Uma personalidade que foge de uma perseguição política ou um grupo que migra com temor de perseguições religiosas ou étnicas, são exemplos de busca de proteção estrangeira contra a violação dos direitos humanos em seu país de origem. A vida ameaçada, muitas vezes pelas armas, encontra no refúgio e asilo a garantia liberdade. Usadas como sinônimos, essas duas práticas jurídicas têm, entretanto, sentidos distintos e suas aplicações no Brasil variam bastante de acordo com o contexto.
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou no final de fevereiro seu plano de retirada das tropas americanas do Iraque até 2011. Ele pretende deslocar, ainda este ano, parte do contingente para o Afeganistão. Juntos, os conflitos nesses dois países iniciados na gestão de seu antecessor, George W. Bush, foram os principais responsáveis pelo aumento do número de refugiados de guerra em todo o mundo nos últimos anos. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), o número de pessoas que, para preservar seu direito mais fundamental (a vida), fogem de conflitos – incluindo as que cruzam fronteiras e as que migram dentro de seu próprio país – passou de 24,4 milhões em 2007, para 26 milhões em 2008. Os afegãos e iraquianos representam quase a metade dos 11,4 milhões de refugiados atendidos pelo Acnur.
O Brasil faz parte, há uma década, de um programa de reassentamento de refugiados em parceria com o Acnur e entidades assistenciais como a Rede Caritas Internationalis, ligada à Igreja Católica, presente em duzentos países. Em 2007, esse programa trouxe para o Brasil uma centena de palestinos iraquianos que vivia em condições precárias em um acampamento provisório na Jordânia desde a queda do regime de Saddam Hussein. A ajuda concedida aqui aos palestinos, por um período entre 18 e 24 meses, inclui aluguel de moradia, compra de móveis e assistência material, além de aulas de português e preparação das crianças para freqüentar escolas brasileiras.
Embora esse tenha sido o maior grupo de refugiados recebidos de uma só vez no país pelo programa de reassentamento, há no Brasil um número ainda mais expressivo de fugitivos de um outro tipo de conflito bélico: as guerras civis em certos países do continente africano. Segundo o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), órgão encarregado de analisar as solicitações de refúgio, cerca de 78% dos mais de três mil refugiados que atualmente vivem no Brasil vieram da África. Na década de 1990, o país recebeu cerca de duzentos liberianos e mais de 1.200 angolanos nessas condições. “Após serem entrevistados por advogados e assistentes
sociais, esses solicitantes de refúgio são encaminhados para abrigos e
podem receber uma assistência financeira temporária, decidida caso a
caso, para despesas básicas”, informa a assessoria de imprensa do
escritório do Acnur no Brasil. A assessoria do Acnur explica que, ao chegar aqui, a ajuda aos refugiados se apoia em três grandes pilares: “o Estado brasileiro garante a proteção legal, desde a solicitação de refúgio, com emissão de documentos nacionais como identidade, carteira de trabalho, CPF, etc. O Acnur assessora o governo brasileiro em relação à Convenção de 1951 – que estabeleceu o Estatuto do Refugiado – e a seus protocolos, e implementa projetos financiados por doações da comunidade internacional. E a Cáritas, e outras entidades da sociedade civil, prestam assistência direta aos refugiados, em diferentes áreas, com recursos do Acnur e do governo brasileiro, além de recursos e doações mobilizadas por essas próprias entidades”.
Entre essas entidades da sociedade civil está o Instituto Paranaense de Cegos, onde um grupo de jovens angolanos conta com abrigo, aulas de música e apoio aos estudos. Em depoimento a um canal de notícias, um deles conta o drama que viveu em seu país: quando criança, estava um dia na casa dos primos e um sujeito deu a eles uma granada para brincarem; a granada explodiu, seus primos morreram e ele ficou cego. O grupo, que está há oito anos no Paraná, pretendia voltar para a Angola apenas após cursar o ensino superior no Brasil, mas eles podem perder o apoio financeiro de uma fundação angolana que os mantém aqui. A instituição determinou a suspensão das bolsas de estudo e o retorno deles ao seu país de origem, mas uma liminar na Justiça ainda garante provisoriamente a permanência dos jovens no Brasil.
Uma outra organização não-governamental, a Ação Comunitária do Brasil (ACB), está promovendo no Rio de Janeiro um projeto de apoio a refugiados angolanos, em parceria com o Acnur. “O projeto em questão está trabalhando a integração dos refugiados com comunidades locais por meio de teatro e prevenção ao HIV/Aids violência de gênero e informação sobre saúde sexual reprodutiva”, conta a assessoria do Acnur. Em fevereiro, atores brasileiros e angolanos apresentaram a peça “Prevenção é a solução” em escolas municipais do Complexo da Maré, onde vive grande parte dos refugiados. Para março, a programação do grupo inclui apresentações no consulado de Angola no Rio, no Espaço Cultural da ACB e no Espaço Paulo Freire, da Secretaria Municipal de Saúde.
Distinção entre refúgio e asilo
O contexto em que surge a preocupação mundial com os fugitivos de guerra é o mesmo em que é redigida a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo III prevê a vida como direito fundamental de todo e qualquer ser humano. O Acnur foi criado no final de 1947, para dar proteção aos refugiados obrigados a migrar após a Segunda Guerra Mundial. O repúdio às atrocidades dessa guerra estavam entre as principais motivações para a proposta, em 1948, da universalização dos direitos humanos. E ,em 1951, uma convenção realizada em Genebra, na Suíça, estabelece o Estatuto do Refugiado, definindo-o como pessoa que “devido a temores de ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, por pertencer a determinado grupo social ou por suas opiniões políticas, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não queira regressar a ele”.
O texto original do Estatuto, no entanto, referia-se apenas a vítimas de acontecimentos ocorridos na Europa e anteriores a janeiro de 1951 – ou seja, durante a Segunda Guerra e nos conflitos residuais após a ela. Apenas em 1967 é aprovado um Protocolo que suprime de seu texto a data e o local para aplicação do conceito de refugiado. Quanto à noção de asilado, tanto na Europa como nos Estados Unidos, é atualmente usada para definir a pessoa que já se encontra no país onde pretende conseguir o refúgio mas aguarda a análise da solicitação. Já na América Latina, ela tem a mesma conotação política de suas origens. “A partir da Revolução Francesa, com o desenvolvimento dos ideais de liberdade e direitos individuais, é que começou a se consolidar a aplicação do asilo a criminosos políticos e a extradição de criminosos comuns”, conta Luiz Paulo Barreto, presidente do Conare.
O Tratado de Direito Penal Internacional, proposto em Montevidéu, no Uruguai, em 1889, já trazia um capítulo dedicado à noção jurídica de asilo. Ela reaparece na Convenção sobre Asilo, assinada em Havana, em Cuba, em 1928, e é aprimorada em 1933 na Convenção sobre Asilo Político, novamente em Montevidéu. Em 1954, uma conferência realizada em Caracas, na Venezuela, distingue o asilo diplomático, em que a embaixada de um país estrangeiro dá abrigo a um perseguido político local, do asilo territorial, em que o perseguido migra para o país estrangeiro. “O asilo diplomático é instituto característico da América Latina. Outros países praticam o asilo diplomático esporadicamente, não o reconhecendo, todavia, como instituto de direito internacional. Já na América Latina, o asilo diplomático sempre foi amplamente praticado, provavelmente por causa da constante instabilidade política na região, com sucessivas revoluções, havendo, assim, a necessidade de se conceder proteção aos chamados criminosos políticos”, explica Barreto.
Casos de extradição de criminosos comuns, como o do traficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia, não costumam gerar incidentes diplomáticos. O mesmo não acontece, contudo, quando os crimes cometidos por um postulante ao abrigo de um país estrangeiro envolvem um período político conturbado em sua terra natal. A Constituição Federal, de 1988, prevê em seu artigo 4º a “prevalência dos direitos humanos e da concessão do asilo político”, e o ministro da Justiça, Tarso Genro, ao justificar o asilo concedido ao italiano Cesare Battisti, alegou que o Brasil tem tradição em conceder asilo em casos como esses, mencionando, entre outros, o do ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que viveu aqui até sua morte. Mas nem sempre foi assim: em 1955, ao ser deposto do poder pelos militares após dez anos à frente da presidência da Argentina, Juan Domingos Péron teve o asilo negado pelo governo brasileiro. A recente decisão brasileira sobre Battisti foi apoiada, por um lado, pelo ex-presidente italiano Francesco Cossiga, que criou nos anos 1970 leis de exceção para punir crimes hoje classificados como terrorismo, na época cometidos tanto por extremistas de esquerda, como Battisti, quanto por extremistas de direita. Por outro lado, como a Itália não aprovou nenhuma espécie de anistia em relação a esse período, a decisão brasileira é criticada pelos que consideram o crime de conotação política como crime comum.
O episódio Battisti também gerou, na imprensa, uma certa confusão no uso dos termos “asilo” e “refúgio”. “A principal diferença entre os institutos jurídicos do asilo e do refúgio reside no fato de que o primeiro constitui exercício de um ato soberano do Estado, sendo decisão política cujo cumprimento não se sujeita a nenhum organismo internacional. Já o segundo, sendo uma instituição convencional de caráter universal, aplica-se de maneira apolítica, visando a proteção de pessoas com fundado temor de perseguição”, argumenta Barreto. “Uma diferença prática que se pode perceber é que o asilo normalmente é empregado em casos de perseguição política individualizada. Já o refúgio vem sendo aplicado a casos em que a necessidade de proteção atinge a um número elevado de pessoas, onde a perseguição tem aspecto mais generalizado”, explica. É o que difere Stroessner e Battisti, por exemplo, de palestinos e angolanos refugiados no Brasil.
Embora o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Cezar Peluso, tenha negado em fevereiro o pedido de mandado de segurança protocolado pelo governo italiano contra a decisão de Tarso Genro, o caso Battisti está previsto para entrar este mês na pauta de discussão da mais alta corte do Brasil. No passado, casos como o de Perón, asilado no Paraguai, e de Stroessner, asilado aqui, indicam que contextos históricos diferentes geram decisões distintas por parte dos governos. E a própria Justiça brasileira também já agiu de forma distinta em casos parecidos. Em 1947, o Supremo impediu que um japonês casado com uma brasileira, a qual esperava um filho seu, fosse expulso do país. O fundamento jurídico dessa decisão se manteve no Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980, que prevê a não expulsão de um estrangeiro que tiver filho brasileiro, com base no princípio constitucional de proteção à família brasileira. Em 1936, no entanto, o mesmo Supremo negou o pedido de habeas corpus impetrado em nome de Maria Prestes, nome adotado pela alemã Olga Benário após se casar com o comunista Luis Carlos Prestes. O STF alegou não ser necessário fazer exame médico para atestar que ela estava grávida do brasileiro. Mesmo a Constituição de 1934 já prevendo que a extradição por crime político não é permitida quando o estrangeiro aguarda perseguição política em seu país de origem, a judia Olga foi extraditada, grávida de Anita Leocádia, para a Alemanha nazista, onde morreu nos campos de concentração em 1942.
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