Foi em novembro de 1973 que o físico britânico Stephen Hawking realizou sua maior façanha. No fim daquele mês, deu uma conferência informal em Oxford, na Inglaterra, na qual mostrou o que acontecia quando a Mecânica Quântica era aplicada ao estudo dos buracos negros, esses objetos astronômicos exóticos, cujo campo gravitacional é tão intenso que nada pode escapar dele, nem mesmo a luz.
Era uma atitude incomum, porque a mecânica quântica é a ciência do extremamente pequeno, usada principalmente para estudar moléculas, átomos e partículas subatômicas. Já os buracos negros são objetos astronômicos e eram investigados com a atual Teoria da Gravitação, a Relatividade Geral (que substituiu a Lei da Gravidade de Newton na década de 1910). A existência dos buracos negros, até hoje não comprovada inequivocamente, é consequência direta dessa teoria. Podem ser produzidos por estrelas muito massivas, algumas dezenas de vezes maiores que o Sol, ao final de sua vida; e há indícios de que há também um imenso no centro de cada galáxia, inclusive a nossa, provavelmente gerado pelo campo gravitacional de muitas estrelas aglomeradas ou que se fundiram.
Bem, o que aconteceu quando Hawking fez seus cálculos é que os buracos negros se revelaram não serem tão negros: eles emitem, contínua e espontaneamente, uma radiação debilíssima, hoje chamada radiação Hawking. Um buraco negro hipotético com a massa do Sol emitiria apenas cerca de 10–28 watts de potência para o espaço.
Isso parecia violar a relatividade geral. Mas nem mesmo o grande cientista britânico poderia ter previsto a extensão do impacto dentro da ciência de tão diminuto efeito. Até pouco tempo antes, os estudos sobre buracos negros não tinham grandes consequências para o resto da física. Nas décadas seguintes, porém, seus desdobramentos se estenderam por toda ela e o buraco negro caiu no centro do principal problema teórico da física atual: a busca de uma teoria única que englobasse os dois pilares da física moderna, a Teoria da Relatividade Geral e a Mecânica Quântica. Na verdade, o buraco negro fez o que se espera que ele faça quando aparece no meio de dois objetos: pôs os dois pilares em rota de colisão.
A teoria unificadora era avidamente procurada porque a situação era – e ainda é – como se o mundo físico tivesse sido dividido em dois: o grande e o pequeno, o macro e o micro; e usa-se uma “física diferente” para descrever cada uma das partes: a Relatividade Geral para o macro e a Quântica para o micro. Entre as duas, aliás, está o mundo das dimensões cotidianas de nosso dia a dia. Nessa área intermediária, nem macro nem micro, as previsões de ambas as teorias são, na prática, indistinguíveis entre si e coincidem com as da física pré-1900, a física newtoniana ou clássica (que é basicamente o “grosso” da física estudada no ensino médio).
A primeira luta da noite: Relatividade geral x Termodinâmica
A razão pela qual Hawking quis usar a Mecânica Quântica para estudar buracos negros foi que, na verdade, já havia uma outra parte da física que exigia que essas entidades devessem emitir radiação: a Termodinâmica. E Hawking queria provar o contrário.
A Termodinâmica é uma teoria muito geral, capaz de analisar qualquer fenômeno físico sob o ponto de vista das transformações entre diferentes formas de energia. É vastamente usada por engenheiros e físicos e está por trás de todas as máquinas modernas. Originada no início do século XIX, a Termodinâmica é talvez a única parte da física que sobreviveu incólume a toda a revolução científica do século XX e que permanece válida tanto para o mundo macro quanto para o micro.
Ora, quando a Termodinâmica era aplicada aos buracos negros, ela exigia algo que a Relatividade Geral proibia: que eles deveriam emitir algo – radiação. Parecia que só uma das duas teorias poderia estar correta. Desconcertantemente, ambas pareciam ser confirmadas por numerosos experimentos e observações!
Hawking tomou o partido da Relatividade Geral. Para provar seu ponto de vista, resolveu investigar em detalhe o que acontece bem no limiar além do qual os corpos que se aproximam do buraco negro não podem mais voltar. Esse limite forma uma esfera imaginária ao redor do buraco negro, chamada “horizonte de eventos”.
Porém, para sua surpresa, os cálculos do grande cientista com a física quântica não só mostraram que ele estava errado – o buraco negro emitia, sim, radiação –, mas também que a radiação emitida era exatamente a necessária para “salvar” a Termodinâmica! Invicta est!
O paradoxo da informação: Relatividade Geral x Física Quântica
Houve um preço a pagar, porém, pois a radiação de Hawking tinha uma característica incompatível com a própria Mecânica Quântica que ele mesmo havia usado. Especificamente, com uma lei que diz que informação nunca pode ser perdida.
O que é “informação”, em física? É qualquer dado que caracterize o estado ou a configuração de um sistema. A forma de um abajur, suas cores, os materiais de que é feito, até as posições e velocidades dos seus átomos constituintes. Quando a madeira queima, a informação nela contida não é destruída, é simplesmente codificada de forma diferente na fumaça que se espalha pelo ar e nas cinzas que permanecem.
Ora, para onde vai a informação contida em uma estrela quando ela cai em um buraco negro? Ela ficará no próprio buraco negro? Não! Porque eis que, a partir da Relatividade Geral, pode ser demonstrado o “teorema da calvície”: ele diz que buracos negros podem ser totalmente identificados por apenas três parâmetros: massa, momento angular (quantidade de movimento de rotação) e carga elétrica. Dois buracos negros com esses três parâmetros iguais são indistinguíveis. E só três números são muito pouco para caracterizar toda a informação contida em uma estrela.
A informação estaria, então, na radiação Hawking emitida pelo buraco negro? Também não! Porque os cálculos de Hawking indicavam que essa radiação não carrega informação alguma: ela é emitida em todas as direções de forma totalmente homogênea. As contas foram repetidas nos anos seguintes por diversos cientistas, de diferentes formas, e todos chegaram à mesma conclusão. Eis o chamado “paradoxo da informação”, que colocou em choque a Relatividade Geral e a Mecânica Quântica. A comunidade dos físicos se dividiu novamente. E, novamente, Hawking preferiu acreditar na Relatividade Geral. O debate foi intenso, a ponto de ser chamado humoristicamente pelos próprios participantes de “a Guerra do Buraco Negro”.
O universo é um holograma?
Em 1997, Hawking foi desafiado publicamente por John Preskill, do Instituto de Tecnologia da Califórnia em Pasadena e partidário da Mecânica Quântica na Guerra do Buraco Negro: qual estava correta, ela ou a Relatividade Geral? Quem ganhasse receberia do outro uma enciclopédia à sua escolha.
Preskill não estava apostando no vazio. Naquela época, já faziam quatro anos que germinava uma solução, chamada “princípio holográfico”. Por essa conjectura, todos os fenômenos físicos descritos pela física dentro do nosso espaço de três dimensões poderiam ser perfeitamente emulados em um outro espaço abstrato de duas dimensões. Toda a informação do espaço tridimensional estaria codificada em um de duas dimensões, assim como um holograma impresso em uma superfície pode projetar uma imagem tridimensional quando iluminado pelo ângulo adequado. A ideia foi aventada por Gerhard ‘t Hooft, da Universidade de Utrecht, na Holanda, em conexão com os buracos negros (na sua ideia inicial, o “outro espaço bidimensional” seria a própria superfície do horizonte de eventos).
Ironicamente, no mesmo ano do desfio de Preskill, estudos de Juan Maldacena tornaram claro que, no “espaço-holograma” bidimensional, o paradoxo da informação simplesmente não existia! Como ele era equivalente ao espaço de 3 dimensões, não deveria existir aqui, também. A Mecânica Quântica parecia ter vencido e parecia haver algo errado com a Relatividade Geral.
Mas essa estranha conjectura estaria correta? À primeira vista, a ideia do princípio holográfico soa ainda mais exótica que o próprio buraco negro. Mas ela rapidamente se tornou popular entre os físicos. Uma razão é que, nos esforços para se construir uma teoria unificada entre Relatividade e Quântica, vários problemas extremamente difíceis de serem resolvidos no espaço tridimensional ficavam fáceis se fossem transferidos para o “espaço-holograma” bidimensional. O princípio holográfico funcionava como um atalho para os cálculos. E foi então que os desdobramentos dos paradoxos do buraco negro se estenderam para além da física estabelecida, invadindo as teorias-tentativas para unificar Quântica e Relatividade, como a Teoria das Cordas.
Por conta disso, o modelo se tornou familiar e passou a ser muito estudado. Ainda não foi demonstrado, mas cada vez mais cientistas apostam nele como algo que representa a realidade física de alguma forma. Vários, como Jacob Bekenstein, sugerem que o mundo real pode ser tanto o tridimensional que conhecemos ou o seu êmulo bidimensional; achamos que é o tridimensional apenas porque nosso cérebro estaria configurado para pensarmos assim.
O próprio Hawking ficou convencido. Em 2004, ele admitiu que perdeu a aposta com Preskill e que os buracos negros não destruíam informação. Entregou-lhe como “pagamento” uma enciclopédia sobre golfe, dizendo que poderia retirar dali toda a informação que quisesse.
Os últimos rounds
Mas ainda havia um problema. Se o paradoxo da informação era resolvido no mundo bidimensional, por que não parecia assim no universo tridimensional? Em outras palavras: como compatibilizar isso com os cálculos de Hawking de 1973, que pareciam contradizer a Mecânica Quântica?
Houve várias tentativas. Uma delas foi formulada no início de 2012 por Joseph Polchinski, a Teoria do Firewall. Polchinski percebeu uma brecha nos cálculos de Hawking: eles poderiam estar corretos e mesmo assim a radiação carregar informação. O que acontece é que a radiação Hawking é produzida pela geração de matéria e antimatéria nas proximidades do horizonte de eventos, aos pares: a cada partícula é gerada uma antipartícula. Quando a antipartícula cai no buraco e a partícula sai pelo espaço afora (ou vice-versa), temos a emissão da radiação na forma de fluxo de partículas. Polchinski viu que as partículas emitidas podiam, sim, carregar informação, desde que todas as antipartículas e as partículas produzidas estivessem fortemente correlacionadas entre si – no jargão, em um “estado emaranhado”.
O “preço” a pagar, porém, era que a inevitável quebra do emaranhamento faria com que a região imediatamente adjacente ao horizonte de eventos deveria ser extremamente quente – daí o nome “firewall”, ou “muro de fogo”, para o modelo. Havia algo pior: esse firewall quebrava o princípio mais básico da Relatividade Geral, o princípio da equivalência: alguém que cai livremente em um campo gravitacional dentro de uma nave não pode perceber a diferença com uma situação em que não houvesse gravidade alguma – a não ser que olhasse pela janela. Alguns experimentos em ambiente sem gravidade usam esse princípio: são feitos em aviões literalmente despencando do céu por alguns minutos, até que o voo seja retomado.
Hawking não recebeu bem a Teoria do Firewall e, em agosto do ano seguinte, deu uma palestra em Santa Barbara, na Califórnia, dizendo que não acreditava nela e expôs seus argumentos. No final de janeiro de 2014, um resumo da palestra foi publicado no site do ArXiv, um repositório de textos científicos. Os argumentos de Hawking eram apenas qualitativos e um tanto vagos, mas com eles o cientista concluiu, surpreendentemente, que os buracos negros não existiriam, a não ser como estados temporários da matéria! Depois de tudo o que aconteceu, e vinda de alguém como Hawking, a afirmação de que não haveria buracos negros retumbou como uma bomba na imprensa em geral.
E, neste momento, o leitor terá que me perdoar, mas a narrativa terá que ser suspensa bem no meio da explosão da bomba. Simplesmente porque ninguém sabe quais serão os próximos capítulos. Estamos bem no meio de um debate; os jornais que repercutiram o texto de Hawking flagraram a física em pleno movimento, como uma foto no meio de um salto com vara. Ninguém sabe se os argumentos qualitativos de Hawking sobreviverão a uma análise mais detalhada, nem se as novas teorias correspondem à realidade física ou se são conjecturas que serão derrubadas mais tarde. Um veredicto final, apenas experimentos em laboratórios e observações astronômicas poderão dar. É coisa para décadas, no mínimo, e muitas surpresas virão.
A única certeza é que os buracos negros deverão continuar no centro de tudo isso por um bom tempo. Se o leitor já teve curiosidade para saber como acontece a construção de uma nova teoria, como aparecem os dramas que se sucedem antes de elas virarem ciência estabelecida e capítulos de livros didáticos, eis um espetáculo único.
Roberto Belisário é doutor em física e divulgador científico. Contato: belisarioroberto@gmail.com
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