Neste texto pretendo abordar, de forma despretensiosa e não exaustiva, o tema da gestão pública do turismo no Brasil. Na verdade, essa tarefa – que a princípio aceitei sem muito hesitar – impôs-se como algo difícil e delicado, na medida em que, dada a vastidão e inúmeras possibilidades de abordar o assunto, exige o estabelecimento de um recorte – ou, como diria Lacoste(1), a delimitação de uma escala –; fato este que, por sua vez, ajuda a definir o próprio fenômeno em análise.
O que dizer a respeito da gestão pública do turismo? Dada a expressiva diversidade das questões e contextualizações que requer, sobretudo num país de dimensões continentais, é difícil caracterizar a gestão pública do turismo. Como nos instrui Vandenberghe(2), uma história pode ser contada de muitos modos: por um corte histórico; temático, abordando as grandes questões que chamam a atenção para a área; pelas figuras centrais que construíram visões e ações; enfim, sempre estamos a (re)produzir um discurso que é (ou pode ser visto) em perspectiva, como uma visão dentre múltiplas possíveis. Dessa forma, sem prender-me à ideia de uma tentativa fiel de reconstrução dessa discussão, proponho abordá-la seletivamente a partir de pontos chave que envolveram, e ainda têm envolvido, a atenção e os esforços, intelectuais e práticos, de um conjunto muito difuso de atores que interatuam, direta ou indiretamente, nesse campo(3).
Para tanto, abordarei, ainda que de forma sucinta e propedêutica, os seguintes pontos: (1) o campo prático (das políticas em ação), (2) o campo acadêmico, (3) os temas recorrentes, (4) as análises por fazer, (5) os desafios da implementação de uma gestão pública, democrática e participativa no turismo, (6) encerrando com o chamamento pela construção de uma agenda institucional da gestão pública do turismo no Brasil.
No campo prático, à primeira vista(4), a gestão pública do turismo diz respeito ao aparelho estatal e às formas de que ele se vale para formular, planejar, propor, implementar, monitorar e avaliar ações – programas e projetos – que versem sobre a matéria do turismo.
No Brasil, os primeiros indícios da intervenção pública no turismo datam de fins da década de 1930, com a criação da Divisão de Turismo, em âmbito do Departamento de Imprensa e Propaganda da Presidência da República – DNIP, no intuito de promover e coordenar o desenvolvimento do turismo nacional, sendo a primeira vez em que o turismo aparece de forma oficial na estrutura organizacional do Estado, e cujo propósito ainda está mais ligado à regulamentação e ao controle aduaneiros do que à atração de turistas. Todavia, é a partir daí que paulatinamente o turismo irá ascendendo na estrutura organizacional do Estado, passando pela Política Nacional de Turismo pelo Decreto-Lei 55/66, com a criação e articulação de diversas entidades que deviam lhe dar suporte como o Conselho Nacional de Turismo - CNT, a Empresa Brasileira de Turismo – Embratur, o Sistema Nacional de Turismo e o Fundo Geral do Turismo – Fungetur; até culminar com o Ministério do Turismo em 2003(5). A análise do aparato estatal e de sua estrutura organizacional é importante porque revela, entre outras coisas, a capacidade de ação, em termos de recursos, mas também aquilo que oficialmente é definido como sendo de interesse público em matéria de turismo – a despeito de outras demandas que não alcançam esse chancelamento de reconhecimento e legitimidade institucional.Se, por um lado, ao longo do último século, no Brasil, assiste-se a um progressivo aumento de importância e ganho de legitimidade da atividade turística por parte do Estado; por outro, observa-se ainda uma baixa capacidade de planejamento e execução de políticas, realizadas de forma amadora, sem estudos prévios, pautadas por pressões econômicas e, sobretudo, sem capacidade técnica operacional para seu monitoramento, sua fiscalização e correção. Tais problemas não passaram desapercebidos por parte dos estudiosos que, assim como a trajetória do campo pratico, também passou por um processo de crescimento quantitativo e inflexão qualitativa no último quartel do século XX, contribuindo assim para a institucionalização do campo turístico no Brasil.
No cenário acadêmico, ainda que recentemente tenha havido boom quantitativo e iniciado um processo de mudança qualitativa dos estudos sobre gestão pública do turismo no Brasil, a paisagem intelectual sobre o assunto é árida, raquítica e pouco desenvolvida. Para se ter uma ideia, a literatura existente até o ano de 2014(6) – tomando como referência os livros publicados no país em uma consulta a mais de 20 catálogos das principais editoras(7) – foram encontrados apenas seis livros que tratavam, direta ou indiretamente, o tema de gestão pública do turismo.
O mercado editorial brasileiro de livros de turismo ainda é relativamente pequeno se comparado ao de outras áreas mais "tradicionais" como administração, ciências sociais e economia, dentre outras. Além disso, nem todas as editoras que atuam no Brasil possuem coleções específicas sobre turismo. A maioria delas sequer publica livros sobre esse assunto. Em geral, há poucas obras e que versam sobre subtemas bastante diversificados. Há exceções, como a editora Aleph ou a Senac Nacional, que possuem séries ou coleções específicas sobre turismo. Mas, ainda sim, o volume de publicação e a diversidade de títulos ainda são pequenos, não excedendo poucas dezenas de títulos, a maioria sobre os mesmos temas. Isso nas principais editoras que publicam o assunto. As demais possuem apenas publicações esparsas, quando as possuem.
No que tange especificamente ao tema em questão, mesmo se consideramos todas as editoras que já publicaram algum título sobre turismo, o que há são alguns poucos livros sobre políticas públicas de turismo que se aplicam de forma introdutória por meio de manuais, que traduzem de forma pouco profunda alguns conceitos de outras áreas para o turismo, prescrevendo adaptações de como o conhecimento (ou o conceito) é utilizado na área de origem e como poderia ou deveria ser utilizado no turismo. Soma-se a isso que, embora muitos sejam didáticos, há, por outro lado, um desafio nem sempre alcançado por eles de cumprir com a manutenção do rigor metodológico exigido para essa tarefa.
Além disso, especificamente no que tange à temática de gestão pública do turismo, observa-se que há uma escassez bastante significativa de materiais. Os poucos livros existentes que abordam direta ou indiretamente a questão não alcançam o foco específico da gestão pública estatal do turismo. Em sua maioria, tratam de aspectos de planejamento e, em menor escala, abordam de forma superficial a necessidade de políticas públicas para o setor ou a relevância do Estado enquanto ator imprescindível para a estruturação da atividade.
Essa análise preliminar dos livros é reveladora pois denota explicitamente o estado da arte do conhecimento produzido, socialmente aceito, difundido e legitimado na área. Ou seja, representa a base sobre a qual os conhecimentos serão repassados aos alunos em curso, futuros egressos profissionais da área. Se a base é pequena e pouco desenvolvida, como podemos formar pessoas com um grau significativo de conhecimento sobre o assunto?
Em matéria de estudos sobre gestão pública do turismo, ainda que muito se tenha avançado nos últimos anos, os trabalhos se centram predominantemente nas temáticas mais tradicionais e comumente estudadas, tais como: história da gestão pública estatal do turismo, políticas públicas em turismo: policy cicle, análise dos processos de gestão e implementação de pública do turismo, análise e avaliação dos efeitos (esperados e/ou efetivos) da gestão pública estatal em turismo; além desses temas, com especial incidência de estudos encontram-se aqueles que se dedicam à análise textual de planos e políticas públicas de turismo, seja do último plano nacional, seja – nos trabalhos de maior fôlego – das últimas décadas. Ainda assim, existe uma farta literatura sobre esse aspecto, que já está suficientemente documentado – ainda que, inversamente ao volume de trabalhos dedicados, não o seja de forma necessariamente aprofundada. Nesse sentido se observa um contingente reduzido dos temas de estudo, o que demanda uma ampliação do mesmo a fim de se perceber, de forma mais aprofundada e em suas múltiplas vertentes e possibilidades analíticas, a sua manifestação.
Por outro lado, a identificação desses temas recorrentes nos permite observar a existência daqueles que são marginalmente trabalhados e, portanto, constituem em fronteiras de avanços para a geração de conhecimento, seja no plano teórico como empírico. Dentre eles destacam-se: a teorização (própria – não apropriada) da gestão pública estatal em turismo; fatores contextuais e extra-sistêmicos condicionantes da gestão pública estatal em turismo, seja como premissa (ex-ante), seja concomitante ao processo, seja como consequência; a estrutural organizacional e os mecanismos de gestão pública do turismo; avaliações, sobretudo, de eficiência administrativa, da gestão pública e das políticas públicas de turismo; analise econômico-financeira da gestão pública em turismo; metodologias e técnicas de pesquisa aplicadas ao contexto da gestão pública do turismo, sobretudo, com enfoques voltados para métodos alternativos como pesquisa-ação, a pesquisa participante e o método clínico.
Diante desse breve cenário, sobretudo no contexto social e político brasileiro, de uma onda participativa recente (pós 1988) via um processo de organização social dos coletivos e movimentos sociais, emerge a pergunta: quais os desafios da implementação de uma gestão pública, democrática e participativa no turismo? Muitos são eles, desde os problemas da definição e entrada de temas na agenda pública, passando pelos problemas operativos de concepção e formulação de políticas, até chegar aos de implementação e avaliação. Mas além desses, dois pontos chave, ainda marginalmente abordados – ou mesmo, regularmente, omitidos – creio que merecem ser discutidos: (1) a própria constituição e composição de uma esfera pública do turismo e (2) a própria produção de conhecimento que servirá de base para sua aplicação empírica em formas de gestão e políticas específicas de turismo.
O primeiro, implica rever e questionar a legitimidade dos espaços públicos de tomada de decisão, quem são seus atores e quais as lógicas subjacentes que os movem a propor legitimar assuntos de interesses particulares e classistas como públicos. Um exemplo empírico pode ser visto nos conselhos (municipais, estaduais e federais) de turismo, mecanismos em voga baixo à concepção de uma suposta ampliação da participação pública da sociedade civil organizada, que nem sempre cumprem seus propósitos, seja pela própria constituição desses espaços que operam de forma seletiva, seja pelos atores que deles participam (e suas interações) que não necessariamente conduzem à produção de uma vontade coletiva em um sentido do interesse público bem compreendido(8), seja ainda pelos constrangimentos ontológicos, espaço-temporais que obstaculizam a participação de uma forma mais ampla da sociedade como o que se propõe ou espera.
Já o segundo, se refere à ainda baixa capacidade de geração de conhecimento sobre o tema e, por consequência, capacidade de sua transferência e aplicação do ponto de vista empírico, nas distintas fases e processos da gestão pública do turismo. Se há algo comum a todos eles é o fato de que toda decisão e ação depende de algum grau de conhecimento da realidade e das possibilidades que nela se apresentam para os cursos de ação específicos(9). Se toda ação prática no mundo real depende de algum grau de conhecimento deste, então, como consequência imediata, o volume de conhecimento produzido e assimilado socialmente serviria de base para as decisões, sejam elas de empreendimentos públicos ou privados, para a alocação de recursos e, dessa forma, para a potencialização de realizações concretas. Dito de outro modo, nossa (in)capacidade de gerar políticas efetivas de turismo está intrinsecamente ligada ao volume do conhecimento que temos.
Como, então, avançar frente a um atual contexto de pouco conhecimento em matéria de gestão pública do turismo, a problemas práticos de diversas ordens na forma como são elaboradas e geridas as políticas de turismo e à sua efetividade em termos de intervenção na realidade? Parece que um ponto comum tangencia todos esses elementos, a um ver, que seria a construção de uma agenda institucional de pesquisa e intervenção(10) em matéria de gestão pública do turismo. Sem uma articulação mínima, que viabilize a produção de esforços coletivos e coordenados rumo a um estágio superior, muitos dos esforços que são feitos hoje – diga-se de passagem, ainda poucos e limitados – esvaem-se e são dissipados em investigações isoladas (quando existem), de pesquisadores individuais, com recursos limitados ou mesmo sem eles.
E, mesmo que contra todas as probabilidades, o fruto desse conhecimento gerado é produzido, e inicia-se outro desafio, quiçá maior: fazer com que a administração pública se aproprie dele e o utilize para se ter um melhor embasamento informacional e, por suposto, melhor capacidade de decisão e ação. Quando isso não ocorre, lamentavelmente, ficamos à mercê de políticas que alocam recursos, finitos e escassos, com base em suposições do senso comum – ainda que, na melhor das hipóteses, bem intencionadas – cujo potencial de impacto e resolução de problemas efetivos é bastante limitado, pois, de fato, nunca se saberá quais eram as áreas onde se deveriam investir, quanto e (sem dados pretéritos) como monitorar e avaliar sua evolução.
Em suma, urge construir uma política das políticas, a concertação de esforços entre teoria e prática; entre produção, assimilação e uso social do conhecimento; entre os intelectuais para a produção de conhecimento concertada; entre academia, Estado e sociedade civil organizada para a produção de uma agenda institucional para a gestão pública do turismo no Brasil.
Thiago Duarte Pimentel é doutor em ciências sociais, professor da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, professor visitante do Postgrado en Ciencias Sociales da Universidad Autónoma de Sinaloa (México), vice presidente do Conselho Municipal de Turismo de Juiz de Fora, coordenador do Observatório Econômico e Social do Turismo (OEST), coordenador do Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas, editor de Anais Brasileiros de Estudos Turísticos (Abet). thiagodpimentel@gmail.com.
Notas
1 - Lacoste, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 14ª Ed. Trad. Maria C. França. Campinas: Papirus, 2008 1973.
2 - Vandenberghe, F. "O esgotamento do novo movimento teórico e a era dos epígonos". In: Invenção do Contemporâneo, 2009, Campinas. CPFL. Palestra publicada em vídeo em: 09/10/2009 às 22:45:05. Disponível em: www.cpflcultura.com.br/site/2009/11/30/integra-o-esgotamento-do-%E2%80%9Cnovo-movimento-teorico%E2%80%9D-e-a-era-de-epigonos-frederic-vandenberghe. Acesso: 25 ago 2011.
3 - Tomo como referência o conceito de campo da sociologia francesa da segunda metade do século XX (cf. Bachelard, G. A experiência do espaço na física contemporânea. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010), emblematicamente popularizado por Pierre Bourdieu (Bourdieu, P. "Algumas propriedades sobre os campos". In: Ortiz, R. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984. pp. 89-94)
4 - Nos remetemos aqui, inicialmente, a uma visão tradicional, que liga o público ao Estado. Muito embora se possa falar em gestão pública não estatal, promovida pela sociedade civil, embora, como condição necessária esta tenha que assumir uma forma organizada, em algum grau de estruturação da ação coletiva (cf Pimentel, T.D. Pimetel, T. D. Space, identity and power: outline of a morphogenetic and morfostatic theory to the sociology of organizations. 471f. Thesis (Ph.D.) – Institute of Human Sciences, Federal University of Juiz de Fora, Juiz de Fora (MG), 2012).
5 - Para ver em detalhe um panorama histórico dessa discussão cf. Pimentel, M. P. C.; Pereira, J. R.; Pimentel, T. D.; Carrieri, A. de P. "As cinco vidas da agenda pública brasileira de turismo". Revista acadêmica Observatório de Inovação do Turismo, v. VI, p. 1-25, 2011
6 - Importa ressaltar que, em 2014, foi lançado o livro organizado por Pimentel, T. D.; Emmendoerfer, M. L.; Tomazzonni, E. L. Gestão Pública do turismo no Brasil: teorias, metodologias e aplicações. 1. ed. Caxias do Sul (RS): Editora da Universidade de Caxias do Sul / EDUCS, 2014. v. 1. 528p; que se posiciona diametralmente de forma oposta à literatura previamente existente, sendo um trabalho coletivo resultante da integração de esforços de distintos pesquisadores e professores do país, de dezenas de instituições e unidades da federação, representado de alguma forma como referência no cenário brasileiro por tratar, de forma integrada e abrangente, a temática da gestão pública do turismo, por meio dos principais desenvolvimentos teóricos, metodológicos e aplicações recentes, como uma forma necessária para a compreensão contextual e localizada da evolução do turismo no Brasil, bem como de suas reais limitações e também seus avanços.
7 - Numa contagem mais sistemática, mas não exaustiva, identificamos cerca de 65 editoras que atuam no mercado brasileiro. Destas selecionamos, arbitrariamente, apenas 22 (vinte e duas, que, de acordo com nosso conhecimento prévio, possuíam alguma publicação sobre turismo. Além disso, consideramos também editoras de grande expressão nacional como, por exemplo, a Edusp. Considerando esse cenário total de 65 editoras, pode-se perceber que menos de um terço (1/ 3) já publicou algum título sobre turismo. E dessas, 11 já possuem mais de 10 títulos em seus catálogos. Das 19 editoras que possuem algum título sobre turismo, apenas seis possuem algum relacionado, direta ou indiretamente, à gestão pública do turismo.
8 - Tocqueville, A. de. A democracia na América. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. 597 p.
9 - Simon, H. A. Administrative behavior. New York: The Macmillan Company, 1948.
10 - Pimentel, T. D. "Projeto de Pesquisa-Extensão/PEX: por uma estratégia de intervenção social a partir dos estudos clínicos da sociologia da ação organizacional". Administração Pública e Gestão Social, v. 4, p. 100-124, 2012.
|