Não restam dúvidas de que a educação é um direito fundamental, mais precisamente, um direito social. Em virtude da sua caracterização, na essência, como um tipo de serviço público prestado pelo Estado, o que acontece com essa atividade quando passa a ser executada pela iniciativa privada? Perde a sua característica de serviço público? Por se tornar uma atividade paga pelo particular, é possível falar em uma mera relação de consumo firmada entre o estabelecimento prestador do serviço e aqueles que dele se beneficiam? Uma resposta mais incisiva a essas perguntas requer uma reflexão sobre a educação como um direito propriamente dito. É sobre esse foco que o presente artigo pretende analisar a educação e dar respostas às questões acima formuladas.
O direito à educação é resultado de conquistas sociais, fruto das lutas dos homens e dos povos ao longo de séculos e séculos. O processo de criação da classe trabalhadora, aliado às más condições e garantias de trabalho, bem como a sindicalização da classe operária, culminou com a proliferação de inúmeros movimentos sociais que se difundiram pela Europa, exigindo do poder público melhores condições de vida e de trabalho.
Com isso, o aparelho estatal viu-se obrigado a legalizar e até mesmo constitucionalizar uma série de direitos coletivos que trouxessem a essa nova classe condições de vida em sociedade. Surgem, então, os direitos relacionados à segurança do trabalho, à previdência social, o direito à saúde e também o direito à educação como um direito da coletividade.
Assim, tornaram-se positivos direitos que não só asseguravam a integridade física e patrimonial do indivíduo, mas também a integridade de seus valores sociais e culturais, tornando-o mais cidadão e integrante do mundo. Enquanto os direitos à vida, à liberdade e à propriedade podem ser considerados negativos, uma vez que exigem do Estado um dever de não agir sobre eles, respeitando-os, os direitos de segunda geração, dentre os quais se inclui o direito à educação, podem ser considerados positivos, por exigirem do mesmo Estado uma ação específica para a sua afirmação.
É o próprio ente público, através da prestação de serviços públicos, ou seja, por sua atuação e não mais por sua omissão, que dará guarida a essa nova gama de direitos. A promoção dos direitos de segunda geração, de igualdade ou sociais, portanto, demandam do Estado uma atuação constante e que depende da efetiva prestação de serviços públicos para verem-se consolidados. Sim, pois a partir do momento em que se fala do direito de uma coletividade, não há como ele ser garantido sem a efetiva participação do aparelho estatal, apto a executá-lo de acordo com as necessidades que esse tipo de direito exige.
Assim, ao tornar positivos os direitos sociais, a Constituição Cidadã de 1988 não poderia agir diferente. E justamente por esse motivo é que constitucionalizou o direito à educação como um direito de todos, e DEVER do Estado, consoante consta do caput do art. 205.
Se esse direito tende a exigir do Estado uma ação, ao contrário da omissão atinente aos direitos de liberdade, será que essa ação diz respeito apenas ao indivíduo que quer ver um direito assegurado ou a uma coletividade? Porque se falamos em direitos sociais, não há como falar em direitos de um, mas sim do direito do maior número de indivíduos que se pode considerar.
Não é novidade afirmarmos que a educação tem um tratamento diferenciado no texto constitucional, seja pelo fato de ser entendida como um dever do Estado, seja no que se refere à destinação de recursos públicos. O próprio art. 212 da Carta Maior trata especificamente do montante a ser aportado por cada ente da federação na área da educação. O descumprimento dessa regra constitucional enseja, por exemplo, em ações que apurem a falta de responsabilidade do agente público responsável pela ordenação da despesa.
Buscou o constituinte elevar o direito à educação a um patamar de destaque em relação aos outros encargos a serem providos pelo Estado. Com isso, nenhuma política pública voltada para o campo da promoção desse direito social pode estar divorciada desse contexto: deve haver sempre a participação estatal na busca da efetiva implementação desse direito social fundamental.
Eis o sentido do direito à educação para a Constituição que hora completa os seus vinte anos. Um direito a ser oferecido pelo Estado que, por meio de políticas públicas, deve prestá-los aos diretamente interessados.
Além do mais, foi o próprio texto constitucional que, em seu art. 208, § 1º, tornou positivo o acesso ao ensino obrigatório e gratuito como um direito subjetivo. Ora, se o acesso ao ensino é um direito subjetivo, colocando-se como uma obrigação a ser provida, como não entender como subjetivo o direito à educação nas instituições privadas, se elas só existem para prestar um serviço quando o Estado não é capaz de realizá-lo para toda a coletividade? Melhor dizendo, se o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um direito subjetivo, como não caracterizar a educação, independentemente dos meios pelos quais é prestada, como um direito público subjetivo?
Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal parece já ter pacificado a questão. É o que podemos constatar ao analisar o Recurso Extraordinário 472.207/SP, cujo relator foi o ministro Celso de Mello. De acordo com o ministro, o direito à educação necessita ter eficácia. Sendo considerado como um direito público subjetivo do particular, ele consiste na faculdade que tem o particular de exigir do Estado o cumprimento de determinadas prestações. Como bem ressaltado no voto do relator, o indivíduo possui o direito de exigir do Estado a prestação desse serviço.
Mas aí vem a grande questão: e quando o Estado deixa de prestar esse serviço de maneira universal, autorizando o particular a fazê-lo? O que acontece com o direito à educação? Deixa de existir? Cria-se a já citada relação de consumo? É importante frisar que o serviço educacional prestado pelas instituições privadas de ensino, desde o seu nível fundamental ao curso de doutorado, não pode ser desempenhado por esse tipo de instituição sem que, antes, haja uma devida autorização do próprio Estado para tanto.
É dizer, sem exageros, que o ensino privado ministrado por instituições particulares não pode ser exercido sem que haja um controle do próprio Estado, por meio de um processo administrativo de autorização, que pressupõe uma análise das diretrizes curriculares, das condições dos estabelecimentos de ensino, da qualidade do corpo docente, dentre outros requisitos essenciais, aos quais as autoridades públicas estão vinculadas para autorizar a exploração desse serviço essencial.
E esse é um ponto fundamental: ainda que prestado por instituições privadas, que visem obter o lucro a partir do desempenho dessa atividade, o serviço educacional não perde jamais a sua relevância de serviço público. Se não é prestado diretamente pelo Estado, o é por instituições devidamente credenciadas por ele, haja vista a importância fundamental da atividade a ser desempenhada.
Não por outros motivos é que o próprio Estado cria mecanismos constantes de avaliação das instituições privadas, às quais são concedidas as condições de exercer a atividade educacional, podendo o Estado, inclusive, cassar o direito de desempenhá-la, caso entenda que a instituição autorizada não se encontra apta para exercer essa atribuição.
O controle do Estado sobre o serviço de educação nas instituições privadas de ensino, mais do que uma necessidade, é uma mandamento constitucional, uma vez que a Constituição de 1988, como vimos, estabeleceu como um dever, e não como uma opção para o Estado zelar pelo ensino e pela sua universalização.
A mera autorização desse serviço às instituições privadas não pode jamais eximir o Estado de suas responsabilidades. Ao contrário, na medida em que delega essa função ao particular, o Estado deve buscar novos mecanismos de auferir a eficiência do serviço prestado. Essa é sua obrigação. Essa é a sua responsabilidade.
Percebe-se, pois, que a tendência, no direito, é o reconhecimento do direito à educação como sendo público e subjetivo. Por essa razão, não obstante ser prestado pela iniciativa privada, o serviço educacional, na sua essência, não perde as características do serviço público.
Luiz Gustavo Bambini de Assis é advogado e mestre pela USP e doutorando em direito do Estado pela mesma instituição. Já foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal e assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República. Contato: gustavo.bambini@gmail.com
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