O
Fórum Social Mundial de 2009 foi realizado em Belém do
Pará no início deste ano. A realização do
evento na Amazônia levou a um foco de discussões sobre a
soberania e autonomia dos povos indígenas, dos quilombolas e
de outras comunidades tradicionais; o direito à terra, ao
território, à soberania alimentar e energética.
A proposta do evento continua sendo a de apresentar “um outro mundo
possível”, com a opção de um modelo
alternativo às discussões do Fórum Econômico
Mundial e sugestões para que os Estados nacionais possam
cumprir as normas de direitos humanos.
Os
movimentos das comunidades tradicionais representados no evento são
um exemplo de articulação social que partiu do
associativismo local e que hoje assume um formato de articulação
inter-organizacional e conta, ainda, com mobilizações
na esfera pública. Segundo declaração da socióloga Edna Castro, do
Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade
Federal do Pará, à cobertura integrada do FSM, o evento representou uma retomada dos movimentos
sociais, principalmente o indígena, que trouxe propostas
avançadas em termos de organização social e de
demandas ao Estado e à sociedade, no sentido de repensar o modelo
econômico que tem levado a tanta pobreza e à
dizimação de populações tradicionais. Ela
destaca também o movimento negro que se expande com o
movimento quilombola, em nível nacional. Para ela, a questão
da identidade apareceu com atores sociais que não tinham
visibilidade e ganharam espaço na cena política.
André Luiz Ferreira da Silva, advogado que atua junto ao movimento dos caiçaras da Juréia, litoral de São Paulo, ele mesmo nascido e criado na região, explica que a mesma lógica que está sendo utilizada para o reconhecimento do território das comunidades quilombolas e indígenas, pode ser usada por outros grupos étnicos como os caiçaras, os povos dos faxinais, os ribeirinhos, os caboclos, as quebradeiras de coco de babaçu, entre outros. Todos esses grupos fazem parte da Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, criada pela Lei 6.040/07, que regula a política nacional desse segmento da população.
Silva diz que a primeira das reivindicações desses povos é o direito à terra, que vai propiciar a manutenção de todos os demais valores, específicos de cada uma das etnias. Nesse sentido, ele lembra do projeto de Alfredo Wagner Berno de Almeida, professor convidado da Universidade Federal do Amazonas, que resultou no mapeamento geográfico da ocupação dos grupos étnicos da Amazônia. Segundo ele, a partir desse tipo de levantamento, é possível dimensionar a ocupação humana desses povos, nas diferentes regiões, traçando uma nova cartografia, que pode fundamentar o requerimento do território, conforme os usos e costumes tradicionais desses povos.
“A reivindicação dessas comunidades é para o reconhecimento de que a ocupação da área é legítima. Elas querem garantir o direito de usufruto de todos os bens que a terra possa produzir, de permanecer ali e desenvolver atividades agrícolas e culturais”, afirma Silva. Esse direito é passado para os seus descendentes, mas eles não têm a propriedade da terra. Esses povos vêm ocupando essas áreas ao longo de muitos anos, de formas diversas. Algumas dessas terras pertenciam ao Estado, outras eram propriedades particulares e foram herdadas, ou griladas. No caso dos caiçaras, ressalta Silva, as terras que eles ocupam são hoje Unidades de Conservação e pertencem ao Estado.
Em se tratando especificamente das Unidades de Conservação, Silva lembra que a situação causa um certo conflito entre as diferentes legislações, uma vez que o uso da terra nessas áreas é restringido pela legislação ambiental. No entanto, o advogado diz que inúmeros estudos, como o do antropólogo da USP Antonio Carlos Diegues, indicam que a permanência dessas comunidades nessas áreas, além de ter aumentado a biodiversidade, é um dos meios mais eficazes de garantir a preservação efetiva, porque eles têm um vínculo com a terra diferente das comunidades de exploração capitalista dos recursos naturais. “Eles, na verdade, são os guardiães dessas áreas protegidas”, diz o advogado. Essa argumentação tem sido fortemente usada em prol do reconhecimento dos territórios.
Direito das mulheres
Durante a realização do último FSM, os movimentos feministas também estiveram bem representados desde a abertura do evento, na Marcha pela Paz. Além das diversas atividades ao longo do evento, no último dia, em assembléia, os movimentos escreveram uma declaração na qual afirmam que as mulheres irão seguir “comprometidas com a construção do movimento feminista como uma força política contra-hegemônica e um instrumento das mulheres para alcançar a transformação de suas vidas e de nossas sociedades, apoiando e fortalecendo a auto-organização das mulheres, o diálogo e articulação das lutas dos movimentos sociais”.
É cada vez maior a representatividade das mulheres no ativismo social. Segundo Maria Luísa Mendonça, jornalista e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, e uma das organizadoras do Fórum, entre suas conquistas está a desmistificação de alguns padrões a respeito da posição das mulheres na sociedade e também estereótipos que alimentam casos muito graves de violência contra as mulheres. “Essa ideologia que permeia toda a sociedade tem consequências concretas”, diz, citando dados sobre uma pesquisa divulgada em um dos relatórios da Rede, que apontava que a cada 15 segundos uma mulher era espancada. “É preciso fazer um trabalho de conscientização contra as ideias que permitem que essas coisas aconteçam, mas o Estado tem que interferir com políticas públicas”, acrescenta a coordenadora da Rede Social. “Nesse sentido”, completa, “a Lei Maria da Penha foi um avanço. Mas, apesar dessa pesquisa mostrar que as agressões ocorrem em todas as classes sociais, sabemos que o desemprego e a falta de condições materiais são fatores que contribuem com essas agressões”.
Segundo artigo da professora associada do Departamento de Sociologia da Universidade de San Francisco, na Califórnia, e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Cecilia MacDowell Santos, a Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 2006) é uma lei de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres, criada após anos de denúncias contra a violência praticada contra as mulheres no âmbito doméstico e familiar. A lei representa uma importante conquista do movimento feminista e de mulheres, e um avanço significativo da legislação brasileira em matéria de combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Mas tal avanço e os consequentes efeitos mobilizatórios na sociedade e no Estado não devem diminuir a necessidade da adoção ou da reforma de outras leis e de outras políticas públicas de combate a variadas formas de violência contra as mulheres, diz o artigo.
Além da promulgação da Lei Maria da Penha, Mendonça fala que a sociedade já conseguiu outros avanços em relação aos direitos humanos. “Temos algumas vitórias importantes, mas temos derrotas também, decorrentes da própria natureza do nosso sistema jurídico. No julgamento do caso da Irmã Dorothy, por exemplo, tivemos sucessivamente algumas decisões favoráveis no sentido de combate à impunidade, mas infelizmente, no último júri uma decisão foi revertida”, diz ela. E complementa: “o tema direitos humanos, de forma mais ampla, ganha, em alguns momentos, uma visibilidade maior, mas em outros, retrocede. No ano do lançamento do filme Tropa de elite , foi mais difícil divulgar o nosso ponto de vista, porque a sociedade estava permeada pela ideia de violação dos direitos, e no ano passado, talvez também pela comemoração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos, houve uma maior adesão ao tema”.
A história da mulher que dá nome à Lei
“A Lei 11.340/06 é chamada de Lei Maria da Penha em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes que, em maio e junho de 1983, foi vítima de duas tentativas de assassinato por parte do seu ex-marido, Marco Antônio Heredia Viveros, ficando paraplégica em função da primeira agressão. No primeiro julgamento, ocorrido nove anos depois do crime, Viveros foi condenado a uma pena de 15 anos de reclusão, reduzida a 10 anos por se tratar de réu primário. Em 1996, a decisão do júri foi anulada e o réu, sendo submetido a novo julgamento, foi condenado a 10 anos e 6 meses de reclusão. Recorrendo da sentença diversas vezes e valendo-se, inclusive, de práticas de corrupção, Viveros permaneceu em liberdade por dezenove anos, sendo preso em outubro de 2002, pouco antes de o crime prescrever. Pode-se afirmar que a conclusão do processo judicial e a prisão do réu só ocorreram graças às pressões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que recebera o caso em 1998”.
Fonte: Direitos Humanos das Mulheres e Violência contra as Mulheres: Avanços e Limites da Lei "Maria da Penha", de Cecilia MacDowell Santos |
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Artigo do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida sobre as comunidades tradicionais de Alcântara – MA
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