A
ciência química permite ao homem realizar transformações íntimas na estrutura
da matéria. O seu desenvolvimento e industrialização, a partir do século XVIII,
significou que essas transformações passaram a se realizar em um escala
massiva, tendo efeitos mais e mais abrangentes. A cada vez que inovações
mudavam a base tecnológica dessa indústria, produtos e serviços inéditos
chegavam à sociedade, assim como surgiam problemas ambientais novos e
complexos. Chuva ácida, redução da camada de ozônio, aumento da incidência de
câncer, resíduos de plásticos nos mares, toneladas de resíduos sólidos
perigosos geradas diariamente, todos foram desafios com que a indústria e a
sociedade tiveram que aprender a lidar e que tiveram até agora resultados com
grau variado de eficácia. Neste artigo, buscaremos identificar essas principais
mudanças tecnológicas e desafios ambientais relacionados à evolução do setor
químico, assim como discutir se uma indústria química “verde”, com impactos
nulos ou mínimos poderia surgir a partir de novas tecnologias.
O setor químico sempre
teve como vocação principal suprir outros setores da economia. Foi a demanda
por alvejantes pela nascente indústria têxtil que impulsionou as primeiras
unidades químicas. Assim, foi a Europa do século XVIII que teve que lidar com
os primeiros impactos dessa atividade, os quais, no caso da fabricação de pó de
soda pelo processo Leblanc, foram a emissão de vapores de ácido clorídrico e de
uma mistura lodosa de enxofre, cálcio e carvão não utilizado.
Segundo David Landes1, duas
toneladas dessa mistura eram produzidas para cada tonelada de soda. Leis na Inglaterra
foram promulgadas para lidar com o problema, como o Alkali Act de 1864. Ainda
mais interessante foi que, décadas mais tarde, o processo Leblanc, dominante na
indústria inglesa, foi suplantado pelo Solvay, nascido na Bélgica e adotado
pelo restante da Europa Continental, cuja vantagem era justamente a recuperação
dos subprodutos. Assim, percebe-se uma ligação entre maior produtividade e competividade
do processo e o decréscimo na emissão de resíduos.
O
próximo estágio de evolução da indústria química esteve também ligado à
indústria têxtil. Havia, ainda no século XIX, uma dependência por produtos de
origem natural para tingir os tecidos, o que trazia dificuldades de acesso,
uniformidade do corante e variedade de cores. A malva e o índigo, sintetizados
em laboratório pela primeira vez em 1856 e 1880, respectivamente, foram marcos
por trazerem aplicações comerciais a partir da química orgânica. Não se trata
apenas de criar e produzir novos corantes, mas de desenvolver teorias e
procedimentos que dariam origem a milhares de moléculas novas, as quais
poderiam ser usadas em medicamentos, pesticidas, materiais para a construção
civil, entre tantos usos funcionais. Deve-se notar que a manipulação das
cadeias de carbono e de seus radicais podia recriar compostos moleculares já
presentes na natureza, mas também trazer à luz materiais nunca antes vistos.
Assim, ganhou-se um grande potencial para se criar novas soluções para a
sociedade, ao mesmo tempo em que se punha a questão de como esses materiais
sintéticos viriam a interagir com o corpo humano e com o meio ambiente. Os
problemas mais imediatos vieram com contaminação tóxica e mesmo casos de câncer
entre operários das indústrias químicas.
Em
suas primeiras décadas, a fabricação de produtos químicos orgânicos sintéticos
era dominada por processos em batelada. Nesse caso, as reações são realizadas
em ciclos com início e fim, gerando lotes de produção. Essa configuração predominante
foi alterada pela Basf, com o desenvolvimento do processo Habber-Bosch em 1913.
Além de produzir de forma contínua, esse processo operava em alta temperatura e
pressão, o que alterou os limites de operação dos processos químicos e direcionou
a indústria para a exploração de economias de escala e uso de catalisadores. O
processo Habber-Bosch servia à produção artificial de amônia, componente básico
para fabricação de fertilizantes e outros produtos nitrogenados. Abriam-se novas
oportunidades para a transformação de materiais, a custos reduzidos pela alta
escala; contudo, o risco dos processos também aumentava. Operar grandes plantas
industriais trabalhando em temperaturas e pressão limites significa impactos
significativos em caso de acidentes.
A
configuração de plantas de larga escala e de produção contínua foi a base para
a produção comercial de polímeros, iniciada nas primeiras décadas do século XX,
e que conheceu uma grande expansão no pós-guerra. Com o polietileno, o polipropileno,
o policloreto e o nylon, entre tantos outros, a indústria química produzia
materiais formados por cadeias moleculares extensas, com configurações que não
existiam no meio ambiente. Para o seu uso diário, a sociedade antes tinha
basicamente o vidro, os metais, a madeira, e calcários como o cimento – os
polímeros vieram oferecer uma combinação inédita de propriedades como
plasticidade, não solubilidade, resistência a
corrosão e a ataques biológicos. A variedade de aplicações desses produtos, seja nos lares,
em outros setores industriais ou na corrida espacial revelou-se quase
inumerável. Ao mesmo tempo, as mesmas propriedades que tornavam os polímeros
interessantes colocavam problemas ao meio ambiente em absorvê-los, fazendo-os
acumular em vários ecossistemas.
Para
formar os materiais sintéticos orgânicos, a indústria química precisa de
“blocos básicos de construção”, ou seja, bases de carbono que possam ser
combinadas até se obter a conformação e funcionalidades desejadas. Se na
indústria química do século XIX, a fonte principal dessas bases era o carvão,
no século XX, a dominância foi colocada no petróleo, mais especificamente em
algumas de suas frações obtidas do seu refino. Interligava-se, assim, a
exploração e o refino do petróleo em grande volume, já estimulada pela demanda
de combustíveis, com a produção dos compostos químicos. A disponibilidade de
petróleo barato e os ganhos de escala possibilitaram a produção em massa de produtos
químicos a preço baixo. Por outro lado, a construção de grandes complexos
petroquímicos colocou desafios importantes de controle de risco, já que
acidentes poderiam levar a grandes impactos. Além disso, a dependência em um recurso
não renovável e com uma geopolítica conflituosa de fornecimento também viria a
ser outra questão a ser resolvida.
Depois
dos Estados Unidos e a Europa terem vivenciado no pós-guerra um forte
crescimento econômico, cuja ponta de lança foram as indústrias automobilística
e química, as suas sociedades passaram a questionar os efeitos desse
crescimento no meio ambiente. Um marco foi a publicação de As primaveras silenciosas, pela bióloga americana Rachel Carson em
1962. O livro causou controvérsia por criticar o uso do DDT e outros
pesticidas, que poderiam se acumular nos organismos, causando prejuízo a
diversas formas de vida e cadeias alimentares. O DDT foi banido em 1972 nos Estados
Unidos e só foi um dos primeiros exemplos da desconfiança e de intenso debate
público em relação ao uso dos produtos químicos. Em todos esses debates, ganha
a proeminência a incerteza sobre os efeitos desses produtos e anos são
necessários para que os atores cheguem a um consenso mínimo sobre que ação
desse ser tomada.
Um
dos maiores exemplos de controvérsia e da implementação negociada de medidas
para conter os efeitos de um produto químico foi o caso dos clorofluorcarbonos
(CFCs). Então usados em aerossóis, geladeiras, sistemas de ar condicionado e
como solvente na produção de chips de computador, os CFCs possuem a grande
vantagem de serem compostos estáveis e não tóxicos em nosso ambiente imediato.
Contudo, isso lhes permitia acumular-se em nossa atmosfera, sem que seus
efeitos fossem de fato conhecidos. O britânico J. Lovelock levantou essa questão
em 1971 com um artigo na revista Nature.
Na mesma revista, em 1974, os italianos M. Molina
e F. Rowlan defenderam a tese de que apesar dos CFCs serem inertes na
troposfera, eles sofreriam uma fotodissociação na estratosfera, liberando
radicais de cloro. Esses radicais deflagrariam uma série de reações em que as
moléculas de ozônio seriam decompostas e os radicais de cloro seriam novamente
formados, ou seja, poderiam decompor mais ozônio. A camada estratosférica de
ozônio serve para absorver parte da luz em faixa ultravioleta e a diminuição
dessa camada traria impactos negativos diversos, especialmente o aumento da
incidência do câncer de pele. O uso dos CFCs em aerossóis foi banido em diversos países,
porém suas outras aplicações continuaram em debate por bastante tempo. Por fim,
em 1987, foi assinado o Protocolo de Montreal, sob auspícios da Organização das
Nações Unidas (ONU), instituindo um cronograma progressivo para a parada de
produção e consumo de CFCs em nível global. Uma corrida técnica aconteceu para a
colocação de substitutos no mercado, sendo os principais os hidrofluorcarbonos
(HFCs), os quais não possuem cloro.
Percebe-se
claramente, nesse breve olhar sobre a evolução da indústria química, que ela
sempre esteve em um contexto delicado e contraditório. Tendo o reconhecido papel
vital de prover diferentes setores da economia, impulsionando o desenvolvimento
e gerando produtos que permitiram melhores condições de vida à sociedade, cada
vez mais vinham sendo impostos ao setor químico a preocupação com as questões
ambientais, os desafios de uma produção mais limpa e a necessidade da
substituição de produtos poluentes ou danosos à saúde.
Impelido
por esse cenário colidente, nos anos 1990, uma nova abordagem é proposta pelos
cientistas, onde algumas diretrizes foram estabelecidas para nortear o futuro
da atividade em
química. Nessa época, é cunhado o termo “química verde” e a
substituição de solventes tóxicos, o uso de matérias primas renováveis, a
utilização de catalisadores e o desenvolvimento de novos produtos e processos
mais seguros passam a orientar a busca por soluções tecnológicas e inovações
químicas.
Esse
processo de transformação e instituição de um segmento industrial moderno, de
uma nova indústria química, uma indústria química “verde”, chega ao século XXI ainda
com muitos desafios. Parece claro que a biomassa e as fontes renováveis
constituirão a plataforma química para a produção de novos produtos químicos. A
biomassa deve assumir uma posição estratégica em um cenário que, ao longo de todo
o último século, foi praticamente exclusivo do petróleo. Solventes, plásticos,
aditivos, lubrificantes, surfactantes, emulsificantes e combustíveis, entre uma
ampla gama de outros produtos, podem vir a ser produzidos diretamente a partir
de insumos renováveis. Preferencialmente, daqueles disponíveis em grandes
volumes devido à produção associada a outros segmentos industriais já estabelecidos.
Pode-se
esperar, inicialmente, o uso de recursos renováveis na manufatura dos mesmos
compostos antes obtidos de fontes fósseis. Nesses casos, o desafio encontra-se
no estabelecimento de novos processos capazes de beneficiar os mais distintos
“blocos básicos de construção”, onde o uso de catalisadores é questão central. Iniciativas
atuais já se utilizam dessa abordagem, notadamente na introdução dos plásticos
verdes. Neste início de século, esses produtos são objetos de uma nova corrida
tecnológica no setor industrial com forte impacto também nos setores correlatos
da economia. A introdução dos polímeros verdes representou um importante passo
na concretização de uma indústria química sustentável e uma significativa
contribuição às políticas para crescimento do carbono neutro. Deve-se
ressaltar, no entanto, que em alguns casos, os mais imediatos, o produto final
em si ainda pode ser agente de poluição ambiental se descartado diretamente nos
mais diversos ecossistemas.
A
consolidação da estratégia “verde” na indústria química, com metas mais
ambiciosas, onde os impactos ambientais poderão efetivamente ser minimizados, só
deve ocorrer de fato quando novos produtos, com uma base tecnológica
completamente diferenciada e inovadora, forem disponibilizados. E isso
dependerá muito do avanço do conhecimento científico e tecnológico e da
transformação desse conhecimento em produtos. Essa transformação não é determinada
apenas pela indústria, mas pela relevância que a sociedade dará a esses
produtos e como vai selecioná-los segundo requisitos ambientais.
O
momento atual é rico, criativo e promissor para a indústria química e os sinais
são perceptíveis. Esses grandes desafios motivados pelas questões ambientais
que vêm sendo constantemente impostos ao segmento químico constituem ainda
excelentes oportunidades de investimento e provocam a expansão das fronteiras
do domínio tecnológico. A sustentabilidade do setor químico industrial é
possível; contudo, não reside em apenas uma, mas em múltiplas soluções
tecnológicas, além da organização de conjuntos integrados para fabricação de
compostos químicos que atendam a diferentes setores econômicos.
Marco Polli é
pesquisador e consultor, integra o InGTeC (Núcleo de Pesquisas em Inovação,
Gestão Tecnológica e Competitividade) da FEAR-USP. Tem graduação em engenharia química
e doutorado em política científica e tecnológica, ambos os títulos pela Unicamp.
Marco Fraga é
pesquisador e chefe da Divisão de Catálise e Processos Químicos do Instituto
Nacional de Tecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia (INT/MCT). É
graduado em engenharia química pela USP e doutor em catálise e processos catalíticos
pela Unicamp.
1 The unbound Prometheus: technological change and industrial development in Western
Europe from 1750 to the present. 2a. ed. Cambridge: Cambridge.
University Press. 2003. 590p.
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