10/04/2011
Com toda a probabilidade do mundo, o eventual leitor que abra um
exemplar de O nome da Rosa hoje,
trinta anos após sua primeira publicação, e encare ser transportado para uma
abadia fictícia nas montanhas do norte da Itália no ano de 1327, já conhecerá
as linhas gerais da trama urdida por Umberto Eco. Narrada pelo ingênuo Adso de
Melk, a história da investigação do sábio inglês Guilherme de Baskerville sobre
misteriosas mortes de monges termina com a descoberta dos
assassinos e das armas, como numa boa história de Sherlock Holmes. No
centro da intriga, um livro raro, raríssimo, e a maior biblioteca da
cristandade medieval. Engana-se, porém, quem pensa ser o livro apenas uma homenagem a Conan
Doyle ambientada no século XIV. Eco fez questão de impregnar a conclusão de seu
romance histórico com o clima intelectual do final do século XX – em certo
sentido, oposto às certezas novecentistas. Predomina ao final uma sensação de
incômodo: o sucesso da investigação é relativo, seus resultados são
contaminados pelo próprio investigador, seus caminhos são tortuosos e
orientados pelo acaso, mais por acaso do que pela inegável argúcia do detetive, incapaz de
construir uma interpretação unívoca dos acontecimentos. Por fim, culmina
em desgraça: a apoteótica destruição da abadia num enorme incêndio. Num mundo
de fixação pela ordem, a desordem riu por último.
Publicado originalmente em 1980, O nome
da Rosa é o romance de estréia de Eco – que, até então, dedicava sua
escrita apenas a ensaios e tratados de semiótica. Alcançou enorme sucesso
editorial à época de seu lançamento e, como acontece muitas vezes com os best-sellers, foi adaptado para o
cinema, arrebatando um público ainda maior. Por isso, não é pecado o resenhista
entregar com facilidade o enredo. Afinal, já o conta o conhecidíssimo filme – com Sean Connery, o jovem Christian Slater, e F. Murray
Abraham – que sequer resvala nos temas mais significativos do
romance, o que é um ótimo motivo para lê-lo.
Vamos à trama.
A trama
O monge franciscano Guilherme de Baskerville revela-se o Holmes em
pessoa (muito além do sobrenome). Nas primeiras páginas, dá mostras de
observação minuciosa e lógica cortante. Discípulo de Roger Bacon, Guilherme
está mais inclinado a valorizar os dados empíricos e menos afeito a
responsabilizar intervenções sobrenaturais ou divinas nas intrigas humanas.
Logo, o ex-inquisidor, que colocava em dúvida o papel do demônio nos casos de
heresia que investigou, percebe que há algo demasiadamente humano por trás das
sucessivas e misteriosas mortes de monges, durante sua estada na abadia. Adso,
seu aprendiz, narra como o obtuso Watson: vê quase tudo mas não entende quase
nada. Porém, como Guilherme, percebe rapidamente que a vasta biblioteca da
abadia esconde mais do que livros raros – talvez, segredos menos respeitáveis,
perigosos para a alta reputação gozada pelo lugar. Não há acesso direto aos
livros. Tudo é mediado pelos bibliotecários. Mas, à noite, a dupla se esgueira
por passagens secretas que não resistem ao faro de Guilherme, e ganha acesso ao
imenso acervo de livros. Em meio à descoberta de tesouros literários, percebem
estar num labirinto e custam a sair dele.
Quando um monge é encontrado enfiado de cabeça para baixo num
caldeirão de sangue suíno, o ancião Alinardo de Grottaferrata, o homem mais
velho da abadia, associa as mortes às trombetas do Apocalipse: a primeira
trombeta fala de uma chuva de granizo e sangue; de fato, o primeiro monge
morreu durante uma tempestade e seu corpo foi encontrado entre as pedras que cercavam
a abadia; a segunda trombeta fala que o mar virará sangue, e que criaturas
morrerão nesse mar de sangue. E, de fato, havia um monge mergulhado em sangue.
Diferentemente de Alinardo, Guilherme não está disposto a pensar que
os céus estejam desempenhando algum papel nos assassinatos, mas segue a tese
levantada pelo velho. A ideia de que o assassino estivesse buscando emular a
ordem das trombetas para difundir alguma mensagem entre os monges captura sua
imaginação. De fato, as mortes subsequentes parecem seguir a ordem do
Apocalipse. O senil Alinardo poderia, portanto, ter descoberto sem querer uma
chave para interpretar os sinais e chegar ao assassino. O investigador se
convence dessa estrutura.
Eis um erro que, no entanto, não impede que Guilherme seja colocado
quase ao acaso (e, também, graças a um sonho de Adso) nos trilhos que levam
corretamente a Jorge de Burgos, outro ancião do mosteiro. A voz deste é, ao
contrário da de Alinardo, sã, ouvida e respeitada. Jorge é o verdadeiro
guardião da biblioteca e das boas maneiras intelectuais entre os monges.
Vigilante, detesta e condena o riso no scriptorium,
local de trabalho dos copistas e ilustradores: “o riso é incentivo à dúvida”,
diz.
Jorge de Burgos é cego. Qualquer leitor mais ou menos atento saberá
ver aí uma homenagem ao literato e escritor argentino Jorge Luis Borges. A
profundidade da analogia, entretanto, deverá ser julgada por cada um: no Pós-escrito a O nome da Rosa, Eco
limita-se a dizer que “biblioteca mais cego só pode dar Borges, mesmo porque as
dívidas se pagam”.
De volta à trama: como Guilherme descobre no final, Jorge é o
responsável pelo envenenamento de três dos monges mortos, mas nem todas as
mortes são obra de Jorge. O primeiro monge havia se jogado do alto do edifício,
como temia o abade e deduzira Guilherme. Adelmo, o ilustrador suicida, pôs
término à própria vida provavelmente perturbado por ceder favores sexuais a
Berengário, o ajudante do bibliotecário, que em troca lhe deu acesso a um livro
raríssimo. Venâncio, o tradutor, morre envenenado ao folhear o livro. O mesmo
destino tem os curiosos Berengário e Malaquias, o bibliotecário, que mata
Severino, o herbalista, para recuperar a posse do livro. Folheá-lo, levando o
dedo à língua para facilitar o ato, sela o destino dos monges envenenados pela
substância aplicada naquelas raras páginas pelo ancião cego.
A desordem do mundo
O tomo envenenado pelo zeloso Jorge de Burgos é o segundo livro da Poética, de Aristóteles, uma obra mais
do que rara: de fato, nunca foi encontrada, mas sua existência foi sugerida pelo próprio Aristóteles e tida como quase
certa por estudiosos da obra do filósofo grego. A obra perdida seria dedicada à
análise da comédia. Aristóteles, a grande autoritas
no medievo, considerando a sério o valor poético do riso e do fazer rir: eis um
bom motivo para Jorge evitar que o livro fosse lido e que sua mensagem fosse
transmitida adiante.
Desapontado pelos resultados da investigação, Guilherme reconhece que
estava errado, que chegou a conclusões certas por premissas falsas. Um golpe
duro em seu orgulho intelectual. Na tentativa de consolar o mestre, Adso lembra
que Guilherme havia conseguido chegar à resolução do mistério. Afinal,
descobrira o essencial – na caricatura do mistério policial moderno: os assassinos e as armas, o quem e o como. Além
disso, o mestre de Adso havia deduzido, com grande precisão e apenas com dados
externos do edifício, a estrutura interna da biblioteca – o que lhes
possibilitou uma orientação segura pelo labirinto e a descoberta de uma
importante sala secreta.
O problema, para Guilherme, é que nada disso constitui um prêmio
satisfatório. Os interesses, as motivações íntimas de
cada personagem envolvido na intriga, o verdadeiro papel desempenhado por cada
um e a natureza de suas relações: tudo isso, em grande medida, lhe escapa.
O detetive está ciente de que Jorge manipulou os sinais sabendo que Guilherme
estava seguindo uma pista errada (ou, se preferir, estava interpretando os
sinais de maneira incorreta). Além disso, algumas mortes ocorrem por causa da investigação. Dito isso, é
como se Umberto Eco estivesse afirmando algo muito próximo a uma das ideias
caras à filosofia da ciência contemporânea: que a teoria precede e modela os
experimentos e observações da realidade. O conhecimento seria em grande parte
elusivo, pois nenhuma base empírica é objetivamente válida, nenhum dado
experimental é necessariamente puro, livre de perturbações causadas pela própria investigação. A teoria orienta o
olhar do investigador, molda as experiências e seus métodos de análise.
O Jorge de O nome da Rosa
não é apenas inimigo do riso, mas também nutre um “ódio à filosofia”, como diz
Guilherme. A biblioteca, para Jorge de Burgos, deveria servir como prisão do
saber, não como o lugar de onde o conhecimento é irradiado e difundido.
Trata-se de um saber que se quer fechado às transformações. Já a “biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges, não é fisicamente um
labirinto, mas é infinita. A infinidade de maneiras com que os caracteres
poderiam ser ordenados em infinitos livros apontam para uma realidade
labiríntica, cujos sentidos são sempre fugidios e elusivos. Lá, a verdade
poderia estar em todos os lugares, mas não deve estar em lugar algum.
Nada mais distante disso do que perscrutar uma ordem divina nos signos
presentes nas escrituras ou sondar os sinais em busca de uma ordem subjacente
ao mundo natural. O clima intelectual do final do século XX, quando O nome da Rosa foi escrito, não apenas
havia abandonado há muito essas esperanças, mas apontava também para uma
direção em que qualquer tentativa de ousar conhecer o mundo era seriamente
questionada. É o que o livro tem de pós-moderno:
os sinais, as pistas, poderiam ser ordenados de diversas maneiras e muitas
delas produzem os mesmos sentidos por caminhos diferentes, da mesma forma que
sentidos diferentes poderiam ser produzidos percorrendo o mesmo caminho. O
orgulho intelectual do detetive foi derrotado não por estar errado, mas porque nenhuma ordem por ele encontrada no caos dos acontecimentos
seria o espelho fiel da realidade.
Não vamos muito longe, contudo. Ao contrário
de Jorge, Guilherme mostra-se avesso à idolatria da verdade. Eco, seu
criador, discorda de maneira veemente dos desdobramentos mais radicais da obra
de Jacques Derrida, que apontam para uma infinidade de interpretações
possíveis, melhor sintetizados pela frase “todas as interpretações são
válidas”. Nem mesmo para um romance – uma “máquina de gerar interpretações”,
nas palavras de Eco – isso vale. Foi Jorge quem envenenou o livro de
Aristóteles, não Guilherme. A abadia e a biblioteca queimaram no incêncio
final. No mundo inventado por Eco, Adso e Guilherme teriam morrido em chamas se
não tivessem ousado saber a estrutura
do labirinto. A realidade, ainda que fictícia, está lá. Nem tudo vale.
O nome da Rosa Umberto Eco Editora: Record Ano: 2009 N. de páginas: 546
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