10/07/2012
Ao conversar com o professor da USP Mamede Mustafá Jarouche, é notável sua paixão pelo mundo árabe. Filho de imigrantes libaneses, ele desde cedo conviveu com a língua e os costumes do Líbano em sua família. Além disso, estudou e trabalhou em países como Arábia Saudita, Egito, Líbia e Iraque. Politizado, Jarouche – graduado em letras pela USP, com mestrado e doutorado na mesma área – se agita ao comentar a situação política dos países árabes, que conhece de perto, pois esteve no Egito no dia 25 de janeiro de 2011, quando começaram os protestos populares no país (ele publicou artigos sobre isso no dia 6 e no dia 20 de fevereiro do ano passado na Folha de S. Paulo). Mas ao falar sobre tradução e literatura árabe, se acalma e demonstra uma grande satisfação pessoal. No momento ocupado com a leitura e tradução de um texto político árabe do século XIII, Jarouche foi responsável pela recente tradução direta, da língua árabe para o português do clássico As mil e uma noites. E afirma: “ A tradução literária impõe um conhecimento amoroso da estética das línguas com as quais você trabalha”.
ComCiência – O senhor convive com a língua árabe desde cedo por causa de sua família, que é de imigrantes libaneses. Como e quando o senhor começou a estudar a língua árabe?
Mamede Mustafa Jarouche – Foi no começo da década de 1980. Fui estudar árabe graças a uma bolsa que ganhei do governo da Arábia Saudita em 1981. Mas ainda não havia o interesse acadêmico, fui apenas para estudar a língua. Depois que voltei de lá, vislumbrei a possibilidade de estudar árabe na Universidade de São Paulo (USP). Durante o período de graduação na universidade, fui trabalhar no Iraque como tradutor e, depois da graduação, fui para a Líbia para também trabalhar. Lecionei árabe na USP como professor voluntário, sendo contratado em 1992, quando também conclui meu mestrado e em seguida meu doutorado. Depois fui estudar árabe novamente, dessa vez no Egito. O caminho (no estudo do árabe) aconteceu naturalmente.
ComCiência – Em qual situação se encontrava o estudo da língua árabe no Brasil no momento que o senhor começou a sua carreira?
Jarouche – O estudo da língua árabe no Brasil era muito incipiente. Já havia cursos de árabe, sendo os dois primeiros na USP e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mas eram cursos vistos como “perfumaria”, ou seja, não havia nenhuma exigência, nem cobrança, nem demanda científica e acadêmica por parte dos alunos. Ele permanecia a nível de curiosidade. Mas o grande salto qualitativo do estudo da língua árabe ocorreu a partir deste século, do século XXI.
ComCiência – E qual foi o principal motivo para esse avanço recente do estudo do árabe?
Jarouche – Tem muito a ver com a nova participação do Brasil no cenário mundial. Graças à exigência da pluralidade e à abertura do relacionamento com os países do Oriente e Oriente Médio. A partir deste século, começou a haver uma demanda e uma importância maior no relacionamento do Brasil com outros países, fora da esfera da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Quando o presidente Lula assumiu, sua primeira viagem internacional foi para o Oriente Médio. Outro fator, infelizmente, foi o atentado de 11 de setembro de 2001.
ComCiência – Isso despertou uma curiosidade do brasileiro em relação à cultura árabe?
Jarouche – Também. Acho que a principal razão para o aumento da curiosidade do Brasil, e do mundo ocidental, em relação à cultura árabe se deve à questão comercial, que expandiu muito, desde a década de 1970. Mas o atentado trouxe uma visibilidade maior para o mundo árabe. Houve muito mais informação e demanda por informação sobre os países árabes. Hoje há vários centros universitários que estudam a língua árabe, como a USP, a Unicamp, a UFRJ e outros centros, como a Universidade Federal de Santa Catarina, evidenciando o interesse acadêmico e intelectual pela língua árabe.
ComCiência – O senhor acredita que o interesse pela língua e cultura árabe pode continuar se expandindo no Brasil?
Jarouche – Acredito que sim. Agora, com a crise política que vivem os países árabes, o interesse deve se acentuar ainda mais. Hoje temos diferentes setores políticos que acompanham o mundo árabe. Esse interesse, somado à ascensão do Brasil, só tende a se fortificar, trazendo mais contato, por interesses políticos e econômicos.
ComCiência – É notável o seu interesse pelo aspecto político das relações entre Brasil e Oriente Médio. Ele ocorreu naturalmente ou o senhor passou por algum tipo de experiência envolvendo a política árabe?
Jarouche – Quando eu era aluno, era militante de esquerda, afinal cresci no Brasil da ditadura militar. Por isso, cresci nesse ambiente politizado, de militância. Além disso, sempre tive curiosidade pelo mundo árabe por ser descendente de libaneses. Quando era jovem, o Líbano, a nação da minha família, vivia uma revolução. Já existia também a questão da Palestina. Por coincidência estava no Egito no dia do estouro da revolução, no dia em que as pessoas foram às ruas e, por isso, acompanhei todo o processo. Foi um episódio muito emocionante de vivenciar.
ComCiência – Focando agora na sua carreira de tradutor, como é o seu trabalho e como ele começou.
Jarouche – Acho que o fator mais importante que pode ser destacado sobre meu trabalho é o fato de que as traduções ocorreram direto do árabe para o português. Isso é muito curioso porque não existia esse padrão no Brasil, as traduções ocorriam da língua oficial para uma intermediária e, depois, para o português. Quando comecei, as traduções eram feitas da língua original para o inglês, espanhol ou francês, para depois ser traduzido ao português. Depois dessa inserção do Brasil no mundo árabe e em outros países, o brasileiro passou a exigir a tradução direta, o que evidencia um novo comportamento dos leitores brasileiros. Hoje muitos leitores questionam a tradução e conferem se ela é feita diretamente da língua original. Eu fico muito contente de perceber que meu trabalho contribuiu para isso, fico muito feliz. Mas repito: isso só foi possível devido à nova situação em que se encontra o Brasil no mundo.
ComCiência – Quais as diferenças da tradução literária para a tradução científica?
Jarouche – A linguagem acadêmica tende a ser mais padronizada em diferentes línguas e, por isso, não ocorre muita perda de significado na hora da tradução, o que é diferente da linguagem literária, em que existem muitas ferramentas como metáforas e outras. A literatura se baseia muito em recursos, como a metalinguagem e a metáfora, que a linguagem científica não utiliza. O cientista não pode descrever o DNA com metáfora, ele tem que ser preciso. Já a linguagem literária é a linguagem do questionamento, da alusão, da fantasia. A linguagem científica é objetiva.
ComCiência – O senhor acredita que a tradução de um clássico como As mil e uma noites possa ser uma forma de divulgação cultural?
Jarouche – Talvez seja uma divulgação de um conhecimento. Mas com certeza é a divulgação de uma cultura, no caso, a cultura árabe.
ComCiência – Como foi a tradução de As mil e uma noites e de outros livros árabes?
Jarouche – Foi muito gostoso, foi uma experiência muito agradável e prazerosa. É um livro de muita ação. O texto não para em descrições, acaba se tornando uma leitura muito prazerosa, porque você acaba desfrutando do livro. Às vezes você trava em uma questão em particular, uma diferença gramatical ou de sentido, isso acaba dando trabalho e se torna cansativo, mas no geral foi muito gostoso de fazer. Outras obras que traduzi também são muito interessantes, como Kalila e Dimina, 101 noites, O tigre e o raposo. Foram nove livros no total. E todas as obras foram muito gostosas de traduzir.
ComCiência – Para finalizar, para se tornar um bom tradutor, o que o senhor recomenda?
Jarouche – Que vivencie a cultura e o país de origem da língua. Você tem que ter a sensibilidade de captar naquela língua que você está traduzindo os significados e saber reproduzir isso na sua língua. A tradução literária impõe um conhecimento amoroso da estética das línguas com as quais você trabalha.
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