que envolveram as vacinas tríplice bacteriana e viral. No início dos anos 1970, um informe de um hospital pediátrico de Londres deu origem a uma polêmica internacional em torno da vacina DPT, ou tríplice bacteriana (contra a difteria, coqueluche e tétano). O relato informava que 36 crianças haviam desenvolvido problemas neurológicos após tomar a vacina e repercutiu amplamente nos jornais e redes de TV no Reino Unido. As taxas de vacinação caíram e ocorreram três grandes epidemias de coqueluche. Após esses eventos, autoridades de saúde britânicas conduziram um estudo nacional para investigar a associação entre a vacinação com a DPT e o surgimento de doenças neurológicas. Os resultados, publicados no Britsh Medical Journal em1978, mostraram que esse risco era muito baixo. No início dos anos 1980, a polêmica chegou aos Estados Unidos, com o lançamento do documentário DPT: Vaccination Roullete (DPT: A roleta da vacinação), que abordava os possíveis danos à saúde causados pela vacina e teve um grande impacto junto ao público americano.

Mas o episódio que deu origem à maior polêmica mundial já criada em torno das vacinas, e que até hoje alimenta o debate antivacinação, se iniciou em 1998, quando o gastroenterologista britânico Andrew Wakefield publicou um estudo na prestigiada revista Lancet, que estabelecia uma relação entre a vacina MMR, ou tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola), e o desenvolvimento do autismo. De acordo com Wakefield, o preservante timerosal, à base de mercúrio, que era usado nas vacinas, podia causar sérios danos neurológicos e intestinais nas crianças. O assunto teve grande repercussão na mídia. Seguiram-se uma crescente e sustentada redução nas taxas de vacinação no Reino Unido e o ressurgimento do sarampo no país.

Em 2010, a revista Lancet publicou uma retratação formal sobre o estudo de Wakefield, afirmando que, além de problemas éticos e metodológicos – o trabalho se baseava na análise das amostras de um grupo de apenas 12 crianças, que haviam sido colhidas durante uma festa de aniversário do filho de Wakefield, mediante uma recompensa em dinheiro –, a pesquisa apresentava graves problemas de conflitos de interesse. Uma série de estudos investigativos sobre o tema foi realizada, mas não foi possível estabelecer uma conexão entre a vacina MMR, o timerosal e o autismo. O caso culminou com a cassação, em 2010, do direito de Wakefield exercer a medicina no Reino Unido e, em 2011, com a classificação de seu artigo pelo British Medical Journal como uma “falsificação elaborada”. O médico britânico é considerado hoje um mártir por segmentos antivacinistas. Mudou-se para o Canadá, fundou o site Age of Authism (Era do Autismo) e segue militando contra a vacinação.
“Esse é um episódio lamentável”, opina Paulo Roberto Vasconcellos-Silva. Para o pesquisador, a internet teve um importante papel potencializador nesse debate. “O público da internet raramente vai atrás de uma checagem da informação. Essa dinâmica alimenta o temor às ameças que pairam invisíveis, como as suspeitas do tipo ‘podem estar nos contaminando ou nos envenenando’”. A polarização dos posicionamentos sobre o tema na rede mundial também teria ajudado a alimentar a controvérsia sobre a vacina tríplice viral. “Há os que são contra ou os que são a favor da vacinação. O público fica pendulando entre essas duas posições, mas poucos discutem as origens da dúvida sobre a segurança das vacinas ou têm conhecimento sobre como são ancestrais os temores em relação a elas”, opina.

Para saber mais:

“History of anti-vaccination movements”. Site The history of vaccines - A project of the College of Physicians of Philadelphia. Disponível em http://www.historyofvaccines.org/content/articles/history-anti-vaccination-movements. Acessado em setembro de 2014. D L Miller, E M Ross. “National childhood encephalopathy study: an interim report”. Br Med J. Oct 7, 1978; 2(6143): 992–993. Disponível aqui. Acessado em setembro de 2014.

Vasconcellos-Silva, PR, Castiel, LD. “A internet na história dos movimentos anti-vacinação”. Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=59&id=752 Acessado em setembro de 2014.

Ministério da Saúde - Centro Cultural da Saúde. “A Revolta da Vacina”, Revista da Vacina. Disponível em http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/revolta.html Acessado em setembro de 2014.