O conceito de infotainment, palavra do inglês, uma justaposição de informação e entretenimento, parece descrever as aparições da ciência na TV. Sim, a maior das mídias dedica espaço para a ciência, seja nos telejornais dos canais abertos, ou nos canais pagos inteiramente voltados ao tema, como Discovery Channel, National Geographic Channel ou BBC, dentre outros. Mas como a divulgação científica é feita na mídia do espetáculo? As questões que daí surgem são relacionadas a alguns dos preceitos básicos do jornalismo, como neutralidade e objetividade: como esse entretenimento mostra a ciência, seus conflitos e impactos sociais ou ainda suas questões éticas?
O termo “ciência sexy” foi por cunhado por Jon Palfreman em um artigo de 2002. O ex-produtor de programas científicos da BBC e da PBS, atualmente professor de jornalismo da Universidade de Oregon e dono de uma produtora que faz programas científicos para a mesma PBS, afirma que a maior parte dos programas atuais deixa a ciência moderna de lado e tem como objeto grandes espetáculos, como expedições arqueológicas, fenômenos naturais, engenharia de grande escala e do mundo dos animais, temas que chamou de sexy, por despertarem curiosidade e interesse. “Eu acredito que isso acontece basicamente por duas razões: como produzir programas é muito caro, é preciso apostar naquilo que já se sabe que a audiência gosta, já que todos os canais fazem pesquisa de mercado. Segundo, porque esses programas podem ser repetidos por muito tempo, já que não ficam desatualizados”, explicou.
Ao analisar a grade de programação dos canais pagos dedicados à ciência é possível comprovar a maciça presença desses programas “sexy”. Os grandes destaques do Discovery Channel são voltados às maravilhas da engenharia moderna, como Superestruturas, Feras da Engenharia e Mega-Construções. No National Geographic Channel podemos ver programas semelhantes, como Indústria Humana, Obras Incríveis e Engenharia do Futuro. Ambos possuem muitos horários dedicados a programas com animais, como Gigantes da Patagônia e Matar ou Morrer, no primeiro, ou World's Deadliest Animals e Predadores a Espreita, no segundo. Há ainda na grade dos dois canais muitos programas com temas históricos e do estilo ‘como funciona?', de curiosidades sobre novas tecnologias.
Jon Palfreman afirma que a ciência moderna só aparece quando pode ser inserida num contexto de controvérsia, como recentemente nos temas de alimentos transgênicos ou o aquecimento global, que foram assuntos de programas tanto no Discovery, quanto no National Geographic. O produtor lamenta que as pesquisas atuais deixem de ser divulgadas. Uma outra crítica feita a esses programas científicos, mais focados em curiosidades, é que não refletem a complexidade do fazer científico e raramente apresentam os conflitos entre as diferentes vozes da ciência.
Lacy Barca, jornalista e produtora que atuou em programas como Globo Ciência e nos canais Futura e TVE do Rio de Janeiro e hoje é pesquisadora da nova TV Brasil, também entende que a maior parte dos programas não reflete a complexidade da ciência. No entanto, ela não vê problemas em apresentar a ciência como entretenimento. “O entretenimento informativo é somente uma das maneiras possíveis de abordar conteúdos na produção de programas. O grande desafio da boa televisão é tornar atraente qualquer conteúdo para qualquer público. A ciência, nesse caso, é o espetáculo. Ser atraente não significa baixar a qualidade ou esquecer o compromisso com o conteúdo. Pode-se fazer divulgação científica em qualquer formato: jornalismo, documentário, ficção, humor, aventura... Por que não entreter e informar? Nenhum telespectador também agüenta uma programação inteira de hard-sciente ”, defende ela.
A pesquisadora lembra que o programa de divulgação científica melhor avaliado na Europa neste momento é sobre sexo: How to get more sex, que foi produzido pela ITV Inglesa e explica a atração sexual do ponto de vista da ciência. O primeiro programa é sobre o papel do olfato. Jon Palfreman também concorda com a necessidade de tornar atraentes os tópicos que a primeira vista não sejam alvos de curiosidade. “É preciso sim falar dos tópicos importantes e encontrar maneiras de torná-los interessantes. Deixar de abordá-los é falta de coragem dos produtores” sentencia.
Canais públicos
O produtor americano concorda que um jornalismo científico mais apurado é feito pelos canais públicos, como a BBC britânica ou a PBS americana. “Eu tive que achar um lugar no mercado em que eu pudesse ser um jornalista científico da maneira que eu penso a profissão. Foi um desafio para mim, assim como é para todos. Acabei quase que restrito aos canais públicos, como a PBS. Eu não me vejo trabalhando em um canal como Discovery, por exemplo” afirma. Palfreman atualmente produz para o programa Frontline, do canal.
Os primeiros programas de ciência na TV mundial foram feitos pela BBC. Um dos programas mais famosos é o Horizon, uma série de documentários de uma hora de duração, veiculado semanalmente em horário nobre, desde 1964. Lacy Barca conta que a Science & Nature Division da BBC é maior do que muitos canais inteiros de televisão no Brasil, como a TV Cultura e a TV Brasil, as quais compõem a televisão pública brasileira. A divisão também dispõe de um orçamento bastante volumoso e emprega centenas de pessoas, entre produtores de televisão, redatores de programas, criadores de formatos, artistas e técnicos.
Segundo ela, no Brasil, a TV Pública ainda não descobriu como produzir programas sobre ciência e tecnologia. “No Brasil, a divulgação científica nasceu pública, na TVE do Rio de Janeiro, em 1981. Mas não sobreviveu. Foram somente dez programas da série Nossa Ciência”, lembra. Diminuiu o espaço da TV para a ciência. Hoje, a TV Brasil exibe quatro programas de meia hora por semana, num total de duas horas semanais. Desses programas, dois são de caráter ambiental (Expedições e Repórter ECO, da TV Cultura), um é sobre saúde (Saúde Brasil) e um é produzido pela Universidade de Joinville (Universo Pesquisa). O único programa regular é o Globo Ciência, produzido pela Fundação Roberto Marinho, desde 1984. E depois surgiu o Globo Ecologia que também perdura. Ambos vão ao ar aos sábados às 6 da manhã. E nos telejornais, quando a ciência aparece é para abordar temas relacionados à saúde. Ou seja, tanto a TV pública brasileira, quanto a TV privada produzem muito pouco sobre ciência e tecnologia.
Questões éticas da divulgação científica em TV
Um recente estudo da revista Nature mostrou que 9% dos cientistas, em uma amostra de 2212 entrevistas, disseram já ter testemunhado algum caso de falsificação de resultados, plágio ou invenção de dados. Se o levantamento for uma amostra representativa, dizem os autores, mais de 3.000 casos de desvio ético podem estar ocorrendo anualmente nos EUA. Alguns casos de fraude se tornaram célebres como o de Jan Hendrick Schön, pesquisador dos Laboratórios Bell e tido até como um jovem gênio da física. Ele havia publicado cerca de 70 artigos científicos, muitos deles em revistas de renome. No entanto, alguns de seus colegas consideravam seus resultados demasiadamente perfeitos e notaram que alguns gráficos de três experimentos diferentes possuíam partes idênticas. Foi aberto um inquérito e foi constatado que ele havia forjado seus resultados.
Se na ciência em si existem problemas éticos, na divulgação científica eles se misturam com as questões éticas do próprio jornalismo. A influência do patrocinador no conteúdo do programa é um fantasma na televisão. Tanto Palfreman, quanto Barca enfatizam os altos custos de se fazer televisão. “Não dá para sobreviver sem bons investimentos. Lembram do Repórter Esso? Pois é. O telejornalismo nasceu patrocinado?” lembra a brasileira, que diz não perceber influências de marcas, de produtos ou de um eventual patrocinador no conteúdo dos programas de divulgação científica no Brasil.
A pesquisadora da TV Brasil cita o caso de uma produção atual, como a expedição “Across the Amazon”, uma parceria do National Geographic Channel e a revista National Geographic com a Toyota, que mostrará uma viagem da costa leste ao extremo oeste do continente sul-americano. Projetos como estes são chamados de “branded content” (conteúdos de marca), idealizados para viabilizar os custos de produção. Mas Barca pergunta: “E se o programa for sobre saúde e o patrocinador for um fabricante de medicamentos?”
Os altos custos das pesquisas científicas têm levado a chamada privatização da pesquisa científica – o investimento de capitais industriais nas universidades, institutos e centros de pesquisa e o patrocínio a pesquisadores. Isto traz ao jornalismo alguns problemas: as melhores notícias têm como fonte a própria imprensa, já que os resultados de muitas pesquisas são segredos industriais que só chegarão ao conhecimento do público após a obtenção da respectiva patente. Ou ainda, existe o risco de que as informações cedidas para a imprensa atendam aos interesses comerciais das empresas patrocinadoras, prejudicando o conteúdo da divulgação. “É sempre bom lembrar que a ciência não está acima do bem e do mal. Cientistas têm dúvidas e cometem erros. E aprendem com eles. Jornalistas e produtores de televisão também”, conclui Barca.
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