Explorar lugares novos não é uma atividade humana recente, mas foi intensificada, ao longo do tempo, com as facilidades de transporte. Sobretudo com a construção de embarcações mais resistentes, que suportaram as viagens através do Mar Ocidental, puderam-se realizar as travessias intercontinentais para os descobrimentos do fim do século XV. Dali até o século XIX, o relato escrito e oral, descrevendo os locais visitados, foi a principal forma de transmissão das experiências vividas. Tais relatos viabilizaram a constituição de um rico acervo de registros de descobertas e das relações dos viajantes com as populações, fauna e flora dos locais onde chegavam.
Os viajantes dos séculos XV a XIX, segundo o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Franca, Jean Marcel Carvalho França, eram, na maioria, europeus, alfabetizados, a serviço de um Estado – que poderia ser um império colonial, como Portugal, Espanha ou Inglaterra – e envolvidos em negócios estratégicos, como a descoberta de novos produtos ou negociações comerciais e expedições científicas. A busca por status era uma motivação adicional.
Ainda segundo França, os viajantes tinham a obrigação de escrever o que viam, uma vez que havia muito dinheiro envolvido nessas viagens, e pouca gente voltava das expedições. É nesse contexto que surgem os relatos de viagem.
A autora Ana Paula P. Dias, no artigo “ Diário de navegação de Pero Lopes de Sousa: a representação do real e os filtros da representação ”, afirma que o conceito de literatura de viagem é complexo e divide opiniões, pois “trata-se de uma expressão moderna, surgida nas últimas décadas deste século XX, identificada como literatura autônoma, como subgênero, um espólio literário (e também cartográfico e iconográfico) constituído por um corpus de textos, cujas balizas cronológicas se situam entre o século XV e o XIX e cuja natureza é em si compósita e interdisciplinar”.
Segundo o professor da Unesp de Assis, Paulo Henrique Martinez, “os relatos de viajantes como os conhecemos não foram feitos para serem lidos, eles foram feitos na forma de diários de viagem, eles eram um suporte para o trabalho científico desses naturalistas”. Martinez completa que, em seus diários, os viajantes naturalistas “contextualizavam os momentos das coletas botânicas e zoológicas que faziam”. Ou seja, eram instrumentos de trabalho para uso pessoal.
Em termos de estilo da escrita, França afirma que este não é muito variado. O que se espera dele, tanto o público, quanto os outros viajantes, é um relato de viagem muito restrito e determinado. Apesar das restrições, para Martinez esse estilo é muito influenciado por aspectos pessoais, tais como formação e religião, e sociais, além do objetivo da viagem, por exemplo, se o viajante está a serviço de um Estado ou integrando uma comissão científica.
No entanto, nem sempre o público era tão restrito e poderia abranger também os “sábios” e gente de cultura em geral, sendo que no século XVIII esse panorama de público se amplia. Segundo França, é interessante notar o interesse pela temática da viagem, que se justifica pela ausência de literatura que fosse além dos temas de religião.
Segundo a docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Márcia Helena Mendes Ferraz, há diferenças entre os relatos anteriores ao século XIX e os desse período: “Tais diferenças estariam ligadas aos também diferentes propósitos dos relatos de viagens que ganham forma durante o século XVII e se tornam bem claros no XVIII”. Ferraz afirma que “na segunda metade do século XVII, as academias científicas recém-criadas, buscam obter informações de pessoas que estivessem em regiões longínquas da Europa ou que se preparavam para as viagens”. Entre os interesses nas viagens estava a busca por metais nobres e produtos que poderiam servir de medicamento, tinturas e fabricação de tecidos etc.
Ferraz comenta ainda que no “século XVIII, verificam-se intensos debates sobre a forma de se descrever a natureza: o que deve ser descrito e como devem ser tais descrições”. Neste contexto, há a criação de cursos acadêmicos, como o Curso Filosófico, criado em 1772, na Universidade de Coimbra, em Portugal. No entanto, como destaca a docente, “isso não quer dizer, entretanto, que muitos dos relatos anteriores não fossem encomendados (ou ordenados) pelos governos da época, com a intenção de conhecer em detalhes o que poderia ser explorado em terras distantes da metrópole”.
Um exemplo desses interesses é retratado na carta de 1º de maio de 1500 , na qual o escrivão Pero Vaz de Caminha (1450-1500) comunica ao rei de Portugal, Dom Manuel I (1469-1521), a chegada à costa brasileira: “Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro; nem as vimos. Mas, a terra em si é muito boa de ares, tão frios e temperados, como os de lá. Águas são muitas e infindas. De tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”.
A partir do século XIX, segundo França, esses viajantes passam a se autodeclarar “viajantes naturalistas” e aumenta a frequência de expedições científicas para conhecer os novos mundos – América, Ásia e Oceania. Ainda de acordo com o professor da Unesp, na América espanhola tais expedições já ocorriam desde o século XVIII. Importantes estudiosos/pesquisadores/viajantes do período, como Alexander von Humboldt (1769-1859), Charles Marie de La Condamine (1701-1774) e Louis Antoine de Bounganville (1729-1811) não puderam fazer suas incursões pelo território brasileiro devido aos impedimentos criados pela Coroa portuguesa, anteriores a 1808, ano da abertura dos portos às nações amigas.
A publicação das obras produzidas pelos viajantes era focada num público constituído, basicamente, por outros viajantes, financiadores e autoridades. Segundo França, havia uma diferença fundamental em termos profissionais e de status se o viajante fosse pago para realizar a tarefa e se a sua obra tivesse uma utilidade entre os pares. Ferraz destaca que “os relatos se destinavam a informar governos ou academias científicas que nem sempre tinham interesse em divulgar as descobertas. No caso específico de Portugal, os viajantes naturalistas, empregados pelo governo e instruídos pela Academia Real de Ciências, as informações não deveriam, de nenhuma forma, ser divulgadas. Conforme instruções recebidas, todos os relatos feitos por esses naturalistas sobre o Brasil deveriam ser encaminhados diretamente ao Ministério do Reino, nem mesmo o vice-rei no Brasil poderia ter acesso a eles”.
A docente acrescenta que os propósitos para elaboração dos relatos de viagem foram de diferentes ordens: “podem ter sido, primeiramente, por questões pessoais, mas traziam informações que interessavam a outras pessoas, talvez pela simples curiosidade sobre o novo e, assim, ultrapassavam a demarcação pessoal; foram também considerados importantes fontes de informações para os governos ansiosos em ampliar seu poder e fortuna; por fim, criaram-se critérios para sua elaboração, ao mesmo tempo em que se dava forma a um novo especialista, o viajante naturalista”.
A partir desses relatos, segundo França, surgiram novelas, romances de aventura, romances edificantes, viagens extraordinárias, ou seja, todo um repertório literário. Martinez explica que, em termos de comunicação da ciência, os relatos de viagem indiretamente tiveram um papel muito importante, existindo uma relação entre a intencionalidade de comunicar a ciência e o relato em si. “Estes relatos tornam-se conhecidos, porque eles têm muitas informações extra científicas”, constituindo uma fonte de interesse para a história do Brasil.
Desta forma, os relatos de viagem passam a ser traduzidos e editados no Brasil no fim do século XIX e durante o século XX, “formando o que conhecemos na nossa bibliografia como relatos de viajantes”, diz Martinez. Muitos desses relatos editados no Brasil são parciais, porque esses naturalistas faziam grandes percursos. “Estes relatos são recortes de relatos maiores, que envolvem, muitas vezes, outros países da América Latina. Você tem viajantes percorrendo Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela, mas nós conhecemos apenas parte dos relatos referentes ao Brasil”, ressalta. Este é o caso da obra do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que esteve no Brasil entre 1816 e 1822 e viajou pelo Espírito Santo, Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A sua obra foi publicada por trechos, como o livro Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822) .
O volume das obras de viajantes não é conhecido, segundo conta a historiadora Miriam Lifchitz Moreira Leite (1926-2013), na obra Livros de viagem: 1803/1900 (Editora UFRJ, 1997). Segundo a autora “arquivos, bibliotecas e periódicos, em diferentes línguas, guardam uma documentação ainda inexplorada”. Martinez lembra que esse é o caso do material produzido pelo naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), que viveu e morreu na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Lund não foi um “viajante” propriamente dito, mas escreveu relatos na forma de diários e outros registros que ainda não foram publicados. Por exemplo, há um diário de campo no Museu de História Natural da Dinamarca que não foi publicado ou traduzido, o que dificulta o acesso ao conteúdo da obra, que foi escrita em dinamarquês gótico.
Além de várias obras ainda não terem tradução para o português, faltam, segundo Martinez, estudos sobre cada um desses viajantes, que nos permitam conhecer o destino de seu trabalho científico no conjunto.
Muitos naturalistas deixaram um conjunto de obras bastante extenso, como é o caso do botânico Karl Friedrick Philipp von Martius (1794-1868) e do zoólogo Johann Baptiste von Spix (1781-1826). Spix e Martius, por exemplo, permaneceram no Brasil de 1817 a 1820 e viajaram por cerca de dez mil quilômetros. Partiram do Rio de Janeiro, seguindo para o norte pela Mata Atlântica, com a intenção de explorar o interior, ao invés do litoral, melhor conhecido. Exploraram diversas localidades do território brasileiro nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas. De suas andanças, foi publicado, entre outras obras, Viagem pelo Brasil. O material por eles recolhido permitiu que fossem elaboradas diversas obras de cunho naturalista sobre o Brasil, entre elas a monumental Flora Brasiliensis, editada por Martius e colaboradores, com identificação de mais de 20 mil espécies de plantas de nossas florestas, até hoje utilizada como obra de referência científica no ensino e pesquisa em botânica. Recentemente, essa obra foi digitalizada e está disponível no site do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria).
Uma característica desses relatos é repetir temas, comentários ou descrever regiões já descritas por outros viajantes. A Serra de Ouro Branco, situada entre os municípios de Ouro Branco e Ouro Preto, em Minas Gerais, foi caminho de alguns viajantes do Brasil colonial. Saint-Hilaire, em sua viagem de 1817, publicada no livro “ Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e MinasGerais ”, descreve a até então desconhecida planta canelas-de-ema, pertencente à família Velloziaceae. Spix e Martius, no livro Viagem pelo Brasil, descrevem a mesma planta de forma muito semelhante a Saint-Hilaire.
Segundo França, os relatos dos viajantes são repetitivos, no modo de dizer e nos temas abordados. A intensificação das expedições científicas no século XIX acaba por aumentar a repetição. Há muita gente escrevendo e também um público mais amplo de leitores. O diplomata britânico Richard Burton (1821-1890), por exemplo, era um leitor voraz da literatura de viagem. Burton passou pelo Brasil na década de 1860 e publicou a obra The highlands of the Brazil, do qual uma parte foi publicada em português sob o nome de Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho .
Os usos atuais desses relatos de viagem são amplos, como afirma Martinez. Se forem utilizados como fontes históricas, seja para atividade didática, exposição ou documentário, há um grande potencial para divulgação científica: “aqui há um testemunho do mundo natural dos territórios do Brasil do século XVIII e XIX. Eles são bastante atraentes do ponto de vista da narrativa e também do conteúdo”. Portanto, o uso da literatura de viagem como narrativa científica, além de ser fonte documental para conhecer melhor o Brasil nos períodos colonial e imperial, tem um grande potencial educativo em muitas áreas do conhecimento, como história, geografia, antropologia e outras.
(Leia mais sobre cronistas e viajantes na edição nº 77 da ComCiência)
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